Milhões

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] quilo que separa o homem do servo. A abundância numérica dos vitoriosos, a aritmética que define quem manda nisto tudo, que separa o ouro do joio, porque cereal e mercadorias são relíquias de mercados ancestrais. Sou o denominador comum a todos os poderes, a escala decimal que torna tudo possível.

Nada funciona com centavos, a unidade da miséria, a identidade cambial dos ratos que se banqueteiam com as migalhas que caem das nossas mesas. Nada alguma vez será erigido com centavos. Podem esquecer outro hospital, sistema de metro, rede de esgotos e tratamento de águas residuais digno do grau civilizacional que os países médios atingiram há muito tempo. Objectivos que não estão ao alcance dos centavos e que acabam por não ser prioridades absolutas dos milhões.

Entretanto, os centavos dormem em quartos húmidos, íntimos com o bolor e as pestes, ocupados com trabalhos que lhes permitem ficar à tona no imenso lago de milhões que é Macau, a sonhar com opulência distante, a fantasiar com as meninas que distribuem publicidade dos casinos, à espera que um golpe de sorte os empurre para o paraíso dos milhões.

No outro lado do espectro, os milhões descansam nos paraísos onde não há impostos, coisa de pobre. Paraísos onde tudo se torna impessoal, onde os milhões gozam de anonimato, impessoalidade, onde ficam à margem a multiplicarem-se numa miríade de empresas offshore, em labirintos de quotas sociais que se dissipam por labirintos de opacidade até não serem de ninguém. Milhões elusivos, fugidios, ocultos, imperceptíveis apesar de estarem à vista de todos.

Milhões de auto-geração, que se multiplicam espontaneamente, milhões que crescem na sombra, enquanto os centavos minguam ao sol como peixe seco. Milhões que deixam o pendor para a barbárie acentuar-se, que tratam animais como evocações de tempos medievais. Milhões que não se atemorizam com a autoridade, com outros pequenos milhões de multa, mas que actuam quando sentem que a má publicidade chegue às flutuações bolsistas.

Milhões que se juntam de forma natural, maniatados por quem sabe, seguindo aritméticas místicas que são a génese de impérios, que transformam homens em deuses.

Os centavos, por sua vez, são pesados. São um fardo que verga as costas de quem os acumula em sacos e bolsos que se recheiam de fatiga. Metal pesaroso, que pouco vale, chocalhando miséria nos bairros mais modestos. Centavos e trocos que mais ninguém quer, que são lixo inútil para os que conseguem compor uma mesa diariamente sem esforço. Espalham-se centavos no chão e só o pobre os vê, só ele o detecta.

Os milhões não são assim. Os milhões não têm peso, flutuam num vácuo existencial, dividem-se entre carteiras de acções, cartões vários, participações sociais, dividendos rachados, fracções de heranças, títulos de propriedade. Os milhões só quando estão em pânico se agregam num saco e mesmo assim não são tão pesados como um saco de trocos.

Trocos são os sedimentos sólidos que restam das reacções económicas, o refugo, a escória da vida fatigante que se vai acumulando nos bolsos de quem gasta tudo o que amealha.

Os milhões não veem a rua, não conhecem a luta diária de quem tem tecto incerto, os milhões não têm concepção das cruéis escolhas entre bens essenciais que os centavos têm de fazer. O quando se acumulam em biliões, os milhões olham para baixo para o patobravismo dos milhões inferiores, seus lacaios e assassinos. É por isso que os milhões olham para o mercado imobiliário como uma arena de arrendatários trapaceiros, animais sem escrúpulos. É por isso que os milhões olham para as inundações no Porto Interior como uma oportunidade de investir alguma caridade. É por isso que os milhões estarão para sempre em antagonismo com os centavos e numa relação que mestre e servo.

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