Sujata Bhatt

[dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes .

Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder.


UDAYLEE

Apenas papel e madeira são imunes
ao toque de uma mulher menstruada.
Então, eles construíram este quarto
para nós, ao lado do estábulo.
Aqui, estamos autorizadas a escrever
cartas, a ler, e este recolhimento dá azo
a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha.

À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas.
E quando não consigo dormir, desato a marchar
ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo,
de minha estreita rede para a estante
aboletada de jornais, empoeirados,
e de búzios castanhos brilhantes e uma concha,
que fazem de pisa-papéis.
Quando não consigo dormir, pego na concha
e encosto-a à orelha
só para ouvir a torrente do meu sangue,
o latejar de uma canção, o rufar
lento, dentro da minha cabeça, dos quadris.
Esta dor é o meu sangue a fluir contra,
apressando-se contra alguma coisa –
as ancas nodosas do meu sangue,
é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas
levantavam-se com a espuma,
subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia
abafavam os ovos de tartaruga recém-postos.

AS VOZES

Primeiro, o som de um animal
que tu nunca imaginaste.

Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe.

E então as vozes tornam-se berrantes.

A voz de um anjo falecido recentemente.
A voz de uma criança que recusa
terminantemente tornar-se um anjo com asas.

A voz dos tamarindos.
A voz da cor azul.
A voz da cor verde.
A voz dos vermes.
A voz das rosas brancas.
A voz das folhas arrancadas pelas cabras.
A voz da cobra da mina.
A voz da placenta.
A voz do couro cabeludo de uma caveira
cujo cabelo cai atrás do vidro
num museu.

Costumava pensar que eram
só uma voz.
Costumava esperar
pacientemente que uma voz regressasse
e começasse o seu ditado.

Estava enganada.

Não consigo acabar de contá-las desde agora.
Não consigo deixar
de escrever tudo o que tem para dizer.

A voz do fantasma que deseja
morrer de novo, mas desta vez
num quarto brilhante com flores fragrantes
e diferentes parentes.
A voz de um lago congelado.
A voz do nevoeiro.
A voz do ar enquanto neva.
A voz da rapariga
que continua a ver unicórnios
e fala com os anjos que conhece pelos nomes.
A voz da seiva dos pinheiros.

E então as vozes tornam-se berrantes.

Às vezes ouço-as
Rindo da minha confusão.

E cada uma das vozes insiste
E cada uma das vozes sabe
que isto é a verdade mesmo.

E cada voz diz: segue-me
segue-me e eu levo-te …

CIÚMES

Vou para a cama e então aquele homem
senta-se no quarto ao lado e continua
rindo, dos seus próprios escritos.
E então eu bato na porta
e digo, ‘agora Jim,
pára de escrever ou pára de rir!
Nora Joyce

Uma mulher come o seu coração exposto
e a janela de perto de sua cama é muito pequena
e não vai fechar
correctamente — o seu coração tem um gosto
doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura –
mas a lua quer lá saber
de qualquer maneira a lua parou
há muito de ajudá-la.

A ópera acabou
e uma multidão de passos lépidos,
tantos saltos altos, tamborila
rente à sua janela.

Não há estrelas esta noite.
Somente nuvens que se movem
muito rapidamente para a porem tonta.

Ela vai fechar os olhos
mas não vai dormir
vai continuar a comer o seu coração
exposto a noite toda –

e de manhã há-de pensar numa maneira
de encaixar a janela.

O ESCRITOR

A melhor história, é claro,
é aquela que não podes escrever,
a que não vais escrever.
Eis algo que só pode viver
no teu coração,
não no papel.

O papel é seco, liso.
Onde está a terra
para as raízes, e como faço para levantar aí
árvores inteiras, a imensidão da floresta
chegada do coração do espírito –
transumância no papel,
sem perturbar as aves?

E o que dizer da montanha
em que esta floresta cresce?
Das cataratas
tecendo rios,
rios com multidões de árvores
acotovelando cada uma a do seu lado
para lançar um relance
ao peixe.

Abaixo do peixe
flutuam nuvens.
Aqui, o céu ondula,
encrespa no rio os trovões.
Como se movem as coisas no papel?

Agora observa a maneira
como os tigres andam
e rasgam o papel.

SHÉRDI*

E deste modo aprendi
a comer cana-de-açúcar em Sanosra:
rasga-se com os dentes
a espessa bainha da folha
depois, às dentadas, arranco as tiras
do branco coração fibroso
— e raspo, chupo intensamente com os dentes,
aspiro até me aflorar na língua o caldo.

Manhãs de Janeiro,
o agricultor corta a tenra cana verde
e vem depositá-la à nossa porta.
Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam,
esgueiramo-nos com as longas e leves varas.
O sol aquece-nos, os cães bocejam,
os nossos dentes crescem vigorosos
e deixam os nossos queixos dormentes,
por tantas horas a sugar o russ, o caldo
que gruda na mão.

Por isso esta noite
quando me dizes que use os meus dentes
para chupar com força, intensamente,
vem-me do teu cabelo o cheiro
a cana de açúcar
e imagino como gostarias de ser
shérdi shérdi ali nos campos
ali os longos talos se mexem
abrindo sendas à nossa frente.
*cana-de-açucar

OLHAR FIXO

E há aquele momento
em que a criança humana
fixa
a cria de macaco,
que olha para trás –
inocência partilhada
inocência no espaço
onde o jovem primata
não está em cativeiro.

Raia aí a pureza
orbita uma transparência
neste olhar fixo
que dura muito tempo…
olhos de água
olhos de céu
tem ainda tempo a alma de cair
porque o macaco
tem de aprender o medo –
e ao humano
cabe igualmente aprender o temor
e amenizar a arrogância.

Testemunhando tudo
agora
podem-se contar os cílios,
contem-se os caracóis
na relva,
enquanto se espera
que os olhos pisquem
ou para ver quem
primeiro desviará o olhar para longe.
Ainda o macaco não olha
o humano da mesma maneira
que olharia para as folhas
ou para os seus próprios irmãos.

E o humano fixa
o macaco adivinhando-o
um ser totalmente diferente de si mesmo.
E, contudo, é tanta a boa vontade
brilha uma tal curiosidade
nos seus semblantes.

Gostaria de escorregar para dentro
daquele olhar fixo, saber
o que a criança pensa
o que o macaquito ajuiza
naquele exato momento.

Esclareço que o garoto
está naquela idade
em que começa a usar o poder
das palavras
embora ainda sem a distância
dos alfabetos, de abstrações.
À menção de pão
ele pede
uma fatia, com manteiga e mel –
imediatamente.
Menciona-se o gato
e ele apressa-se a correr
para despertá-la.
Uma palavra
é a própria coisa.
A linguagem é simplesmente
uma música necessária
de repente conectada
ao batimento cardíaco da criança.

Enquanto o macaquito
cresce num âmbito diferente,
olha uma árvore, um arbusto,
a criança humana
e pensa …
Sabe-se lá o quê!?
O que continua a relampejar
é esse momento
de enlace:
as duas cabeças recém-formadas
equilibradas em tão frágeis pescoços
inclinando-se uma para a outro,
a cara do macaco
e a cara do garoto,
absorvendo cada uma a outra
com uma magnífica gentileza …

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