Entrevista MancheteGuilherme Ung Vai Meng, presidente do IC: “Trabalhamos para ter mais património na UNESCO” Joana Freitas - 22 Jul 201624 Jul 2016 A UNESCO pode vir a ter mais património classificado de Macau e as ruas do território vão encher-se de músicos, com licença para tocar. São algumas das ideias de Ung Vai Meng, que se diz satisfeito com o trabalho feito pelo património e com a lei que o regula [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stá como presidente do Instituto Cultural (IC) há muitos anos. Como avalia o trabalho que tem sido feito até agora? Entrei aqui a trabalhar em 1983. Sou presidente há seis, ou sete anos. Sinto-me feliz a trabalhar na área da cultura. Posso dizer que sou [testemunha] e vejo como o IC cresceu. Já vi muitos funcionários reformarem-se, até fiquei com alguma inveja (risos). Cresceu muito o IC, não só ao nível da quantidade, mas de qualidade. Este ano foi muito importante, com a entrada de pessoal [e departamentos] do IACM na nossa equipa. Agora temos mais de mil funcionários, 16 bibliotecas, muitos museus e galerias. É um espaço que cresceu e onde podemos encontrar [vários] recursos, é uma base cultural. O mais importante é a qualidade dos funcionários, sinto-me feliz por estar a trabalhar com eles. Dantes não tínhamos, por exemplo, profissionais de arqueologia, tínhamos de convidar pessoal de fora. Agora convidamos para nos ajudarem, mas somos nós quem inicia o trabalho, sem andar a pedir “por favor”. Dantes não tínhamos também pessoas que soubessem restaurar o património, agora temos. Há património que Macau tenha perdido por não saber como preservar? Macau é uma cidade com uma longa história e a lista de património foi logo elaborada em 1964. Nos anos 1970, uma equipa de escavação de Hong Kong descobriu alguns vestígios em Hac Sá, a iniciativa foi deles, sim, mas depois da transferência formamos a nossa equipa, em 2006 mais ou menos. Mas mal descobrimos vestígios arqueológicos, já nessa altura, preservamos o terreno. Como não reunimos as condições para expor estes vestígios, a melhor maneira foi deixar no local, por isso em Hac Sá existe um parque onde não há construções, para que isso pudesse ser preservado. Não perdemos nada, é uma forma de preservação diferente. É como o campo de futebol na Rua dos Estaleiros em Coloane. É para preservar, para futuramente podermos construir um museu ou espaço para exposição dos vestígios. Que não vai ser para já… Não nos pertence só a nós, também à futura geração. Não podemos aproveitar tudo agora, temos de deixar alguns para o futuro, para que eles possam aproveitar, até com melhores técnicas. Acha que há mais sítios em Macau onde se poderão encontrar este tipo de vestígios? Há mais. De certeza. Imagine debaixo da vila de Coloane… há outra vila, de há três mil anos atrás. Acho romântico, vivemos uma vida em cima, mas lá em baixo tinha outra, da era do Neolítico. Até encontrámos tanques industriais, tão engraçado. Sobre o património, quantos itens classificados é que Macau acumula neste momento? O conceito de património agora é diferente de antigamente. No século passado, o nosso conceito de 1956 era apenas de imóveis. Agora inclui património arqueológico e bens intangíveis. Imóveis temos 128. Quando e quantos vão entrar mais na lista? Este ano, antes de Dezembro. Nove vão ser classificados e depois desta classificação, vamos iniciar outro grupo. O edifício da Rua da Barca, que sofreu demolição parcial, integra a lista? Não. Estamos ainda na fase final de análise da reparação, mas vamos ocupar-nos agora com o processo de classificação, deixando a reparação para mais tarde. Que nove integram esta primeira lista? As muralhas da cidade, que têm três secções, o Armazém do Boi e o Canil Municipal de Macau, por exemplo. São vários conjuntos, não só nove lugares específicos. Há muita gente que defende a inclusão da Escola Portuguesa de Macau (EPM). Devia entrar no património? Pessoalmente, acho que sim. É tão bonita. Mas está já pensada para entrar na segunda lista de imóveis? Estamos a deixar os colegas [do património] considerar. O meu colega, Wong Iat Cheong, Chefe da Divisão dos Estudos e Projectos pode falar disso. W.I.C.: Estamos sempre a considerar edifícios com potencial valor. Quando reunirmos suficientes opiniões [sobre isso] podemos iniciar o procedimento de classificação. Depois vamos ouvir o proprietário, o Conselho do Património Cultural e opiniões e decidimos se vai ou não ser classificado. Que outros edifícios é que o presidente poria na lista, se pudesse escolher? Aprendi a pintar desde muito pequeno, quando andava no liceu. E o meu professor levava-me para os locais para pintar, aí desenvolvi amor pelo património. Se me pergunta quais os imóveis que punha, não consigo enumerar todos. Macau do século XIX e XX era muito bonito. Anos 1970, muito mais bonito que é agora. (risos) Não consegue escolher? Preservava todos os edifícios dessas eras? Se fosse possível (risos). Existe um preço na preservação do património cultural. Trabalho no Museu de Arte de Macau há dez anos e, às vezes, havia cidadãos que doavam relíquias ao museu. Não podemos aceitar todos, os que têm muito valor claro, mas alguns temos de desistir. Há que investir muitos recursos para a preservação. O mesmo acontece com o património. Na nossa lista de 128 itens há mais de 400 edifícios. Numa cidade tão pequena como esta, isto requer um esforço enorme, ainda que valha a pena, porque temos de preservar as características. Se não conseguirmos, é uma cidade igual às outras. Os edifícios de uma cidade são a alma dessa cidade. Como se faz esse processo de separação? É resultado da inteligência e da sabedoria que vamos adquirindo, que já veio dos nossos antepassados e que temos de continuar a preservar. Macau é muito pequeno, só a península tem pouco mais de dez quilómetros quadrados e o Centro Histórico ocupa 1,2 desse espaço – 12% da península de Macau é património. Não existe só o Centro Histórico, existem imóveis que devem ser preservados fora dele. Temos de contribuir com muitos esforços, mas sinto-me satisfeito. É controverso escolher o que integrar na lista? É um trabalho conjunto. Como uma sociedade democrática é importante e normal a discussão. Mas o mais importante é que o processo seja aberto e público. Cabe ao IC fazer uma proposta. A decisão não é do IC. Já sentiu que deveria ter entrado um imóvel na lista que acabou por não ser aprovado? Não, fico contente por existirem tantos, porque quando entrei no IC a trabalhar foi no departamento do património e naquela altura os meus colegas portugueses abriram uma janela para esta situação. Um arquitecto que trabalhava comigo marcava no mapa o património com cor vermelha e agora esses sítios são património. Passou por muitos processos e passou do papel [à realidade]. Sinto-me mais alegre agora, que toda a população pode entrar no processo. Naquela altura, a população não percebia porque é que se tinha de preservar casas arruinadas. Agora a população está mais informada. Mas continua a ser difícil negociar com os proprietários? Sim e testemunhei essa mudança de atitude da população. Muitos dos proprietários é que apoiam esta classificação. Claro que temos que gastar algum tempo para explicar o valor das coisas, a importância. Quando percebem essa importância, concordam com a nossa sugestão. Mas também existem pessoas indiferentes à nossa ideia e temos de seguir a lei, não podemos obrigar os outros a seguir a nossa vontade. Por exemplo, existe uma sala dentro do Templo de Na Tcha, perto das Ruínas, onde havia uma associação que se reunia lá, mas cedeu o espaço ao IC, que passou agora a ser o museu de Na Tcha. Mas o IC foi muito ganancioso (risos), porque quisemos mais, quisemos fazer escavações, porque é dos locais mais antigos da cidade. Eles deixaram, fizemos e percebemos que a forma da Igreja [de São Paulo] original não era original, era em cruz, como nas igrejas da Europa. Percebemos que as pessoas do igreja e de Na Tcha conviviam e a igreja não terminava, antes, no limite que agora termina. Mas isso só foi possível com a ajuda da associação. O IC disse numa resposta a uma interpelação que o Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico estaria pronto em 2017. Em que consiste? W.I.C.: São as medidas previstas na Lei de Salvaguarda, como a manutenção das ruas com as características [antigas], controlo do enquadramento paisagístico, a preservação do contexto da zona e exigências sobre o restauro dos imóveis à forma original. Estão a pensar cortar no número de turistas na zona, por exemplo, ou no trânsito que chega ao Centro Histórico? W.I.C.: Este tipo de medidas tem de ser resolvido através de uma equipa interdepartamental, falamos de coisas mais concretas [sobre o património]. Mas não vão estar na agenda esse tipo de sugestões? W.I.C.: Na fase actual não podemos falar de forma concreta nesse tipo de medidas. O conteúdo será publicado em regulamento administrativo e se incluirmos essas são medidas se calhar é difícil de implementar. Ung Vai Meng com Wong Iat Cheong A Lei de Salvaguarda do Património foi aprovada em 2013 e o plano chega, se tudo correr bem, em 2017. Quatro anos depois, não está atrasado? W.I.C.: O Centro Histórico tem um espaço muito grande e implementar estas medidas vai afectar a vida da população, por isso é que não podemos fazer tudo rápido, temos de pensar bem. Também estamos a aprender e a trabalhar ao mesmo tempo, aproveitando para aperfeiçoar estas medidas. Macau quer integrar mais património na UNESCO? É nosso desejo integrar mais património na UNESCO, claro. Aliás estamos a trabalhar nisto… [quote_box_left]“A preservação do património tem um preço, a ser pago pela sociedade[/quote_box_left] Há algo concreto? Não podemos revelar ainda, porque estamos em trabalhos. Mas há possibilidade disso acontecer. Mas imóveis ou outros bens? Está a acontecer com o nosso arquivo e da Torre do Tombo, em Lisboa, estamos a desenvolver um projecto para nos candidatarmos à secção da Memória da UNESCO. Já conseguimos integrar nas Memórias da Ásia. No ano passado fomos à UNESCO fazer uma apresentação. Também trocámos ideias com representantes de Portugal, que nos disseram que, no futuro, se calhar vai candidatar a calçada portuguesa como património mundial. Macau entra de certeza. Depois dos alertas da UNESCO, como é que está a situação de Macau com a organização? W.I.C.:Depois do incidente com o Farol da Guia, Macau tomou muitas medidas para [respeitar] o património, como regular alturas dos edifícios à volta. A lei também é uma resposta aos alertas da UNESCO. A UNESCO está satisfeita com o nosso trabalho. O grupo Root Planing criou uma petição para manter o Centro dos Toxicodependentes e o antigo armazém dos SS, ao lado do São Januário. Acha que aqueles edifícios têm realmente valor patrimonial? Têm um certo valor, mas perante um maior interesse público, decidimos não preservar, senão não era discutido no Conselho do Património. Por isso é que digo que a preservação do património tem um preço, a ser pago pela sociedade. Outra questão que tem sido levantada, e que levou um arquitecto a pedir a intervenção da UNESCO, é o muro feito no Quartel de São Francisco. São obras de melhoria e estou satisfeito, porque demoliram construções ilegais, que não eram originais. Antes, havia construções ilegais junto desse muro e está tudo preservado agora. A construção nova não pode ser passada como antiga, porque se não, daqui para a frente não dá para distinguir o que foi construído antes e mais tarde. Serve também para demonstrar a nossa sabedoria. A obra foi bem feita? Foi. São compatíveis e estão em harmonia, as construções. Dá para distinguir o que é antigo e novo. Não queremos imitar. Há muitas imitações no Cotai. A Lei do Património é boa? É muito boa. É um instrumento forte, porque antes não conseguíamos proibir as demolições ou obras ilegais. Agora podemos. Atribui força ao IC para proteger o património. Os antigos pareceres do IC não eram vinculativos, agora são. Estou muito contente até poder participar na elaboração e implementação desta lei. Precisa de revisão? Não. Eventos culturais para Macau. Temos algo na manga, algum especial? O Festival Internacional de Música faz 30 anos, por isso estou muito agradecido pelo esforço de terem feito isto há 30 anos. Não se pode imaginar Macau há 30 anos, só com uma ponte, mas com um festival destes. É o mais antigo ao nível da Ásia. Vai ser especial e com muitas surpresas. Depois o Festival de Artes e o de Wushu. Fringe também é organizado por nós agora. E licenças para os músicos tocarem nas ruas de Macau, vamos ter? Sim. Vamos esforçar-nos neste sentido, já temos um plano, tem que ser legal. Espero que depois Macau possa ter muitos espectáculos na rua. Já avistamos a luz ao fundo do túnel. (risos) E uma exposição sua, enquanto pintor? Não. Desde que assumi a posição de director do MAM que parei de expor, por causa do conflito de interesses. Mas vou continuar a pintar. Sou diligente na pintura, como sou um funcionário diligente (risos). Está preparado para continuar à frente do IC? Sim, até quando estiver cansado, quando for um ‘bolo velho’ (risos). Sou o segundo ‘bolo velho’ do IC.