Bobo

[dropcap]A[/dropcap]gora que morri, prestem atenção e ouçam-me. Sei que vivemos tempos de lutas menores, enquanto na sombra se agigantam problemas. Muitas das dores contemporâneas são originadas por micro-agressões, enquanto autênticos monstros ganham forças discretamente.

Agradeço a todos o amor póstumo e o simbólico activismo de rede social. Sabe bem, dá aquele calorzinho afectivo digno de um emoji. Lembram-se que estive a vida quase toda trancado numa espécie de gruta longe do meu habitat natural? Durante décadas, a vossa preocupação limitou-se à escolha do melhor ângulo para me fotografar. Com uma pequena excepção indignada quando foi construído o parque dos pandas e se levantaram vozes quanto às condições do meu alojamento.

Não me interpretem mal. Agradeço a cortesia e a consideração, mas olhem em vosso redor. Não quero entrar em relativismos e discussões de prioridades, mas não vejam o que é essencial. Por favor, em honra da minha memória. O embalsamento de um animal não é problema político, ainda para mais em Macau, onde o desapego à actuação do Governo é quase total. A decisão de embalsamar é um jogo menor no campeonato da falta de representatividade da vontade popular. Ah, relembro aos mais esquecidos que nesta cidade os governantes não são escolhidos pelos residentes.

Recordo que por cá é comum concursos públicos atribuírem contratos milionários a empresas de familiares de governantes e deputados. Estamos numa cidade que, em breve, terá o maior PIB per capita do mundo enquanto se convive alegremente com a discrepância gritante entre os mais desfavorecidos e os mais abastados. Há pessoas a ganhar pouco mais de 4000 patacas por mês e que têm a estadia em Macau ancorada em vínculos laborais de completa exploração. Este é um território onde cresce uma onda securitária despropositada face ao igualmente apregoado pacifismo e harmonia da sociedade, atropelando a Lei Básica e o segundo sistema. Esta é a cidade onde idosas empurram carros com pilhas de cartão, pelas mesmas vias onde circulam Lamborghinis e Rolls Royces, onde famílias se empilham em apartamentos minúsculos que fazem a minha antiga gruta parecer uma mansão. Macau é uma terra de cheias recorrentes, fatais como o destino, perante a total inoperância do Executivo e apatia da população. Podia passar a eternidade que me sobra a enumerar assuntos que precisam de acção imediata e merecem mais cólera que o embalsamento de um animal que passou a vida em cativeiro. Não me usem para expurgar a vossa inércia cívica. Não me transformem no símbolo da vossa letargia política manifestada em causas menores.

Também me diverti com as várias teorias sobre a minha idade e proveniência. Nos dias que correm, a origem de um urso é mais apelativa à indignação digital que os passados obscuros dos que ocupam as mais altas esferas decisórias e dos magnatas que ordenham a faustosa vaca turística. Quem teve contactos com o crime organizado, quem desviou dinheiro, quem usou fundações para converter fundos públicos em privados… não interessa. Agora, o dia e hora exacta em que um urso é “resgatado” de um restaurante, para ficar em cativeiro o resto da vida, isso sim merece o mais apertado escrutínio.

No fundo, peço que me deixem em paz. Estou morto. Cremado, enterrado, empalhado, fossilizado, o quer que seja, é-me completamente indiferente. A minha memória não depende de rituais fúnebres, assim como o tempo de qualidade em família não deveria precisar do cativeiro de animais selvagens, quando há tanta oferta lúdica por perto. Deixem-me em paz e dirijam a vossa indignação às verdadeiras indecências que acontecem a céu aberto nesta cidade. Deixem-me morrer em paz e parem de me usar como arma de arremesso político, quando não faltam por aí causas nobres. Não sejam ursos.

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