Entrevista MancheteRui Lourido, presidente do Observatório da China: “Hoje trabalha-se na Europa para se ser pobre” Andreia Sofia Silva - 11 Mar 2016 Rui Lourido olha para a China de hoje como um país que tem muito a dar à Europa e sobretudo a Portugal, onde os investimentos chineses continuam a ter uma conotação negativa que, segundo o presidente do Observatório da China, é preciso combater. Rui Lourido diz que hoje há uma maior garantia dos direitos laborais na China, por oposição a muitos países europeus Os ministros do anterior Governo português realizaram várias visitas oficiais a Macau. É um território que recebe hoje uma maior atenção de Portugal face aos anos anteriores? Penso que estamos numa nova fase de Macau, graças ao desenvolvimento enorme trazido pelo Governo de Macau em vários níveis, e também da sua influência na China. A [RAEM] é uma cidade que tem também conseguido uma expansão da sua influência, por ter conseguido estabelecer aqui o Fórum Macau. A defesa do património tem sido coerente e tem permitido apresentar a recuperação de edifícios antigos. O governo português fez um óptimo trabalho também a esse nível, na feitura de museus e na recuperação do património religioso, mas o Governo chinês da RAEM tem sido exemplar a esse nível. Tem inclusivamente alargado a preservação da calçada portuguesa em ruas onde esta não existia anteriormente. O património e a influência de Macau foram áreas de grande sucesso e a integração de quadros que vêm da própria China permitem trazer para Macau uma outra influência. Esse diálogo entre o continente e as regiões administrativas é uma mais valia. Foi também um sinal de inteligência política ter conseguido transformar Macau numa cidade que é património mundial da humanidade e também a criação do Fórum Macau a continuar e a aumentar as relações com a lusofonia, nomeadamente com o Brasil. Considera então que o Fórum Macau tem desempenhado bem o seu papel? Não digo que tem desempenhado o que podia desempenhar. O que digo é que a existência do Fórum Macau é extremamente positiva, é uma mais valia para o território porque diz aos territórios da China que os chineses de Macau têm uma mais valia que as outras regiões chinesas não têm. Há uma ponte com a Europa, com África e a Lusofonia. Isso valeu no século XVI, é por isso que Macau existe, e sempre foi uma presença pacífica e por mútuo acordo, que foi continuada numa outra vertente pelo actual Governo da RAEM que, compreendendo esta peculiaridade de Macau, a apresenta na própria China como uma forma de ter um outro palco político e uma outra visibilidade. E aí também Macau pode desenvolver-se de forma mais intensa cultural e economicamente. É necessário esse desenvolvimento, já que Macau é a cidade do Jogo por excelência? Penso que não só e fundamental como é urgente. É urgente que Macau diversifique as áreas económicas, é uma preocupação do Governo e do próprio Governo Central e isso é importante para a sustentabilidade do desenvolvimento económico e urbano de Macau. O peso dos casinos é excessivo porque na realidade a grande parte da população trabalha [lá] e há que encontrar alternativas nas actividades das indústrias criativas. Em muitos países as actividades das indústrias criativas ocupam já uma parte importante do seu tecido económico. Áreas de edições, de turismo, que não tenham a ver com o Jogo. E a área cultural, porque Macau é uma sociedade multiétnica que é, em si própria, uma mais valia para o tecido urbano e económico da cidade. Talvez na área cultural o Fórum devesse ter um papel mais activo, na transmissão da cultura milenar chinesa e das características de Macau na lusofonia. O Fórum podia pensar não só pensar em iniciativas económicas e empresariais mas organizar também iniciativas que levassem uma ópera de Pequim, um grupo de teatro. Isso permitia combater a percepção que há na Europa de que “enfim, vêm aí os chineses que compram tudo”. Em Portugal há uma ideia de que as empresas chinesas estão a investir em tudo e isso é encarado com um certo negativismo. É preciso combater esse sentimento? Sim, é necessário combater no sentido em que é preciso ser realista. Na realidade os povos sempre circularam. Os europeus são indo-europeus, todos os povos que temos na Europa vieram de zonas euro-asiáticas e esquecemos essa origem multiétnica. A população portuguesa tem tido uma estabilidade que é agora questionada pelas novas populações e emigrantes e também homens de investimento. Vieram da Europa do Leste, da América Latina e agora temos o chinês. O Observatório da China rapidamente compreendeu que necessitava de ter um papel de divulgação cultural no sentido de ultrapassar essa visão do desconhecido da Europa e de Portugal sobre a China. É esse desconhecimento que leva à aversão, à recusa daquilo que é diferente de nós. São reacções naturais da população europeia, mas que não são aceitáveis. Rapidamente começamos a organizar vários projectos (ver texto secundário). A China hoje em dia tem um crescimento de 7%, mas mesmo que desça é um crescimento imenso que não tem outro país na Europa. A própria economia chinesa contribui para o desenvolvimento da economia do mundo. Mas essa economia tem gerado questões sociais dentro da própria China, sobretudo com a questão da poluição. Podemos ver uma maior separação entre a sociedade e o sistema político? Naturalmente que sim e todo o Ocidente andou desde a revolução de Mao Tse-Tung a exigir à China que se abrisse ao mundo e que se tornasse capitalista. E quando essa nova política se implantou e essa abertura se concretizou, claro que as diferenças entre ricos e pobres aumentaram, mas esse era um objectivo do Ocidente, para poder vender os seus produtos na China. Se todos tivessem o mesmo nível de desenvolvimento na China não era possível termos uma classe média com poder de compra. Não podemos ter dois pesos e duas medidas e sermos hipócritas e dizermos “vocês estão a ser demasiado capitalistas”. Naturalmente que as diferenças sociais têm-se ampliado, mas isso é uma coisa à qual os governos têm de ter atenção, porque para o desenvolvimento ser sustentável há que dar poder de compra às pessoas e aumentar os salários mais baixos. O que assisto na China é isso: há um salário mínimo estabelecido para o campo, outro maior para as cidades e existe um quadro jurídico que a pouco e pouco se vem desenvolvendo e que dá mais garantias aos cidadãos. Isso é uma coisa que no Ocidente vem regredindo. Na China há direitos de manifestação e salariais, em Portugal e noutros países da Europa tem-se degradado o grau de sindicalismo, de correspondência entre horários e o salário. Acha-se normal pagar às pessoas com recibos verdes ou salários abaixo do salário mínimo. Há diferenças, portanto… Hoje em dia trabalha-se na Europa para se ser pobre, passa-se fome em muitas famílias. Há que ter a noção da realidade: a China está a conseguir ampliar o nível das pessoas que acedem a um nível médio de riqueza, e a classe média está aí para mostrar isso. Cem milhões de pessoas na China saíram do limiar da pobreza. É preciso desenvolver a liberdade de expressão e com a presença dos intelectuais e de todos aqueles com espírito crítico para que haja uma renovação sustentável. Ao nível do ambiente, vem sendo degradado desde há 40 anos. O próprio Governo Central pôs o ambiente como um objectivo prioritário nos seus planos quinquenais. Numa sociedade evoluída há sempre contradições, mas o que é preciso é que a sociedade civil esteja atenta, com a sua massa crítica, e contribua para chamar a atenção. Mas não deixa de ser interessante observar que nos últimos anos os chineses procuram sair do seu próprio país. Isso revela o desejo de conhecer o mundo, aliado ao desenvolvimento económico, ou é uma forma de mostrar descontentamento? É uma tendência das classes médias de tentarem buscar para os seus filhos aquilo que concorrencialmente é o que dá mais instrumentos a uma ascendência social e a uma sociedade de elite. Os chineses regressam, como regressaram aqueles que hoje estão a ocupar cargos na área cultural e até da administração. Aqueles que trabalham nas áreas científicas, culturais e até na Administração são os chineses que estudaram na América e exterior e regressaram. Mas há na realidade uma sociedade civil mais atenta e isso é um factor positivo. À medida que vai surgindo um maior conhecimento, a cultura traz sempre a inquietação e um maior conhecimento de nós próprios. A saída de turistas chineses e de cidadãos chineses é um óptimo factor porque desenvolve o turismo europeu e as nossas economias e porque trazem ideias novas e também a sua cultura. A Europa tem de se adaptar à forma de vida na China. Na China nunca se viveu tão bem como agora, e dizemos que o mundo está em crise, mas está em crise o modelo ultra financeiro seguido no Ocidente… Se calhar continua-se a pensar muito a Ocidente e muito pouco a Oriente. Exacto. Dez anos a aproximar culturas A comemorar dez anos de existência, o Observatório da China transformou-se de uma plataforma de académicos para uma entidade que tenciona aproximar mais a China a Portugal. “Recebemos o Governo de Cantão e de Jiangsu e ambas as regiões pretendem estreitar relações com Portugal e com o mundo lusófono. O Observatório da China tem esta vocação cultural e vai levar a ópera de Cantão a Portugal em Dezembro, para além de organizar o segundo Festival Internacional de Cinema Chinês e do Olhar Lusófono em Outubro. Também vai decorrer em Outubro uma conferência para discutir em que medida a Europa pode participar no projecto que a China apresentou “Uma faixa, uma rota”, disse ao HM Rui Lourido. Outro projecto do Observatório da China, disponível online desde o ano passado, é a biblioteca digital de Macau, com obras digitalizadas e disponíveis de forma gratuita, correspondentes aos séculos XVI a XIX. “Trata-se de um manancial tão diversificado que permite estudar a história de Macau nesse período e também os sítios por onde os portugueses navegaram até chegar aqui. Este projecto pretende aproximar Macau ao mundo”, disse Rui Lourido. A Fundação Macau apoiou financeiramente esta biblioteca.