Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasSujata Bhatt António Cabrita - 6 Dez 201810 Dez 2018 [dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes . Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder. UDAYLEE Apenas papel e madeira são imunes ao toque de uma mulher menstruada. Então, eles construíram este quarto para nós, ao lado do estábulo. Aqui, estamos autorizadas a escrever cartas, a ler, e este recolhimento dá azo a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha. À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas. E quando não consigo dormir, desato a marchar ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo, de minha estreita rede para a estante aboletada de jornais, empoeirados, e de búzios castanhos brilhantes e uma concha, que fazem de pisa-papéis. Quando não consigo dormir, pego na concha e encosto-a à orelha só para ouvir a torrente do meu sangue, o latejar de uma canção, o rufar lento, dentro da minha cabeça, dos quadris. Esta dor é o meu sangue a fluir contra, apressando-se contra alguma coisa – as ancas nodosas do meu sangue, é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas levantavam-se com a espuma, subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia abafavam os ovos de tartaruga recém-postos. AS VOZES Primeiro, o som de um animal que tu nunca imaginaste. Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe. E então as vozes tornam-se berrantes. A voz de um anjo falecido recentemente. A voz de uma criança que recusa terminantemente tornar-se um anjo com asas. A voz dos tamarindos. A voz da cor azul. A voz da cor verde. A voz dos vermes. A voz das rosas brancas. A voz das folhas arrancadas pelas cabras. A voz da cobra da mina. A voz da placenta. A voz do couro cabeludo de uma caveira cujo cabelo cai atrás do vidro num museu. Costumava pensar que eram só uma voz. Costumava esperar pacientemente que uma voz regressasse e começasse o seu ditado. Estava enganada. Não consigo acabar de contá-las desde agora. Não consigo deixar de escrever tudo o que tem para dizer. A voz do fantasma que deseja morrer de novo, mas desta vez num quarto brilhante com flores fragrantes e diferentes parentes. A voz de um lago congelado. A voz do nevoeiro. A voz do ar enquanto neva. A voz da rapariga que continua a ver unicórnios e fala com os anjos que conhece pelos nomes. A voz da seiva dos pinheiros. E então as vozes tornam-se berrantes. Às vezes ouço-as Rindo da minha confusão. E cada uma das vozes insiste E cada uma das vozes sabe que isto é a verdade mesmo. E cada voz diz: segue-me segue-me e eu levo-te … CIÚMES Vou para a cama e então aquele homem senta-se no quarto ao lado e continua rindo, dos seus próprios escritos. E então eu bato na porta e digo, ‘agora Jim, pára de escrever ou pára de rir! Nora Joyce Uma mulher come o seu coração exposto e a janela de perto de sua cama é muito pequena e não vai fechar correctamente — o seu coração tem um gosto doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura – mas a lua quer lá saber de qualquer maneira a lua parou há muito de ajudá-la. A ópera acabou e uma multidão de passos lépidos, tantos saltos altos, tamborila rente à sua janela. Não há estrelas esta noite. Somente nuvens que se movem muito rapidamente para a porem tonta. Ela vai fechar os olhos mas não vai dormir vai continuar a comer o seu coração exposto a noite toda – e de manhã há-de pensar numa maneira de encaixar a janela. O ESCRITOR A melhor história, é claro, é aquela que não podes escrever, a que não vais escrever. Eis algo que só pode viver no teu coração, não no papel. O papel é seco, liso. Onde está a terra para as raízes, e como faço para levantar aí árvores inteiras, a imensidão da floresta chegada do coração do espírito – transumância no papel, sem perturbar as aves? E o que dizer da montanha em que esta floresta cresce? Das cataratas tecendo rios, rios com multidões de árvores acotovelando cada uma a do seu lado para lançar um relance ao peixe. Abaixo do peixe flutuam nuvens. Aqui, o céu ondula, encrespa no rio os trovões. Como se movem as coisas no papel? Agora observa a maneira como os tigres andam e rasgam o papel. SHÉRDI* E deste modo aprendi a comer cana-de-açúcar em Sanosra: rasga-se com os dentes a espessa bainha da folha depois, às dentadas, arranco as tiras do branco coração fibroso — e raspo, chupo intensamente com os dentes, aspiro até me aflorar na língua o caldo. Manhãs de Janeiro, o agricultor corta a tenra cana verde e vem depositá-la à nossa porta. Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam, esgueiramo-nos com as longas e leves varas. O sol aquece-nos, os cães bocejam, os nossos dentes crescem vigorosos e deixam os nossos queixos dormentes, por tantas horas a sugar o russ, o caldo que gruda na mão. Por isso esta noite quando me dizes que use os meus dentes para chupar com força, intensamente, vem-me do teu cabelo o cheiro a cana de açúcar e imagino como gostarias de ser shérdi shérdi ali nos campos ali os longos talos se mexem abrindo sendas à nossa frente. *cana-de-açucar OLHAR FIXO E há aquele momento em que a criança humana fixa a cria de macaco, que olha para trás – inocência partilhada inocência no espaço onde o jovem primata não está em cativeiro. Raia aí a pureza orbita uma transparência neste olhar fixo que dura muito tempo… olhos de água olhos de céu tem ainda tempo a alma de cair porque o macaco tem de aprender o medo – e ao humano cabe igualmente aprender o temor e amenizar a arrogância. Testemunhando tudo agora podem-se contar os cílios, contem-se os caracóis na relva, enquanto se espera que os olhos pisquem ou para ver quem primeiro desviará o olhar para longe. Ainda o macaco não olha o humano da mesma maneira que olharia para as folhas ou para os seus próprios irmãos. E o humano fixa o macaco adivinhando-o um ser totalmente diferente de si mesmo. E, contudo, é tanta a boa vontade brilha uma tal curiosidade nos seus semblantes. Gostaria de escorregar para dentro daquele olhar fixo, saber o que a criança pensa o que o macaquito ajuiza naquele exato momento. Esclareço que o garoto está naquela idade em que começa a usar o poder das palavras embora ainda sem a distância dos alfabetos, de abstrações. À menção de pão ele pede uma fatia, com manteiga e mel – imediatamente. Menciona-se o gato e ele apressa-se a correr para despertá-la. Uma palavra é a própria coisa. A linguagem é simplesmente uma música necessária de repente conectada ao batimento cardíaco da criança. Enquanto o macaquito cresce num âmbito diferente, olha uma árvore, um arbusto, a criança humana e pensa … Sabe-se lá o quê!? O que continua a relampejar é esse momento de enlace: as duas cabeças recém-formadas equilibradas em tão frágeis pescoços inclinando-se uma para a outro, a cara do macaco e a cara do garoto, absorvendo cada uma a outra com uma magnífica gentileza …