O futebol é uma moreia para os amigos

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] aquela altura em que a imaginação se transforma numa moreia a surfar nas guerras púnicas. Tudo começa pelas nuvens de pó, pelos cascos dos cavalos da GNR a bater na lama, pela enxurrada sensorial a que a retina é sujeita – vozes sobrepostas nos altifalantes, mastros e bandeiras na movida, gajos a mijar contra o muro, filas impenetráveis de vultos indiferentes à chuva, semblantes encenados por coros, enfim, um colorido raro a invadir o cinzentismo do mundo que agora recordo.

Nestes nossos dias liofilizados em que pegou moda começar frases com o infinitivo impessoal (“Dizer que está aqui um ambiente propício a…”) ou com um simples advérbio temporal (“Quando estás à espera do autocarro da equipa e te cai em cima um…”) ou com um deítico (“Aquele dia em que te sentes varado e atiras…”), melhor ainda me sinto a cantarolar os acordes das marchas militares e revejo as matilhas de cães vadios a cruzarem o oceano de guarda-chuvas negros. Uma fumarada danada e os cartagineses a escarrarem para o lado, a par dos pregões e das cascas de banana a traírem a diagonal do peão, agora acossada por brados e caralhadas que vasculham os profundos da relva.

A cal traça ângulos rectos e concebe o círculo central e a grande área. Por cima, a borrasca instiga os seus compassos aéreos à Miró e é por entre os respingos do dilúvio que o povo se estica e digladia (como elásticos) para rever, ao longe, as joelheiras, os equipamentos, as fintas e as botas dos jogadores ensopadas no rectângulo ideal. A bola de ‘catchum’ é atirada pelo guarda-redes, cruza mais de meio canto e embate em duas ou três cabeças que içam as alturas do mundo. Ressaltará para a lateral e perde-se depois pela linha final. É assim também a vida.

Tinha seis anos e o futebol transformou-se na primeira imagem que me fez sair de mim. Sair de mim: desdobrar-me num episódio simbólico e passar a ser parte de qualquer coisa que não apenas o imediato: a família, a casa, os avós, os retratos que evocavam origens, os cheiros da compota, a escola primária, o Cavaleiro Andante, o major Vidal que era explicador de matemática e os torresmos do senhor Simões que me levou de táxi até aos picos de Monsaraz, era Inverno e os meus prazeres púnicos e guerreiros amanheciam. Por que terá acontecido tudo isto?

Em primeiro lugar, as massas fazem chorar. Para uma criança é coisa mitológica e tem o dobro da força de gravidade. Uma corrente que pode ser imparável com o tempo.

Em segundo lugar, os heróis. Sim, mal a cor das camisolas se desvendava no túnel de acesso ao relvado, os jogadores que, na realidade, nunca tinham feito um único feito no mundo, simulavam ser Cipião e Aníbal. E o povo glorificava essa verdade que não é coisa exclusiva da massa cinzenta das moreias. Diga-se, em abono da verdade, que o futebol fora inventado em Inglaterra, entre 1848 e 1863, num tempo em que, como escreveu Stephanie Barczewski (curiosamente um historiador americano), se verificava “…a uniquely British tendency to take a perverse (and sometimes tragicomic) pleasure in glorious defeat and self-sacrifice”. Ou seja: coisas preparadinhas para um bom plot.

Em terceiro lugar, a festa, mas com aquilo que a ‘fiesta’ – hoje perseguida pelos avaliadores das mais perfeitas premissas púnicas (as PPPs) – também comporta: tudo, mas tudo mesmo pode vir a acontecer. Sim, pode magoar e pode mesmo matar. É o lado da narrativa literária, do relato shakespeariano, do encadeamento e do sangue (coisa viril, mas com a sua arte, diria Homero para não escrevinhar Hemingway, não venha o presbiteriano Will Hays ou até o Me Too acusar-me de “Hola, al final tú eras también aficionado”). Por vezes, o espaço no futebol é um trompe-l´oeuil constante. E já se sabe que a qualidade de um trompe-l´oeuil não reside tanto na eficácia da ilusão criada, mas sobretudo na graciosidade da encenação. É um tropo que surfa mal para burro, mas que sabe interligar os momentos do jogo a qualquer outra coisa (aparentemente superior) que não é óbvia. A fé precisa da sua fábrica. A fé é para sorver o corpo todo nos lances de bola parada. A fé gosta de uma equipa que troque bem a bola, mas, por vezes, esquece-se de que o que é preciso ‘é metê-lo lá dentro’.

Em quarto lugar, a pertença. Que bela questão! Por que se escolhe uma equipa e o que é uma equipa? Prefiro o que ouvi, uma ou duas vezes, dizer ao António Mega Ferreira: é a beleza das coisas que não têm explicação. Sim, a seta vermelha. Inevitavelmente.

Em quinto lugar, para desfibrilar a imaginação dos cartagineses: aconselhava a todos os programas sobre futebol que grassam nas TVs lusitanas, há cerca de uma década, o mesmo destino que a terceira e última guerra púnica conheceu. Era acabar com aquilo de vez. Ou com quase tudo. E então teríamos um mundo melhor para comermos moreia à mão todos juntos, como dantes. Eu, o Germano, o Águas pai, o Carvalho, o Vital e o Matateu.

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