Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 14 – O homem sem rosto

*por José Drummond

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que descobriste no resto da casa? A viúva tem estado aqui perdida em memórias de coisas e parece querer nos propor uma saída. Ela ainda não percebeu que estás aqui. Esse é o nosso trunfo. Recordas-te de como para todos os movimentos que fizeste esboçavas  uma versão preliminar para me mostrar? Uma  pintura que tinha por base todos os desenhos, todos os movimentos. O que ela não sabe é que não foi apenas dor. Foi também prazer. Nas ondas ondulantes de luz e verde escuro. Naquele dia que tanto querias pintar a plantação de chá. Depois da separação. Recordas-te de como quando ainda eras  estudante de liceu, e não tinhas ideia nenhuma do que querias ser quando fosses grande? Não tinhas ideia de como a pintura te iria envolver. 
A viúva fala-me do filho. De como ele terá  fugido para Kyoto, e que, em seguida, se terá perdido.  Ele perdeu-se à tua procura. Mas o que permanece na minha mente são os campos de chá. Lembras-te de como as folhas se aveludavam, às vezes, ao final da tarde, às vezes, ao meio-dia, às vezes, à noite. Por isso a visão daquela plantação de chá, aquela tristeza da despedida, nos teus olhos muito abertos. Duas consonantes, de repente pressionadas  por encostas verdes. Os teus olhos uma vez discretos tocaram o meu coração. Naquela tarde, ao longo da linha ferroviária, havia montanhas, lagos, o mar, e, por vezes, até mesmo nuvens tingidas com cores sentimentais. 
Mas talvez esta melancolia não seja verde. Talvez nem seja melancolia. Talvez sejam apenas as sombras que são melancólicas. Sombras tardias e através delas a dor. Sombras como pequenas encostas, bem cuidadas, com sulcos profundamente desenhados. Sombras que não a natureza em estado selvagem. E as linhas de arbustos de chá. Arredondados os arbustos. E ao fundo, rebanhos de ovelhas. Mas sabes, afinal talvez esta melancolia seja mesmo verde. De um verde suave. 

A única coisa que eu preciso agora é uma vida de contemplação. Lembras-te de quando apareceste à porta daquela cabana? Era inverno, e eu não fazia a barba ou cortava o cabelo desde que te tinhas ido. Lembras-te que quando chegou a primavera eu cortei o cabelo e fiz a barba e nesse mesmo dia comecei a construir uma varanda. E por essa varanda podia-se ver apenas um jardim. O nosso jardim. Uma varanda completamente coberta pelo nosso jardim. Aquele que tratámos como se dele dependesse a nossa existência. Como se tudo dele dependesse. O dia e a noite. Eu e tu. E, consequentemente, o facto de eu conseguir ou não ver-te. Um jardim, cortado por um corredor principal, oblongo, com cerca de metade sempre banhada pelo luar. Um jardim, onde até mesmo os degraus que davam até à porta traseira da cabana, tinham cores diferentes de tudo o resto à volta. Nesse jardim uma azália branca com bordo escarlate floresceu na sombra, e parecia estar sempre a flutuar. O seu bordo escarlate ficava perto da varanda e ainda tinha pequenas pétalas frescas. Embora que escurecidas pela noite essas pétalas brilhantes soltavam um perfume próprio. A metade do jardim que não era banhada pelo luar tinha uma cobertura de musgo. Uma cobertura que servia um longo banco de pedra onde nos sentávamos. Como esse jardim se tornou tão familiar. Estávamos acostumados a vê-lo a todas as horas. Tu sempre sentada, com a cabeça levemente abaixada, com os olhos fixos na metade enluarada do jardim. E, eu? Eu, como tu, simplesmente viciado a tudo isto, como miséria e dor.

A viúva deu-me uma droga qualquer e começo a sentir-me tonto. Estou aqui preso. Preso agora num lugar diferente e de modo diferente. Estou preso e ainda não percebi porque raio está ela contar esta história do seu passado. O que poderá ter tudo isso a ver com a nossa situação. Não consigo manter-me acordado se não continuar a falar contigo. Lembras-te quando de repente uma pintura diferente apareceu nas tuas telas? O tom abstracto que não deixava perceber se eram peixes na água ou nuvens no céu. Eu nunca havia visto aquela combinação de cores. Certamente que aquela pintura era um passo bem diferente da pintura tradicional de flores que nos havias habituado. Uma pintura sem formas reconhecíveis e com cores ainda mais fortes e mais variadas do que as que usavas nas pinturas de flores. Provavelmente porque era composta por muitas linhas horizontais. À primeira vista não parecia haver muita harmonia nas cores. É claro que não havia nada aleatório ou casual sobre isso. Talvez por isso deixava em aberto a possibilidades de uma qualquer outra interpretação. Por um lado eu sempre quis pensar que existiam talvez sentimentos subjectivos aparentemente escondidos. Muito tempo olhei à procura do coração da imagem. Não o encontrei. Um dia fiquei assustado quando aquilo que li foi ciúme. Gradualmente comecei a ler naquela pintura não o crepúsculo da vida mas a realidade da tua existência. Não eram peixes na água nem nuvens no céu. Era um auto-retrato teu nesta tua nova forma.

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