h | Artes, Letras e IdeiasVila Nova de Milfontes – Na véspera de partir António de Castro Caeiro - 6 Jul 201811 Jul 2018 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]arregávamos o carro de noite. A mãe arrumava o quotidiano da casa num carro pequeno: roupa, tachos, farmácia, livros. Descíamos vezes sem conta as escadas. O carro ficava cheio de véspera. Nem conseguíamos dormir. A carga da nossa vida estava lá toda. E acordava-se cedo. Um café era engolido. Os últimos sacos, levados para baixo. Partíamos às 7h00 da manhã. Aparecia a Avenida da Índia em direcção a Alcântara. Atravessava-se a Ponte Sobre o Tejo. As pernas eram esticadas ainda em Palmela. Depois, era rumo a sul. A viagem não era apenas a deslocação a sul. Não era para ir e vir. Não se ia tratar de um assunto rápido, para seguir com a vida. Era uma viagem. De Kilómetro a Kilómetro, tudo muda. A paisagem deixa a cidade atrás de si, sem ser vista. Mergulha-se numa dimensão rural, interior. O olhar está no Mira ou no Atlântico, mas não se avistam, verdadeiramente. Parávamos para almoçar. Na altura, ainda havia a avó com pastéis de bacalhau e arroz e vinho. Partíamos às 7h00 mas íamos a 60 km hora, a velocidade do pai. Passávamos Alcácer do Sal já à hora do almoço. Víamos viandantes que comiam connosco ou bebiam um copo de vinho. Recolhia-se a parafernália do farnel. Lá íamos nós. Aproxima-se Cercal do Alentejo, já com outros odores e cores. A cidade de pé tinha ficado para trás há algumas horas. Era como um sonho inteiro de ano lectivo. Lá tinha ficado o Natal, a Páscoa, o fim do ano lectivo. Agora, era outra coisa. Demorei muito tempo a perceber o que era. Conduz-se. A mãe acende o cigarro ao pai, não sem o molhar. O pai refila. Mas mete o cigarro à boca que aspira. Vou no lugar da frente. Olho pela janela e vejo só o céu. Embora lá em cima, é como se fosse uma astronauta. O carro pouco veloz, leva-me nas horas. “Hás-de lembrar-te deste tempo”, dizia o Beta. Chegamos ao Cercal do Alentejo. Pára-se para um café. Falta pouco tempo. Mas não será de seguida. Paramos ainda para beber água da fonte. O pai bebia com a mão a fazer concha. Bebia como tinha bebido na sua infância pobre de dinheiro mas rica de tudo o que a Terra dá. Enchem-se garrafões. Metem-se no carro. Aconchegamo-nos no carro mas só para o último troço. Sente-se o horizonte. Pressente-se a orla marítima. A infância tinha ficado umas temporadas antes, mas ainda fazia-se sentir. A juventude estava já quase aí. Terá sido assim? Chegamos a Milfontes. A terra dizia-se das três mentiras. Na altura: Vila Nova de Milfontes. Não era vila. Não era nova. Não tinha Milfontes. Anos mais tarde, descobri que seria Melis Fons ou Fontes: a fonte ou as fontes do mel. Os piratas subiam o mira para roubar o mel aos apicultores. A chegada não era agradável. Descobria-se uma casa vaga. Faziam-se as camas. A roupa ia para os armários. Os tachos iam para a cozinha. A farmácia para a casa de banho. Havia o primeiro reconhecimento. Íamos a pé até ao café da Dona Maria ou do Artur. Chegávamos ao fim da Barbacã, com a fortaleza do lado direito. Lá estava ele: o Mira a olhar para o Atlântico, como o meu Tejo. Esta, contudo, não era a chegada absoluta. Havia a noite. Íamos encontrar aos poucos como peças de um puzzle complexo os amigos do verão passado. Entretanto, tinham ficado amigos em Lisboa. Outros tinham a sua inauguração àquela terra mágica de pais e avós, tios, primos, irmãos e amigos. A noite era invariavelmente um reconhecimento. O que se tinha passado entretanto? Quem tinha 16 anos tinha agora 17. Como estávamos. Antecipávamos Setembro no fim e ainda era Julho ao princípio. Descemos lentamente ao Malhão. Só a partir de uma dada altura, percebemos o Atlântico. Arruma-se o carro. Desce-se desfiladeiro abaixo. Despimo-nos até aos calões. Corremos até à beira-mar. E o mergulho é o baptismo de renovação que sufoca. Oxalá houvesse sempre esse mergulho.