h | Artes, Letras e IdeiasA verdadeira ralidade Rita Taborda Duarte - 26 Mar 20197 Ago 2019 [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Não me olheis com esse olhar liso e branco de quem desconfia. Repara: as injustiças do mundo são para se cumprirem. Se a ti me achego, o teu papel é justamente o do papel: acolher-me com virgem resignação. E, de mim, só podes esperar, pacientemente, a mácula. Chegarei, com os meus bordões rascunhados, sem mata borrão. Terás de o suportar. O importante, como diria Ruy Belo, é que «não doa muito» e, depois, que te escondam na «terra como uma vergonha». Ao papel resta acolher as palavras que nele se sepultam. É a tua função, meu tão certo secretário. Que dizes? Que havíamos acordado em não nos tratarmos por tu? Mas, quem me pode demover? Tu? Vós? Sabes que mais, meu secretário, tão certo; tu, papel, nem mais existes na realidade concreta do meu dia-a-dia; a folha que serias é uma metáfora quase morta que me dá guarida, embora sem tecto, sem paredes. E toda a realidade, como tu, é coisa parca e indecisa; sequer dá luz: obscuridade bruxuleando, ao longe, só. O mundo aspira à realidade: cada coisa, cada objecto, cada palavra. E a poesia também a deseja com todo o seu empenho; julga poder instituí-la, até. Nelson Goodman fez-nos crer que o realismo é um «caso de hábito», o malabarismo artificioso de fazer crer, convencer, inculcar. Vejamos: temos o mundo, ele aparece-nos como resultado de um «ver confuso» (Fernando Gil) e esperamos, ingénuos, que seja o poeta a dispensar os óculos com a graduação exacta da nossa miopia. O poeta, sempre esforçado, empresta-nos de bom grado o seu monóculo, o seu binóculo, o telescópio, suas lunetas; um microscópio, e até os seus próprios olhos nus: e eis o real, diante do leitor, tão desfocado quanto possível. Não invento, meu secretário; também Juarroz isto nos explica, se nos diz que o âmago da poesia «é descobrir a realidade, inventando-a». Ou desfocando-a, diria, que é outro modo de a inventar. Ou, talvez, ainda, retirando-lhe uma letra, para lhe dar nitidez. Foi o que fez Manuel Resende: transformou em Realidade em Ralidade, e eis que nos surge um real muito mais ral(o) e fluido, que convoca passados num presente: História(s) em contemporaneidade(s); certo desconjuntar formal da língua, que, entre uma piscadela à poesia experimental (que culmina no hiperpoema, destacado no fim do livro), e certo espírito santo de orelha de surrealismo (que nem descura, porque não pode, a consciência social e política do mundo em que chafurdamos), carrega às costas a tradição clássica da poesia: porque na verdade clássicos somos todos, modernos e os antigos, inevitáveis cabeçudos, em que nos tornamos, nós, os anões, aos ombros de gigantes: «Eu é um pseudónimo de nós e nós pseudónimo disto tudo», escreve Manuel Resende. «O Leão é feito de carneiro digerido», diz-nos Valéry: e é a sombra dos que vieram antes de si (e que também tanto traduziu) que compõem o mosaico da sua poética. Na poesia de Resende, agora reunida pela editora «Cotovia», tanto cabe uma cantiga, não de amigo, mas de amargo, como os diferentes rizomas que sobrevêm de uma tradição moderna (Baudelaire, Whitman, Campos, por lá se passeiam), ou a poesia clássica, ou o classicismo do nosso Renascimento, com a pernada barroca que o experimentalismo desencanta, sempre. Aliás, também vós por aqui estais, meu tão certo secretário, transposto em mensageiro dos tempos modernos. O tom é classicamente o da vanguarda, nesta dicotomia de inventar o mundo, sobre diferentes socalcos, em diversos sobressaltos. Ora lede e reconhecei-vos nesta «Crítica da Razão Pragmática»: «Vinde cá meu tão manso mensageiro/Febril mercúrio falar-me dos deuses/ Saberás que é impossível a mímica rítmica dos rins/saberás que é impossível amor meu//Impossível vivermos os dois sempre aos pares pela vida fora/vem cá corpo cru deusa em carne viva/vem cá saber as horas o irreprimível horário da manhã/ Um relógio de gestos uma religião de salários.». Diz-nos Osvaldo Silvestre, no posfácio que acompanha este volume de Poesia Reunida, que, em Manuel Resende, «tudo: o político, o privado, a realidade, o sonho se funde numa espécie technicolor sem censura». Mas, mais do que fusão, trata-se da convocação do real em diferentes planos (disse convocação? Queria dizer descoberta; não, diria antes invenção; perdão, de novo, pois queria dizer revisão permanente de uma matéria nunca dada), apresentando tudo numa mesma dimensão de simultaneidade, mas à luz de várias lentes e graduações. Como um mosaico composto de peças de proporções diversas. Num poema intitulado «Streptease1990», dedicado a Mário Cesariny e que termina com um endereço de email, como assinatura, escreve-se acerca da importância da libertação do real certeiro do dia a dia: «Pronto já me despi de certezas (das grandes primeiro que das pequenas)./ E agora , que dispo? /Espero ordens.»; e, num poema, mais adiante, no mesmo livro, resgatando um Manuel António Pina que pisca o olho a Camões, a mesma ideia do real que é simultaneamente memória histórica e tempo presente, tradição na contemporaneidade; mundo político-social e auto-referência poética; onírico e absurdo e reconhecimento concreto do quotidiano. Da mesma forma, a realidade física e matemática e aquelas partículas que, afinal, só a palavra e a poesia inventam e instituem, quando assumem às costas a canga da história, da memória, do social e do concreto, com a sensibilidade de quem transforma sentires em sentidos e em realidade: «Onde estão as partículas elementares/Quando a gente não está a olhar?/A questão é de se pôr, só que elas estão,/ Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar.». Mas, só um momento, meu tão certo secretário. Disse eu realidade (física matemática, onírica, histórica ou poética, seja lá o que isso for.)? Pois, desculpai-me, que uma vez mais me enganei. Queria eu dizer Ralidade. Ralidade é que é: sem lar, sem tempos, sem fronteiras. E é esta exacta ralidade, descoberta ao ser inventada, que Manuel Resende nos oferece, ao longo da sua poesia, e também aqui, expressamente, numa cantiga à laia de soneto: CANTIGA À RALIDADE S’a ralidade não me chatiar Não vou eu chatiar a ralidade. Porém, essa megera sem idade Não tem tempo e fronteiras, não tem lar, Não tem respeito, sempre a dar a dar, Remexe-me no peito, busca o qu’ há-de Servir-lhe de pretexto pra provar que continua a mesma ralidade. E eu que tenho mais o que fazer, Dormir, dormir, morrer, talvez sonhar –Ou contra o cruel fado a ‘spada erguer. Mas esta dor no peito, a falta de ar, Esta barba há três dias por fazer Já ´stão à minha espreita ao despertar. Manuel Resende, Poesia reunida, Lisboa, Cotovia, 2018