h | Artes, Letras e IdeiasDia da mãe. António de Castro Caeiro - 10 Mai 2019 [dropcap]T[/dropcap]inham-te deixado no princípio da floresta com um machado e uma ração de sobrevivência. Disseram-me. Tinha perguntado por ti. Tínhamos estado todos juntos num treino antes do Natal, como fazíamos sempre. A tua flexibilidade e plástica deixavam ver como eras. Tinhas fundado uma empresa. Tu e o teu irmão. Vendias para a Europa toda e para a América. Era uma aplicação de sucesso. Tu e o teu irmão eram três com a vossa mãe. Combatíamos as lutas nipónicas. Vivias à distância do tempo dos estágios de Karaté. Outrora, Cascais e Lisboa ficavam quase à distância do tempo entre o fim das férias grandes e o seu início. Quando nos encontrávamos, sempre com o Mestre Raul a orientar o estágio e o Mestre Haradá, medíamos forças, sobretudo técnica. Quando éramos miúdos, ficávamos sempre à espera de quem vinha de onde. Nós, os de Lisboa, éramos do Judo Clube. Vocês vinham do Dramático de Cascais. Um Mestre, uma prática, um sentido, no Dojo. Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Não percebia bem por que razão. Entretanto, ganhavas cintos negros como quem os merece. E tinhas uma aplicação: tu, o teu irmão, e a tua mãe. Víamo-nos duas vezes por ano. Punhamos à prova técnica, porque a coragem estava garantida. O Karaté era a nossa disciplina. O tempo passava durante décadas, desde que éramos miúdos. Púnhamos tudo em causa. Procurávamos a eficácia. Antes, era a beleza das formas ancestrais. Depois, acháramos que era a eficácia. Os judokas diziam que a eficácia era medida pela projecção. O karaté tinha o controle. Falávamos da tua agricultura e eu da minha filosofia. Um dia encontramo-nos num casamento de um amigo. Tu tinhas a tua aplicação vencedora na empresa da mãe do teu irmão e tua. Vendias por toda a Europa. Tinhas perdido o pai, mas a nossa prática era o teu mundo. A maneira como punhas o teu mawashi, perna direita e perna esquerda, à altura da cabeça de quem quer que fosse que te defrontava era exímia. Mas nós falávamos do que era a técnica que tínhamos visto e que nos formara. Nós tínhamos sido formados pela técnica, pelo Do, pelo caminho. Tínhamos sido miúdos no Tatami. Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Tu que eras o grande mago das pernas que batem sem armas. A tua plástica era a coreografia antiga dos velhos mestres que tínhamos visto. Antes mesmo de tudo, havia o que procurávamos. Fomos a tantos estágios e a tantos sítios. Falávas-me da tua mãe. Mãe única que te tinha ficado. O teu pai tinha partido cedo. Dizias que era a tua herança: praticar Karaté. Vinha do Mestre Raul Cerveira. O Mestre era comum. A tua mãe tinha-vos criado. Sofria de dores agudas de uma e de outra pernas. De manhã, fazias café. O teu irmão vivia com a mulher e tinha filhos. Tu cuidavas da terra e da mãe como quem cuida da mãe. A tua mãe era a terra. Vivias momentos felizes: entre os teus mawashi geri’s, o sucesso da tua empresa, a amizade com todos os que se confrontavam com mãos e pés nus. A tua mãe cuidava de ti como tu cuidavas dela. Às vezes, poucas, falavam do pai, do teu pai e marido dela. Saudades não se sabe bem de quem, porque eras miúdo quando ele partiu. O teu irmão nem se lembra dele. Tem uma ténue imagem dele em ti. Os teus amigos estavam sempre em Karaté Gi. Ele era e foi um grande irmão. Amavas o teu irmão como ele te amava a ti. Eras tu, o mano, a mãe. A mãe adoeceu. Deixaste de aparecer aos estágios. Não sei se ias treinar. Mas tinha sido uma doença dura e severa. Tu, o mano e a mãe fizeram um pacto. Ficariam juntos sempre até que alguma coisa acontecesse. Estava a acontecer. Os estágios, a agricultura, o mano, tu e mãe ficaram envoltos num todo confuso. Mãe, perguntavas tu, como estás hoje? Hoje, estou bem. Mãe, perguntavas tu, sempre, como estás. Esperavas que ela te mentisse o melhor possível. A mãe não te enganava. Tu já não querias e não deixavas que te enganasse. Tu, o mano e mãe jantavam pelo menos três vezes por semana, mas eras tu quem estavas com ela, que a levavas às compras. Depois, ajudava-la a subir as escadas, fechavas as portas dos armários e, quando precisavas de trabalhar, fingias que não a ouvias. Às vezes, não eras tão gentil como querias. Disseram-me que te tinham deixado numa mata, uma floresta espessa. Ficaste com um machado e uma ração para uma semana. Haviam de ir-te buscar. Perguntei por que razão. Disseram-me que não aguentaste a perda. Toda a tua força da infância e juventude, todos os teus combates, tudo o que tu tinhas aprendido, tinha-te ditado o destino. Quando viste a tua mãe morrer-te, apertada no vosso abraço, tão apertado que a asfixiariam, se não estivesse já morta – era para a manterem viva — soubeste logo o que fazer. Quero que me deixem na mata mais virgem que houver. Quero que me dêem as árvores mais nocivas e cheias de vida. Com o meu machado irei sem comer nem dormir desbastar o mundo até criar de novo a minha mãe.