Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 20. O Estripador

*por José Drummond

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Meu Amor. Escrevo-te cheia de medo. Aquele medo que dizem ser o grande motivador. Medo de falhar. Medo de não conseguirmos provar a nós próprios do que somos capazes. Medo de não conseguir ser aquilo que sempre sonhámos. Mas, na verdade, comigo, não é assim. O medo inibe-me. E tenho medo de nunca mais te voltar a ver. E isso não me motiva. Pelo contrário. Destrói-me. Para mim o grande motivador é o amor. O que o medo faz é enublar as nossas percepções e, desse modo, perdermos o sentido do que a realidade pode realmente ser. Toda esta sociedade em que vivemos foi construída sobre o medo. Usa-se o medo para tudo. Os patrões com os empregados. Os países mais poderosos com os mais fracos. Todas estas guerras. Todas estas injustiças. Tudo feito com o uso dessa grande arma opressiva que é o medo. O medo cala-nos. O medo deve ser confrontado. É um grande desafio. Confrontar o medo pela ilusão que realmente é. E só sei uma forma. Há que confrontar o medo com o amor. E o amor que tenho por ti é tão grande. Mas hoje estou cheia de medo. Medo de não conseguir escapar. Quando estava preparada para lhe dizer tudo, como que pressentindo algo, este verme fechou-me no quarto. E quando abriu a porta foi para me dizer que tinha o meu passaporte e que sabia muito bem o que se passava. Assustei-me. Assustei-me tanto. Eu já devia ter lido os sinais. As suas mudanças de humor repentinas. E é por isso que estou cheia de medo. Ainda não sei como vou conseguir fazer-te chegar esta carta. Mas irei conseguir. Irei conseguir porque é o amor que me motiva. O medo inibi-me. E tu tens que saber o que está realmente a acontecer. Estou com tanto medo de amanhã. 14716P12T1

Meu querido Chaoxiong. Não sei como explicar como me sinto quando penso em ti. Hoje à noite sonhei que era uma estilista de sucesso e que preparava as minhas modelos para uma passagem de moda em Xangai. E que o hotel onde estava tinha um restaurante chinês e um ocidental. E que decidi de repente fazer a festa com as modelos no ocidental. Porque sempre quis conhecer o meu pai. Nunca te falei no meu pai. Um francês que trabalhava na bolsa de Hong Kong que desapareceu por altura da transferência. Ele e a minha mãe tinham-se casado um ano antes e a minha mãe estava grávida de 6 meses quando ele desapareceu. Descobriu-se posteriormente que ele poderia estar ligado a um esquema de subornos de um membro influente da sociedade de construção e que ao recusar continuar possa ter sido envolvido nalgum caso de débito com as tríades. Nada está provado. Eu continuo a acreditar que ele está vivo em algum lugar. No meu sonho eu dirijo-me a esse restaurante e entro na sala de banquetes para ser recebida com forte aplauso. Mas sinto-me tão cansada apesar de tão feliz pelo meu sucesso. Tu levas-me até ao meu lugar e em segredo dizes-me que agora eu posso descansar e que de seguida iremos fazer a nossa sonhada viagem à volta ao mundo. E falas-me de sítios exóticos. Com praias paradisíacas. E eu oiço a tua voz em sussurro. Com nomes de sítios que ecoam felicidade. Bahamas. Seychelles. Maldivas. Eu nuca soube para onde viajar. Estas tuas sugestões no meu sonho são lugares-comuns. Mas toda esta minha vida é um lugar-comum. Toda esta minha canseira e infelicidade por não estar contigo é um lugar-comum. Até o medo é um lugar-comum. E eu não quero deixar que o medo me leve ao desespero. O desespero é uma doença mortal. Uma doença do espírito. Um abismo. Um abismo de desespero.

Chaoxiong deixa-me dizer-te, neste ano de 2029, que eu, uma mulher com 37 anos, ainda acredito na felicidade porque tu existes. Deixa-me dedicar-te um poema de uma poetisa americana que muito admiro. Sylvia Plath. Conheces? Chama-se “Mad Girl’s Love Song” e é como eu me sinto hoje. Uma “mad girl”.

“I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(I think I made you up inside my head.)

The stars go waltzing out in blue and red,
And arbitrary blackness gallops in:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I dreamed that you bewitched me into bed
And sung me moon-struck, kissed me quite insane.
(I think I made you up inside my head.)

God topples from the sky, hell’s fires fade:
Exit seraphim and Satan’s men:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I fancied you’d return the way you said,
But I grow old and I forget your name.
(I think I made you up inside my head.)

I should have loved a thunderbird instead;
At least when spring comes they roar back again.
I shut my eyes and all the world drops dead.
(I think I made you up inside my head.)”

Não fiques triste meu querido. E não tenhas medo. O medo inibe e é mau para todos. Não deixes que esta minha carta não te faça acreditar. Acredita meu doce.
Para sempre tua.
Daphne.”

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