RENÉ CHAR

Olhamos o mundo de modo estranho quando ao redor não vemos os Homens – ao redor – gravitam agora os assimilados de uma antiga espécie desaparecida – intermédio ser que tanto faz, que tanto fez, e que desfaz o que todos fazemos- que se encontra em clausura entre o humano e a máquina, uma espécie expectante e espectadora avisa-nos do perigo da diluição perante o coração reluzente dos soberbos mistérios; somos nós essa pegada, estagnados no movimento como plantas de raízes aéreas que trepam pelas hospedeiras, do chão, nem nele enterramos já o cadáver que sobrou incinerado de si próprio.

René Char é um fenómeno da natureza toda e só podemos medir estes tamanhos pela destilação dos efeitos concentrados, pelo imponderável, pela lembrança telúrica da essência de um antigo xamã, não nos é dado ir para a cama com os seus livros, nem com eles fazer leituras comparadas, são coisas que precisam de alguma solenidade vertical pois que um leitor atento sabe que não deve jamais elevar a curiosidade para patamares novelísticos quando tem diante de si um autor que pode muito bem reverter em maldição os olhares desatentos, melhor será então que poucos o sigam pois que se manterá viva a fímbria de uma casualidade imortal que é o que está ali plasmado sem que saibamos porquê.

Transporta, sim, esse – Furor e Mistério – intactos no espaço fundo do poema; é um Titã, um Atlas, mude o mundo, mas não se pode estancar este silêncio, este contágio com a força do raio; outrora quando escutava « Allégeance» era possuída por adágios mágicos, escutava uma tradução de uma língua que ninguém sabe e que tinha na sua um efeito desconcertante e irrevelado. Há sempre estes caminhos que começam por fenómenos naturais e que por serem fenómenos se dão raras vezes, visitações de outras fontes, lembranças do corpo que transportamos, tudo isto me parecia escutar na sua voz dura: porquê, então, tão radicalmente poética?

O que se aproxima mais de uma adjetivação poética é o estado de rochedo, dessa dureza, de imutabilidade, talvez o mineral seja o elemento poético por excelência e não o vegetal coroado em seu louvor em cada início de Primavera. Uma festa que traduz também a queda na fonte de Narciso que passa a representar a poetização do fracasso, Char, não é Primavera, ele ilumina-nos no escuro de uma noite eterna da alma, de um outro posto de vigília que nos quebra as doces sensações, ele está para o poema que transporta de forma assombrada, como nós os seres intermédios estamos para os deuses. Ele lembra-se do início das coisas. Há aquela energia que não é a das vozes canoras, ele dizia: -é o salto que leva ao caminho pondo na acção poética esse «saxífraga» o vegetal que despedaça a pedra.-

Ligado ao movimento Surrealista torna-se também um crítico e ainda participa na Resistência com o nome de «Capitão Alexandre» manteve-se assim na linha da frente contra a ocupação e contra o mal que o seu tempo padeceu, era um guerreiro; em menino viu um raio a que lhe chamou o grande relâmpago e tudo ao seu redor deixou de ter importância, talvez paralisado pela transcendente manifestação. Para ele, só existiria para sempre a noite e a claridade, e os dias eram sombras, e o que cintila de tempos a tempos, aquele número restrito de vezes durante uma vida pode ter sido a raiz de uma tal pujança poética «é sabido que o poeta vive na maldição, isto é, assume perigos perpétuos e renovados do mesmo modo que recusa, com os olhos abertos, aquilo que os outros aceitam com os olhos fechados. O poeta passa por todos os graus solitários de uma glória colectiva, da qual as regras de jogo o excluem. Deve aceitar o risco de a sua lucidez ser considerada perigosa.»

Nada na sua dinâmica é um acto simplificador, seria submeter uma indomável energia a uma noção de causa efeito, e Char, era alguém de uma cultura e sensibilidade linguística sem paralelo, mas tudo o que transmite está inteiro como um átomo, os gomos de uma laranja…ele sabe daquilo que o Homem intermédio esqueceu e todo esse saber só pode ter por veículo a poesia. A sua vida fora dedicada a ela, recebeu ao que se sabe uma boa herança, e por outro lado as sociedades inteligentes não deixam morrer os seus poetas. As que não vêem raios nem escutam o brotar das águas nos rochedos, essas, nem sabem que os têm, mas saber-se-á um dia delas pelas piores razões. Ele segue a estrela, não quer o diálogo poético, quer ser visitado mesmo correndo o risco do inaguentável lampejo…ele firmou o seu destino que é diferente de ter uma vida.

 

POST- SCRIPTUM

Écartez-vous de moi qui patiente sans bouche;

A vous pieds je suis né, mais vous m´avez perdu;

Mes feux ont trop précisé leur royaume;

Écartez-vous de moi qui patiente sans bouche:

Le trèfle de la passion est de fer dans ma main.

 

Numa corrente ainda Surrealista é do profeta Ezequiel de que me lembro por analogia a este belo poema« filho do Homem, come este rolo. Então abri a boca e me deu a comer o rolo». A Bíblia, os textos litúrgicos, continuarão a ser os mais puros elementos do Surrealismo mundial, e isso, que fez Escola, firmou correntes, sabem-no, sempre o souberam os poetas.

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