Alimentos | Mais de 20% dos resíduos são comida que podia ser transformada em adubo

Tratar dos resíduos de comida em Macau ainda não é uma moda que tenha pegado e, todos os dias, milhares de alimentos vão para o lixo. Por vezes tão intactos que poderiam ser aproveitados para alimentar outras bocas. O IFT aposta na transformação de comida em adubo e existem hotéis que pedem a recolha destes restos. Toneladas vão parar onde não devem

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m todas as casas, restaurantes, escolas e mercados o desperdício de comida é geral. No mundo desenvolvido, em todos os países onde a cultura do buffet é apreciada, quilos e quilos de comida vão para o lixo. Macau não é excepção. Diminuir este desperdício seria algo relativamente fácil, mas é algo que depende da consciência das pessoas.
Do total do lixo produzido em Macau, cerca de um terço diz respeito a resíduos alimentares. Uma enorme quantidade segundo especialistas ouvidas pelo HM, num território onde a recolha deste ‘lixo’ e a tecnologia de processamento da comida em adubo ainda não está popularizada – apenas algumas escolas, mercados e hotéis a praticam.
Segundo os dados da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA), o Centro de Incineração de Resíduos Sólidos tratou, no ano passado, 1240 toneladas de resíduos. Os restos de comida ocuparam 20% a 40% dos resíduos – entre 248 a 496 toneladas.
Para o presidente da Associação de Ecologia de Macau, Ho Wai Tim, a quantidade é substancial. O especialista indica, contudo, que este tipo de restos contêm muita água, o que faz a máquina de incineração precisar de mais combustível e utilizar uma grande carga de electricidade.
Contudo, na realidade, como o HM testemunhou, o tratamento dos desperdícios alimentares pode não ser assim tão difícil. Prova disso mesmo é a existência de máquinas de desintegração de resíduos alimentares: uma existe no centro de incineração e outras estão colocadas em sete mercados públicos, no Instituto de Formação Turística (IFT) e em vários hotéis.
Frida Law é técnica superior do IFT e acompanha-nos numa visita ao campus da instituição. Desde o local onde é feita a separação dos resíduos de comida, até à máquina de reciclagem destes, o HM é convidado a ver tudo.
“Na cantina, a comida é oferecida em forma de buffet. Pedimos aos nossos estudantes que valorizem os alimentos e só levem a quantidade de comida que conseguirem acabar. E. quando terminam as refeições e precisam de despejar os restos, estes têm de ser postos em diferentes caixotes”, começa por nos dizer. dentro da máquina
O primeiro recolhe arroz, massa, legumes e carne, mas não sopas, para evitar o mau cheio. Outro recolhe ossos e peles de fruta, alimentos que são mais duros e que precisam de ser desfeitos pela máquina de trituração, antes de passar para a máquina de desintegração.

Frida explica-nos que, através da tecnologia biodegradável da máquina, entre seis a 24 horas, oito quilos de resíduos tornam-se num quilo de adubo. Adubo que serve como fertilizante para todas as plantas do campus.

[quote_box_right]“No interior da China, o Governo e as associações sem fins lucrativos contactam directamente os hotéis para que os restos limpos da comida de buffet sejam transportados para lares de idosos, ou centros de portadores de deficiência” – Ho Wai Tim, presidente da Associação de Ecologia de Macau[/quote_box_right]

Sistema parado

A Divisão de Higiene Ambiental do Instituto para os Assuntos Cívicos Municipais (IACM) assegura ao HM que existem as mesmas máquinas do IFT nos setes mercados públicos – no Iao Hon, Taipa e Patane, Toi San, S. Domingos, S. Lourenço e até no Mercado Abastecedor Nam Yue. No entanto, a recolha dos resíduos dos vendedores de legumes ou carnes e de comidas cozinhadas não é obrigatória. Apenas “aconselhável”.
E o tratamento dos resíduos não tem acontecido. Ao visitar o mercado de S. Lourenço, testemunhámos que o sistema está parado. Empregadas de limpeza e vendedores disseram ao HM que a máquina de reciclagem dos alimentos parou de funcionar há mais de um mês, devido às “queixas de mau cheiro”.

Confrontado com a questão, Ho Wai Tim concorda. Considera que essas máquinas não são adequadas, nem têm aceitação popular, porque ficam perto das casas da população. O presidente da Associação de Ecologia sugere que os resíduos dos mercados sejam antes recolhidos pela DSPA e, ao mesmo tempo, que seja criado um centro único de tratamento destes desperdícios alimentares.
“Acredito que a tecnologia já está madura em Macau. Prevejo que, no início da criação desse centro, poderiam ser tratadas 25 toneladas de alimentos. Mais tarde cem toneladas e até se poderia atingir as 300 toneladas – o total dos resíduos de Macau”, frisa, convicto.
Já o IACM explica que, “de facto, o cheiro não é tão mau, mas os vendedores acham que pode influenciar os seus negócios”. O IACM assegura ao HM que vai melhorar “a ventilação do sítio onde está colocada a máquina” e que esta vai ser ligada novamente.
Se a reacção face a esta máquina parece menos boa da parte de quem produz mais deste tipo de resíduos, o IFT não parece estar muito preocupado com a situação. Frida Law assegura-nos que todos os estudantes têm em conta as regras e que a máquina “não produz mau cheiro, nem é assim tão nojenta”.
“Para mim é como assar um porco”, disse, enquanto abria a tampa da máquina do campus. Lá dentro, podemos ver um pó de cor castanha escura. Frida explica-nos que todas as quartas-feiras e sábados de tarde não se despejam resíduos no espaço, para que os que ainda lá estão assentem.
O processo pode parecer complicado, diz-nos, mas basta saber as técnicas. Uma delas, curiosamente, é perceber por exemplo que os adubos feitos nestas máquinas podem estragar as plantas se os ‘ingredientes’ utilizados não forem bem misturados.
“[Uma vez] não equilibramos a proporção de resíduos de legumes e carne e os adubos tinham muita acidez. As plantas morreram depois de serem plantadas com aqueles adubos. Desde então sabemos a necessidade dessa neutralização”, explica-nos.
Frida Law considera que, sendo o IFT uma instituição pública, tem a responsabilidade em educar e promover a valorização de comida. Isto, porque a utilização da máquina pode não só reutilizar comida que iria para o lixo, mas também diminuir a quantidade dos alimentos que teriam esse fim.
“No início da utilização da máquina, em 2011, todos os dias recolhíamos 25 quilos de resíduos. Gradualmente, com a promoção aos estudantes, os resíduos diários chegaram aos 11 quilos diários. Isso mostra que a consciência deles aumentou.”
Consciência que, na opinião da responsável, não existe, porque as coisas ainda funcionam muito à base do desconhecido.
“Porco cru, galinha morta, gordura, sopas e comida cozida… tudo é posto na máquina, claro que há mau cheiro. Se fizessem a separação que fazemos, como não colocar lá a sopa, o cheiro seria evitável. Creio que se apenas as empregadas fazem a separação, é muito difícil. Se todos ajudarem, passa a ser fácil. Não é complicado, é uma questão de consciência” disse, quando soube que a máquina de separação do mercado está parada devido às queixas de mau cheiro.
Frida não tem dúvidas: as pessoas sabem o que é despejado nas máquinas e é só por isso que as queixas surgem. Além disso, os mercados fazem negócios e isso é prioridade.

Tantos restos

Além dos mercados e das instituições de ensino superior, os hotéis e os estabelecimentos de comidas e bebidas – sobretudo os que oferecem buffet – são os que produzem mais desperdícios de comida. Num local como Macau – onde os buffets ultrapassam uma dezena -, a DSPA criou um Prémio de Hotel Verde de forma a “elogiar os empreendimentos que cumpram a responsabilidade social de protecção ambiental e valorização de comida”. O índice “diminuição de resíduos de cozinha” faz parte da avaliação, mas as coisas nem sempre funcionam como na teoria.
No total, há cinco hotéis – Taipa Square, Grandview, Grand Emperor, Waldo e Beverly Plaza – que incumbiram a DSPA de recolher estes resíduos. O Hotel Galaxy, que ganhou o prémio de prata do Hotel Verde em 2014, reutiliza os restos de comida dos restaurantes para a cantina de funcionários, “quando assegura a higiene da comida e a quantidade suficiente”, enquanto os restaurantes de outros empreendimentos, como da Sands, não enviam a comida nem para a cantina dos funcionários, nem para outros sítios. Ao HM explicam que “fazem o melhor para minimizar os restos de cozinha e de buffet”.  
Ao consultar os restaurantes dos hotéis que oferecem buffet, o HM conseguiu perceber que o Grand Orbit e o 360 Café na Torre Macau não recolhem os resíduos de comida. Já o Hotel Sofitel do Ponte 16 – que ganhou também o prémio de bronze de Hotel Verde em 2013 – não foi capaz de nos dar uma resposta concreta. A funcionária das relações públicas, de nome Tracy Tam, respondeu-nos que, devido à actualização do sistema de tratamento de resíduos e à alteração do pessoal da direcção, não há disponibilidade para oferecer informações sobre o assunto.
Foi, contudo, um dos restaurantes deste local que despertou a atenção de uma residente local, que contou ao HM o que viu após um buffet de almoço.
“É demasiado desperdício alimentar. Tínhamos acabado de almoçar, passava das 14h30 e o buffet estava quase a fechar. Havia imensa comida, incluindo pão e sobremesas, e tudo, tudo, estava a ser empurrado para dentro de caixotes cinzentos de plástico. Ia tudo para o lixo. E era comida intacta. Estava boa. Até perguntei porque é que não a davam ao lar de idosos em frente, ou até aos funcionários. A resposta: não pode ser”, conta-nos Rita.
A história não é a única. Un Cheng trabalha como empregada numa sala de banquetes do Hotel Wynn – o qual nunca ganhou o Prémio do Hotel Verde desde a criação em 2012 – e contou-nos que a quantidade de pratos nas festas chinesas é grande e normalmente os convidados não conseguem acabar todos os pratos.
“No tipo chinês de banquete, existem 14 pratos para cada mesa de 12 pessoas, incluindo leitão, frango, peixe, arroz, massa, legumes, frutas e sobremesas. São muitos, quase nenhuma mesa consegue acabar toda a comida”, revela, contando-nos que, muitas vezes, os empregados guardam o resto dos pratos em segredo. “Alguns restos de comida são muito preciosos, aproveitamos e comemo-los atrás da sala. Mesmo assim, não conseguimos acabar a comida, só que temos de a deitar no lixo. Se fôssemos descobertos pelos gerentes [a comer], ou a levar alimentos para fora do hotel podíamos ser despedidos.”
A trabalhadora não sabe se existe reciclagem dos desperdícios alimentares, mas reparou que as empregadas da lavagem apenas despejam os resíduos num caixote, sem separação de outros tipos de lixo. Mas o que é certo para ela é que a quantidade de resíduos é grande.

[quote_box_left]“Em Macau, os hotéis têm medo dos perigos de higiene e preferem deitar [a comida] nos caixotes em vez de a oferecer a outros. Isto é uma questão de responsabilidade social” – Ho Wai Tim, presidente da Associação de Ecologia de Macau[/quote_box_left]

Tratamento não chega à população

O presidente da Associação de Ecologia de Macau considera que o Governo não toma medidas suficientes para evitar o grande desperdício alimentar produzido por hotéis. E Ho Wai Tim concorda exactamente com o que Rita pensa.
“No interior da China, o Governo e as associações sem fins lucrativos contactam directamente os hotéis para que os restos limpos da comida de buffet sejam transportados para lares de idosos, ou centros de portadores de deficiência. É muito comum. Mas em Macau, os hotéis têm medo de assumir os perigos de higiene e preferem despejar nos caixotes em vez de oferecer a outros. Isso é uma questão de responsabilidade social.” 
 Ho Wai Tim sugere que o Governo crie instruções de higiene para que os hotéis eliminem os receios e que o transporte de restos de comida possa ser feito para outras instituições.  Mas, apesar de todos os equipamentos existentes, será que a recolha de restos de comida pode chegar a cada casa de Macau?
A Divisão de Higiene Ambiental do IACM admite que o tratamento ecológico dos resíduos de cozinha ainda não pode ser popularizado em geral, sendo que só o organismo é que recolhe os restos em associações sem fins lucrativos como lares de idosos, jardins de infância e escolas. Mas tudo depende da capacidade e “a capacidade da máquina principal da Taipa é limitada”, pelo que “não podem ser recolhidos todos os resíduos de cozinha feitos pela população, portanto actualmente só vêm de certos lugares”, como nos diz o organismo.
 No futuro, o IACM pensa em implementar também máquinas de desintegração de desperdícios alimentares em edifícios habitacionais, para que a tecnologia possa ser promovida entre os residentes em geral. Ho Wai Tim acredita também que essas instalações podem ser integradas na vida da população gradualmente: por exemplo, primeiro nas habitações públicas e depois nas privadas.   
 

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