Trump it

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]oderão pensar que sou antiquada, démodé, fora do tempo: gosto de homens que sabem ser cavalheiros. Assim como gosto de mulheres a sério, aprumadas. Com isto não quero dizer que não compreenda o disparate e que dele não participe. Na vida há espaço e tempo para tudo, incluindo para o palavrão que, dito na hora e no local certos, tão bem faz à alma, por ser purificador ou, pelo menos, bastante analgésico.

Mas escrevia eu que gosto de cavalheiros. Isto não tem que ver com desigualdade de género, antes pelo contrário. O meu entendimento de cavalheirismo implica, antes de mais, que os homens respeitem as mulheres. E respeitem os compromissos. Respeitem os outros. Por isso são cavalheiros. Também as mulheres a sério, as que são aprumadas, respeitam os homens. E respeitam os compromissos. E respeitam os outros. O respeito é mesmo muito bonito.

O cavalheirismo é uma forma de vida, de pensar, de estar, de agir com os outros e para com os outros. É uma forma de se ser social. Devemos aos cavalheiros o facto de termos uma sociedade mais ou menos organizada. Foram eles que fizeram o favor de nos estruturarem, para que seja possível a convivência mínima. Há mulheres a sério que também contribuíram neste processo, apesar de serem em número inferior ao desejável. Mas não é isso que agora interessa.

O cavalheirismo é, por norma, acompanhado de gentileza, uma qualidade mais ou menos em desuso para ambos os sexos. Cavalheirismo e gentileza são, porém, características que não se devem confundir. O que hoje me importa mesmo é o que o cavalheirismo tem de tão especial e o que, na ausência dele, irremediavelmente se perde.

Há exactamente uma semana, assisti em directo à tomada de posse de Donald Trump, o estranho ser que, de candidato a candidato alvo de muito e merecido gozo, passou a Presidente da maior economia mundial. Aquilo que deveria ser uma festa teve contornos fúnebres, pelas expressões de quem lá esteve, pelo clima que se percebia no ar, pelos protestos que aconteceram à mesma hora. Pelo discurso que fez, pelo tom do discurso que fez, por aquilo que anunciou, pelo modo como se comportou. A semiótica das palavras é importante, como é importante a semiótica das imagens.

Donald Trump é a antítese do cavalheiro. Não vale a pena elencar aqui o que ele já fez, desfazendo; ou o que desfez, existindo. Para quem dúvidas tivesse, numa semana demonstrou de que farinha é feito. Não passa de um vendedor de banha-da-cobra pintado de dourado, um homem que imagina que basta querer para que o poder lhe responda aos desejos. Quem o apoia ainda não percebeu o que vai acontecer, mas talvez um dia destes avance no discurso e ouça o que se seguiu ao ‘American first’ que tantos orgasmos mentais provocou naquele eleitorado babado de contentamento.

É cedo para imaginar o futuro, mas certo é que o que vem por aí não será coisa boa. É dar tempo ao tempo, sendo que o tempo não será longo. As alucinações, como é sabido, vêm e vão, sendo que há remédios vários para elas.

Mas, até lá, é esta a realidade e não vai soltar-nos. Como se dá o caso de vivermos todos no mesmo mundo, o que acontece lá longe também nos interessa, porque o mundo vai sendo feito de muitos equilíbrios, de jogos de poder que devem seguir regras comuns. Neste momento, ninguém sabe exactamente quais são, mas todos nós vemos o que se está apostar.

Quero acreditar que, um dia destes, a coisa resolve-se, de uma forma ou de outra. Mas até lá temos a antítese do cavalheiro na Casa Branca. Como não sabe ser cavalheiro, como não passa de uma espécie de humano que, infelizmente, não beneficiou das vantagens de uma educação para o cavalheirismo, Donald Trump faz o que lhe dá na real gana, nas mais variadas dimensões da sua desinteressante mas insistente existência.

Um dia destes, o mundo muda outra vez mas, até lá, muito será desfeito, para entretenimento das agências de notação financeira, para a desgraça de muitos e o regozijo de outros tantos. O problema é que a figura que está ali no topo, na abertura dos noticiários, no centro do mundo, esparramado num sofá na Casa Branca, não é um cavalheiro. E como não é um cavalheiro, alinhou o discurso e os actos pelo nível subterrâneo, que é onde vivem os seres cujos olhos não têm qualquer préstimo.

A contaminação do estilo será a pior consequência de todas. Donald Trump é a antítese do cavalheiro.

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