Como vão agora recortar-me, à noite, no Tap Seac?

[dropcap style= ‘circle’]E[/dropcap]xiste a tendência nalguns arquitectos de olharem as cidades mais como “territórios de caça” do que como espaços de cidadania. A atitude é, de certo modo, compreensível: caberá na sua ânsia natural de deixar marcas no espaço, ainda que para isso seja necessário apagar marcas anteriores e alheias.
É precisamente neste ponto que intervêm os políticos, enquanto putativos defensores da cidadania e de valores que não constam, provavelmente, da cartilha ensinada nas escolas de arquitectura. É obrigação dos representantes do povo refrearem, por vezes, os ímpetos criativos daqueles a quem encomendam obras ou pareceres, pois na sua relação de deveres cívicos deverá constar, antes de mais, uma perspectiva alargada, que inclua valores aparentemente distantes do frenesim criativo/construtivista.
Sem ser um especialista na matéria, parece-me que a fachada do Hotel Estoril é um exemplo único em Macau de uma época da arquitectura. Para além de ser bonita. Eis um argumento subjectivo que tenciono desenvolver, invocando ainda outros aspectos, difíceis de incluir na categoria estética:

(Quantas vezes, noites afora, dias adentro, a pé pelo Tap Seac, não dei por mim a viajar naqueles círculos estranhos, no jogo de luzes e sombras que exibem e sobretudo quando, num repente, se autonomizam das paredes e flutuavam pela praça? Seriam bolas de sabão? Espuma caída das banheiras, fedor intenso a sabonete barato ou perfume de pele em extinção? E por que razão me encontro, num mesmo repente, numa outra era, de carros ronceiros, mulheres singularmente vestidas como nunca mais aconteceu e nela me deleito, sem nunca a ter vivido? E como me acontece, do outro lado da praça, percorrer-lhe o contorno e imaginar-lhe suspiros, contradanças, emoções de corredores e de aquário? hotel estoril
Não sei a resposta a nenhuma destas perguntas. Mas há uma presença, a minha e a dele, a do hotel, daquele edifício que, num repente, me transporta porque é metáfora e é inesgotável.
Entrei duas vezes no Hotel Estoril. Duma por julgar ali haver um bar. Que existia mas não o era. A segunda para, bebendo um whisky, contemplar as raparigas numeradas por detrás de uma vidraça.
Não me move a memória, nem os afectos. É outro algo, da ordem do fantasma, da perda de quem simplesmente passa e cuja ligação se estabelece na repetição, na familiaridade. Talvez o terror obscuro de mais uma perda. Havia uma sombra, um perfil, um carácter, uma utopia, que me foram crescendo interiormente, à medida que os passos atravessaram o Tap Seac ou da janela do táxi dava conta de um detalhe, de uma perspectiva singular, quando não aberrante. O interior não interessava. Como quase tudo em Macau, a importância emanava da fachada. Houve de tudo e isso é tudo. Onde dançarão amanhã as bolas de sabão?…)

Seria mesmo património. Infelizmente para as gentes como eu, cuja sensibilidade se prende aos sítios e à construção dos espaços, isto não interessa nada a outros. Para eles, conta a marca do presente, o que impede a presença do meu prazer futuro. Soa egoísta. É e não é.
Em termos absolutos, é possível que a fachada do Estoril não seja nada de raro. Mas não o será no contexto de Macau? Parece-me absolutamente que sim. Não me lembro de outro edifício local que, do mesmo modo horizontal, displicente e gracioso, com a mesma dimensão, exiba os traços de um período da arquitectura que, entre outros lugares, facilmente ligaria Macau à cidade de Pangim, em Goa.
A questão não reside sequer, como o leitor já deve ter intuído, em pormenores de academia. Na verdade, só pode dizer que a fachada do Hotel Estoril não interessa, no contexto da praça, quem nunca a atravessou dez vezes. Ou quem o fez sem levar o coração. Porque o peito era oco ou a carteira ansiosa. Ou por outra razão qualquer, firmemente legitimada num parecer, num doutoramento, num ditame de um sábio e no bolsar de um profeta. E todos teremos razão.
Mas digam-me então senhores sábios: como vão agora recortar-me, à noite, no Tap Seac?

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Isabel Burguete
Isabel Burguete
27 Jul 2015 20:44

Infelizmente para os Governantes, a opinião do cidadão não importa nada mesmo. Interessa sim construir, destruir o que está velho, em vez de lhe dar uma cara nova, ou mesmo outra finalidade.
Se não for Casino que seja algo de útil, como alguma Associação, salas de Estudo, salas para Gente que queira aprender algo.
Tanta mão de obra…deitada fora.
Por mais milhares de ideias que se dê a única que conta mesmo é a dos Grandes..
Não deixa de ser Património deitado abaixo…
Vamos vendo os desenrolar deste capítulo…
Sempre vai o Arquitecto Siza Vieira?? deitar mãos à obra??