Manchete SociedadeEntrevista | Joshua Ehrlich, académico da Universidade de Macau Andreia Sofia Silva - 26 Fev 2019 A descoberta de três cartas num arquivo em Londres trouxe ao de cima a ligação umbilical entre a academia, as elites intelectuais e o poder político no contexto do império britânico na Índia. O achado foi feito por Joshua Ehrlich, professor assistente do Departamento de História da Universidade de Macau [dropcap]O[/dropcap] que o levou a fazer esta investigação e como encontrou estas três cartas? Foi algo que surgiu na sequência da apresentação da minha tese de doutoramento. No ano passado, quando estava a rever as notas, reparei numa referência meio escondida a estas cartas de alguém que era bastante conhecido por historiadores que se debruçam sobre o século XVIII. William Jones, uma figura de prestígio, é-lhe frequentemente atribuída a descoberta de ligações entre algumas línguas, como sânscrito e idiomas persas e línguas europeias que pareciam muito diferentes. Mas como ele era um linguista muito qualificado, apercebeu-se destas ligações. Portanto, é uma figura bastante estudada. Encontrei correspondência dele com alguém que não foi muito estudado por historiadores e que tem uma reputação muito diferente, alguém corrupto, que adaptava os resultados de estudos académicos aos seus objectivos que passavam por atingir riqueza e poder. Duas pessoas bem diferentes, no contexto do século XVIII, a usar o império britânico na Índia para fins diferentes. Um com objectivos académicos, de potenciar o conhecimento humano e mostrar como os povos estão ligados em sítios diferentes. O outro a tentar tirar partido da sua situação em termos políticos. Mas mantinham correspondência, eram amigos e colaboraram em muitos projectos políticos e intelectuais. Conhecia um pouco deste contexto. Há um historial de publicação das cartas de William Jones e algumas apareceram, entretanto. Como tal, peguei na oportunidade de publicar estas cartas que acho que podem contribuir para alterar um pouco a forma como se vê este período histórico. Para além do trabalho académico, que feitos históricos destaca na figura de William Jones? Ele viveu e trabalhou como juiz no Supremo Tribunal de Calcutá e expôs a Europa às civilizações antigas indianas. Ainda hoje é considerado como alguém muito tolerante e aberto para o seu tempo. O meu trabalho tenta mostrar como a Companhia das Índias, no geral, sempre arranjava formas de agradar a académicos. Esta gentileza também era uma manifestação política porque tentava melhorar a imagem, porque durante este período, a Companhia das Índias tinha a reputação manchada por violência, desvios de dinheiros e corrupção, entre outras coisas menos positivas. Que conclusões retira destas três cartas sobre o estado do império britânico na Índia durante este período? A conclusão mais óbvia é que o mundo académico e a política estavam bastante ligados nesta altura. Por exemplo, havia claros benefícios políticos, tanto em Inglaterra como na Índia, para as elites britânicas e indianas e as classes políticas em serem mecenas de académicos. O facto de o Governador poder usar as suas ligações para ajudar William Jones, um académico apostado no trabalho de investigação, dava uma boa imagem da sua administração e de ele próprio, num momento em que havia muitos distúrbios. Era algo positivo que podia destacar na sua administração. Isso é revelador. Uma citação numa carta de Jones para o Governador (John Macpherson) refere que este era um estadista académico. Macpherson e os seus aliados repetiram muitas vezes esta citação, inclusivamente ficou gravado na sua lápide. Além de ser importante para a concepção que tinha de si próprio, também mostrava que não era um político corrupto que as pessoas pensavam que era. Academia e política eram mundos interligados, havia uma política do conhecimento. A ideia predominante era que estes dois vultos vinham de mundos distintos? Acho que, hoje em dia, essa é a ideia geral. O facto de pensarmos destas duas pessoas de formas tão distintas, sem interacção ou objectivos e vidas diferentes. Mas, de facto, estavam em interacção constante. Isso é relevante. Estas ligações entre figuras europeias e intelectuais indianos são muito importantes. Mas também as conexões com asiáticos. Numa das cartas foi transcrito um poema a elogiar o Governador Macpherson, escrito por um poeta indiano em indo-persa. Jones enviou o poema ao Governador na esperança de que ele patrocinasse esse poeta. A determinada altura, as semelhanças entre os dois salta à vista nos documentos que encontrou… Diria que tinham alguns objectivos partilhados. Ambos eram homens do Iluminismo, partilhavam a ideia de que através do comércio, além da troca material, existe o comércio intelectual entre pessoas diferentes, e que isso levava à paz, prosperidade e ao progresso em partes diferentes do mundo. Era uma ideia muito utópica, mas tinha significado para quem era académico. É importante dizer que, apesar da reputação de corrupto, Macpherson veio de um dos centros do Iluminismo na Escócia. O seu tutor foi um dos filósofos mais ilustres do iluminismo escocês, Adam Ferguson. Ele conhecia esta gente toda e tinha amigos neste círculo, enquanto era estudante. Continuaram a trocar correspondência quando foi para a Índia. Este era um grupo que o Governador tentava impressionar, os intelectuais iluministas escoceses. Jones compreendia este tipo de pessoas e também se correspondia com elas. Portanto, partilhavam a visão de um mundo de comércio pacífico entre pessoas, levando à compreensão entre povos que viviam muito afastados um do outro. Era nisso que resultava o casamento entre academia e mecenato. Esse é o pano de fundo revelado pelas cartas, não só com impacto no lado académico, mas também no político. Nesta altura, a Companhia das Índias estava a mudar dramaticamente. Ao longo da história do império na Índia, deu-se a mudança no equilíbrio entre os papéis políticos e económicos, eventualmente o comércio reduz-se e torna-se num império territorial que já não se interessa tanto pela troca comercial. Mas, nesta altura, ainda havia equilíbrio. Estas duas figuras estavam do lado do comércio, mais que do lado expansionista que queria tornar a presença da Inglaterra na Índia num império territorial. Qual a influência da relação entre estas duas personalidades e a estratégia que Londres tinha para a Índia? Como as comunicações entre Londres e Calcutá eram muito lentas, podiam demorar um ano a enviar ordens e respostas, seis meses para cada lado, como se podem tomar decisões? Londres só podia dar orientações gerais, mudar algumas pessoas, mas muito tinha de ser feito em Calcutá. Nesta altura, Macpherson não tinha muito apoio em Londres. Não era a primeira escolha para ser Governador, estava simplesmente no conselho quando o anterior Governador se demitiu, portanto, assumiu o cargo temporariamente. Ele era o próximo na hierarquia. Foi um quadro temporário, só lá ficou um ano. Portanto, estava desesperado para tornar o cargo permanente. Queria mesmo mais apoio de Londres e estava a fazer tudo o que podia para o conseguir. Parte disso, foi o anúncio desta visão pacífica e filosófica da sua administração. Anunciar estes planos ambiciosos era também uma forma de ganhar nome. Não correu bem. Londres quis substitui-lo muito rapidamente. As pessoas que regressavam a Inglaterra com uma má impressão do Governador também não ajudavam, além das cartas escritas pelos seus rivais. Durante este período, que outros exemplos de corrupção na Índia destaca? Corrupção e a percepção da corrupção são elementos chave para a compreensão dos debates da política do império britânico. Parte disso é a distância entre Londres e os territórios e a falta de informação sobre o que se passava por lá. A ideia de enviar pessoas de grande reputação torna-se um imperativo, especialmente quando a opinião pública em Inglaterra desvia o interesse para o que se passa no império. O exemplo mais famoso no contexto indiano parte do Governador anterior a Macpherson, Warren Hastings, que esteve no poder 10 anos. É lembrado por ter aprendido línguas indianas, pelo brilhantismo administrativo. É visto, hoje em dia, como uma figura complexa e interessante. Quando regressou a Inglaterra foi julgado em tribunal e destituído pelo Parlamento. A corrupção na Índia ocupou o centro do mediatismo na política britânica durante 10 anos. Havia a preocupação sobre o retorno de corruptos que vinham da Índia, essa preocupação esfumou-se dez anos depois. Regressando a William Jones, é entendido que estaria a passar conceitos diferentes da cultura ocidental à sociedade indiana. Teve alguma interacção com académicos oriundos das elites indianas e estudou sânscrito tradicional, além disso estava também ligado às elites académicas islâmicas, através dos estudos persas. É verdade que através destas interacções, podemos adivinhar que ele estava a trazer para a sua órbita muitos intelectuais indianos e deve ter mudado a percepção dessas pessoas sobre os estrangeiros britânicos. De onde veio o seu interesse para estudar a Índia no contexto do império britânico? Enquanto, estudante estava muito interessado no Iluminismo e no Iluminismo escocês. Li muito sobre o assunto e encontrei pontes entre estas personagens e intelectuais britânicos e europeus e a ligação às expansões imperiais. Sempre me interessei pela junção destes dois mundos, academia e política imperial.