“Os Resistentes – Retratos de Macau” #4

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
17 Dez 2016

Balla – “Contra a Parede”

“Contra a parede”

Se te tocar volta atrás.
Há um crescer, te bater.
Mas tu não, tu só, tu só
tu não vais voltar.

P’ra quê fugir se me vais encontrar,
sei ao que vou,
sei ao que vou.
Voltar atrás e não ter de escolher
não quero ouvir
não quero ouvir.
Imaginar não é mais que mentir
na tua voz,
na tua voz.
Cortar a corda, cortar a valer,
verde escolher,
verde escolher.

Se te sentir a tocar
e há um crescer, te bater.
Dei um passo atrás,
atrás.
Não nos vou salvar.
Como gostava de fingir
que nada disto aconteceu
se alguém o não vai consentir
sou eu.

P’ra quê fugir se me vais encontrar,
sei ao que vou,
sei ao que vou.
Voltar atrás e não ter de escolher,
não quero ouvir,
não quero ouvir.
Imaginar não é mais que mentir
na tua voz,
na tua voz.
Cortar a corda, cortar a valer,
verde escolher,
verde escolher.

Balla

ARMANDO TEIXEIRA / MIGUEL CERVINI / JOÃO TIAGO / PEDRO MONTEIRO / DUARTE CABAÇA

2 Dez 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #3

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
20 Nov 2016

A alquimia de transformar a escuridão

O último álbum de Leonard Cohen
O último álbum de Leonard Cohen

[dropcap]U[/dropcap]m mês depois de completar 82 anos, Leonard Cohen ofereceu ao mundo o seu, agora confirmado, último álbum. “You Want it Darker” não é só mais uma viagem do compositor, poeta e cantor canadiano, à melancolia da existência. Agora, visto à luz da sua recente despedida, é o adeus sóbrio e sublime de um dos grandes nomes da canção dos últimos 50 anos.

Leonard Cohen abre o disco com o tema que lhe dá nome e faz antever a morte, em que o “I´m ready my lord” não é só mais um verso, mas sim a assinatura da canção. A playlist que se segue, faixa a faixa, não é menos consciente.

“Treaty” é uma verdadeira metáfora de amor e angústia perante a vida. Um tema de cansaço que, agora, se pode associar ao seu debilitado estado de saúde e à impotência perante o inevitável. O tão almejado “tratado” regressa na última faixa de “You Want it Darker”, agora num frenesim de cordas que marcam o abrir de portas do fim do disco e de 50 anos embalados pelos temas de Leonard Cohen.

A voz grave, que mais parece vinda das entranhas da melancolia, continua pelo álbum fora. Limpa, como a verdade que Cohen aponta tema a tema, e cortante em cada palavra que entoa.

“I´m travelling light, it´s au revoir” é só um verso que abre mais uma canção, já com “You Want it Darker” a meio. Uma canção entre bandolins e coros, que o cantor tanto honrou ao longo da carreira, num convite a uma dança harmoniosa com a despedida de um amor, de uma vida.

Não é possível escolher o melhor tema dos nove que compõem o último disco de Cohen. Mas é imperativo um tirar de chapéu, grato e humilde, como também ele ensinou a fazer nos concertos que deu nos últimos anos de vida. “You Want it Darker” é mais um reflexo daquele que conseguiu dotar a escuridão da existência de uma beleza doce, capaz de fazer os outros entenderem melhor o que levam no coração. “You Want it Darker” é um álbum, como todos os outros de Leonard Cohen, de amor, esperança, desilusão e, agora, de um verdadeiro adeus.

 LER AINDA: Morreu o músico Leonard Cohen 

14 Nov 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #2

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
24 Out 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #1

Sapataria Wong Lam Kei • 1946

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
17 Out 2016

Paus – “Mo People”

“Mo People”

Com a camisa aberta
A vontade aperta
People com people
À volta da mesa
A vazar garrafas

Com a camisa aberta
A vontade aperta
People com people
À volta da mesa
Sem punhos nem facas

Paus

FÁBIO JEVELIM / HÉLIO MORAIS / JOAQUIM ALBERGARIA / MAKOTO YAGYU

29 Set 2016

Autoramas – “Quando a polícia chegar”

“Quando a polícia chegar”

Odeio segunda
Não gosto de terça
Melhoro na quarta
Sorrio na quinta
Gargalho na sexta
E subo na mesa

Ali começo a dançar
E só vou parar
Quando a polícia chegar

Acabou a cerveja
Alguém foi comprar
Aumente o volume
Ainda tem gelo
E o uísque barato
Saiu de controle

E não tem como voltar
Só vamos parar
Quando a polícia chegar

E começo a dançar
E só vou parar
Quando a polícia chegar

Acabou a cerveja
Alguém foi comprar
Aumente o volume
Ainda tem gelo
e o uísque barato
Saiu de controle

E não tem como voltar
Só vamos parar
Quando a polícia chegar

Quando a polícia chegar
Quando a polícia chegar
Quando a polícia chegar
Quando a polícia chegar

Autoramas

8 Ago 2016

Slow J – “Cristalina”

“Cristalina”

Se eu disser só
Tudo o que eu pensei
Transformado em voz

Se eu tiver dó e
Vir tudo o que eu neguei
Transformado em nós

Mano, eu nem sei
Eu só tentei
Chegar mais longe sem sensei

Eu supliquei
Por uma gota desse
Soro que te dei

E veio o choro
Socorro
Salvei mentira e morro

Sufoco
De um louco
Ser Cristalina é pouco ou…

Se ele quebrar
Não resistir
Se eu só calar, para te ver sorrir

Para sobreviver
Matar e morrer
é fundamental

Slow J

18 Jul 2016

Pequim aperta o cerco a críticos da economia

Pequim tem vindo a efectuar pressão sobre os média e todas as opiniões divergentes da linha do Partido, mas os analistas económicos vinham a passar incólumes. Agora a festa acabou e até há executivos de Hong Kong a darem o dito por não dito

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]egundo o Wall Street Journal, as autoridades chinesas têm na mira um novo grupo de alvos: economistas, analistas e repórteres de negócios com opiniões pessimistas sobre a economia chinesa. Os reguladores do mercado financeiro, censores dos média e outras autoridades do Governo Central têm alertado verbalmente comentadores cujas posições públicas sobre a economia não estão em sintonia com as declarações optimistas do Executivo, dizem oficiais e comentadores económicos a par do assunto.
Lin Caiyi, economista-chefe da corretora Guotai Junan Securities Co., que tem falado abertamente sobre o crescimento da dívida das empresas, o excesso de oferta de imóveis e o enfraquecimento da moeda chinesa, recebeu uma advertência nas últimas semanas, segundo fontes não divulgadas. Foi a segunda vez. O primeiro aviso veio do regulador de valores mobiliários e o mais recente, segundo as mesmas fontes, do departamento de conformidade de uma empresa estatal, que disse à economista para evitar comentários “muito pessimistas” sobre a economia, principalmente em relação ao câmbio.
Pressionados por reguladores financeiros empenhados em estabilizar o mercado, os analistas de acções nas correctoras estão a ficar receosos de emitir relatórios criticando empresas de capital aberto. Pelo menos um centro de estudos chinês foi orientado pelas autoridades a não levantar dúvidas sobre um programa do Governo para reduzir as dívidas das empresas públicas.

Não creio em bruxas mas…
Embora as evidências da repressão sejam informais, ela parece ser generalizada. Os órgãos do Governo Central não responderam a pedidos de comentário ou não quiseram comentar. Observações sobre a economia e notícias sobre empresas, ao contrário daquelas sobre política ou iniciativas sociais, têm sido relativamente poupados às restrições, num reconhecimento do próprio Executivo de que um fluxo mais livre de informações contribui para a vitalidade da economia.

Chinese President Xi Jinping talks about how the Chinese symbol for the word "people" resembles two sticks supporting each other as he speaks Tuesday, Sept. 22, 2015, at a banquet in Seattle. Xi was in Seattle on his way to Washington, D.C., for a White House state dinner on Friday. (AP Photo/Ted S. Warren)
Chinese President Xi Jinping talks about how the Chinese symbol for the word “people” resembles two sticks supporting each other as he speaks Tuesday, Sept. 22, 2015, at a banquet in Seattle. Xi was in Seattle on his way to Washington, D.C., for a White House state dinner on Friday. (AP Photo/Ted S. Warren)

Contudo, Pequim voltou a agir para retomar o controlo da narrativa económica do país depois de equívocos cometidos no ano passado no mercado de acções e na política cambial, que levaram os investidores a duvidarem da competência do Governo para gerir uma economia em franca desaceleração.
Esse tipo de controlo via alertas ameaça limitar ainda mais as informações sobre a segunda maior economia do mundo e a agravar a ansiedade de investidores já desconfiados das estatísticas e declarações do Governo.

Um cerco que aperta
“Um debate vigoroso entre os economistas e a confiança do público nesta conversa é essencial para a China navegar com sucesso nas águas agitadas da economia”, diz Scott Kennedy, vice-director do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, sediado em Washington.
Um aperto generalizado no controlo sobre a sociedade tem vindo a desdobrar-se nos últimos anos, à medida que o presidente chinês Xi Jinping tenta fortalecer o Partido Comunista e angariar apoio popular para uma transição económica acidentada, depois de décadas de rápido crescimento. Os alvos escolhidos até agora foram advogados activistas, personalidades das redes sociais, organizações estrangeiras sem fins lucrativos e membros do partido que criticam políticas.
Embora as restrições impostas aos média estrangeiros sempre tenham sido rígidas, têm vindo a tornar-se ainda mais severas, com uma lista de publicações estrangeiras a verem seus sites bloqueados dentro da China, incluindo o The Wall Street Journal.
Algumas autoridades de escalão mais baixo descrevem uma mentalidade de perseguição que estaria a ganhar momento entre os líderes do Governo e as altas autoridades da China, diante do pessimismo sobre a economia local manifestado no início do ano por investidores internacionais, como George Soros. Em reuniões de cúpula realizadas nos últimos meses, algumas autoridades de primeiro nível defenderam a repressão a qualquer crítica que pudesse incentivar os estrangeiros a apostar contra a China nos mercados, dizem autoridades a par das discussões.

Dourar a pílula
No início do ano, Xi Jinping visitou os três grandes meios estatais de notícias do país — a agência Xinhua, o jornal “Diário do Povo” e a CCTV — para orientá-los sobre a necessidade de alinhamento com o discurso do Partido, “contar a história da China direito” e elevar a influência do país no mundo.
Isso, disseram jornalistas chineses, resultou em pressão não só para evitar tópicos críticos, mas também para produzir artigos positivos sobre a economia.
Um caso ilustrativo ocorreu num evento em Hong Kong, onde Gao Shanwen, economista-chefe da correctora Essence Securities Co., disse a investidores que “muitos dados oficiais não eram confiáveis” e que a economia chinesa ainda enfrentava “grandes problemas”, segundo pessoas que estiveram no evento.
Os comentários chegaram às redes sociais e, dois dias depois, Gao emitiu uma nota na sua conta pública de WeChat dizendo que os comentários foram “inventados”. Posteriormente, o Executivo divulgou um relatório sem críticas à economia chinesa. Solicitados para comentarem o facto, nem Gao nem nenhum outro representante da empresa fizeram qualquer comentário sobre o assunto.

6 Mai 2016

Céu – “Perfume do Invisível”

“Perfume do Invisível”

No dia em que eu me tornei invisível
Passei um café preto ao teu lado
Fumei desajustado um cigarro
Vesti a sua camiseta ao contrário
Aguei as plantas que ali secavam
Por isso o cheiro impregnava

O seu juízo
O meu juízo
Invisível
E o mundo a meu favor
Para me despir
E ser quem eu sou
Logo que o perfume do invisível
Te inebriou
Você me viu
E o mundo também
E o que tava quietinho ali
Se mostrou, meu bem…

Céu

16 Abr 2016

Rua de Macau II

[dropcap style=’circle’]”R[/dropcap]Rua de Macau” é um filme da autoria do nosso cineasta Sérgio Perez. Lançado em 2008, conta a história de Miri, uma chinesa de Macau sofisticada, recém-regressada do estrangeiro onde concluiu os seus estudos. (*)

Miri deixa-se deslumbrar pela nova indústria do jogo. Sente-se atraída pela escala, opulência e requinte das novas propriedades acabadas de inaugurar. Por outro lado, entusiasma-se também com a nova comunidade de expatriados anglofónicos que vai populando Macau e com a qual se identifica.

A pequena cidade adormecida onde Miri cresceu, transformou-se e deixou de ser o backwater onde nada se passava. Agora sim, é uma cidade. E internacional.

Por mero acaso – e depois de ter rejeitado um expatriado à porta de um bar – Miri decide dar uma volta a pé por Macau. É assim que descobre um pequeno e humilde restaurante português nas vísceras da malha antiga da cidade.

Interessa-se pelo estabelecimento onde fotografias antigas de Macau com jogadores de hóquei em campo na Caixa Escolar enfeitam as paredes e onde se come minchi ao som de música em patuá. Mas, sobretudo, interessa-se por Miguel, um rapaz Macaense simples, interessante e bem-parecido, filho do dono desse pitoresco estabelecimento.

Apaixonando-se por Miguel, Miri acaba também por se apaixonar pelo charme do seu antigo Macau.

Mas um dia cai em si e decide que não é nada daquilo que quer – e regressa ao seu Macau do bling-bling.

* * *

“Rua de Macau” foi rodado numa época em que a cidade se transformou num grande estaleiro, palco da primeira onda de construção dos novos empreendimentos da indústria do jogo, bem como de outras tantas infra-estruturas materializadas pelo governo visando preparar Macau para a metamorfose que advinha.

O tempo passa num instante e o filme – que contou com a colaboração do autor desta coluna – está perto de fazer 10 anos. Pelo que ora se decidiu desenvolver aqui uma sequela, uma actualização e contextualização com a nova realidade – de uma forma muito pessoal e peculiar.

* * *

Rua de Macau II

No dia seguinte Miri, confusa e sozinha em casa, contempla a ideia de ir ter com Miguel para lhe explicar a razão da reacção brusca e agressiva da noite anterior. Na verdade, tratou-se tudo de um equívoco.

Miri sabe que deixou Miguel magoado e, por isso, sente-se mal. Tem a consciência pesada e quer ir ter com ele para que possam pelo menos manter uma relação como amigos.

No entanto, hesita.

Não por medo ou por pensar que, regressando ao restaurante onde Miguel trabalha, irá emocionar-se novamente com aquele ambiente de fotografias antigas, comida portuguesa e músicas em patuá.

Tem também a certeza que nem o olhar charmoso de Miguel a fará vacilar.

O problema não está aí.

Miri hesita porque o restaurante fica numa zona altamente inacessível da cidade. É que Miri é sofisticada, mas mora nos blocos de habitação social de Seac Pai Van.

Não conduz porque a carta de condução que tirou no estrangeiro ainda não foi aceite em Macau – a última explicação que lhe deram foi que no país onde tirou a carta conduz-se do lado contrário, pelo que o processo demora um pouco mais.

Vai ter de ir de autocarro. É uma viagem longa – está habituada a comutar diariamente apenas entre Seac Pai Van e Cotai, onde trabalha – e não lhe agrada a ideia de ter de atravessar a cidade toda num autocarro que, quase sempre, está cheio de operários das obras que circulam em grupo porque vivem todos juntos em apartamentos transformados em dormitórios.

Ainda assim, persistente, vai ao seu iMac e faz uma pesquisa para saber qual o autocarro que deve apanhar para se chegar àquele fim-do-mundo. Enerva-se porque não consegue encontrar, de uma forma intuitiva, a informação que procura. E recorda-se que o website da Reolian era, nesse aspecto, o melhor de todos pois permitia visualizar todas as linhas de autocarro em interacção com imagens de satélite do Google Maps.

Agora, encontra apenas tabelas e mais tabelas com números dos autocarros e respectivas paragens identificadas ou pelo nome da rua ou, pior, pelo nome do prédio adjacente – e mais nada.

“Like, I’m supposed to know all the names of the streets or the names of the buildings? WTF?”.

Frustrada e irritada, Miri dá um muro na parede. Por sorte, esta manteve-se intacta – podia ter sido pior.

É no meio disto tudo que Miri recebe uma notificação no seu iPhone 6. Trata-se de um aviso de chuvas intensas. Por essa razão, as escolas vão-se manter fechadas. “Good”, pensa Miri. Finalmente algo positivo, pois não havendo escola haverá menos tráfego – a eventual viagem até ao restaurante será menos morosa.

No entanto, à cautela, decide ficar em casa e não arriscar pois desconfia que a notificação de chuvas intensas se trate apenas de um simulacro. Nunca se sabe e não vale a pena verificar pela televisão pois também eles participam nos simulacros.

* * *

Miguel está sentado sozinho numa mesa do restaurante onde trabalha.

É-lhe servido pelo pai um minchi com arroz branco, mas sem ovo estrelado – Miguel ficou traumatizado com o episódio dos ovos falsos vindos da China e, desde então, deixou de comer ovo.

Nem a criação do Centro de Segurança Alimentar o curou desse trauma. A imagem que viu no noticiário de uma falsa gema de ovo cozida com textura a borracha a saltitar como uma bola de pelota basca ficou-lhe gravada na memória para sempre.

Com ovo ou sem ovo, Miguel decide ir ter com Miri. Sabe que ela mora no Seac Pai Van, que isso fica no fim-do-mundo, mas está decidido a embarcar numa viagem que, com azar, poderá até vir a ser mais longa do que uma ida a Hong Kong.

Miguel tem uma mota, mas prefere ir de autocarro. É que, mesmo com a faixa reservada para motociclos da Ponte de Sai Van, tem consciência do perigo que é atravessar a ponte de mota.

Amor é também determinação e coragem, está certo. Mas Miguel perdeu recentemente um amigo, vítima de um acidente, e não quer arriscar.

O que Miguel não sabe é que está para vir uma grande tempestade de chuvas intensas. Miguel, sendo Maquista, tem por teimosia instalado no seu telemóvel a versão em língua portuguesa da aplicação que faz essas notificações – mesmo sabendo que, por esse motivo, essas tardam a chegar porque precisam de ser traduzidas; ou por vezes não chegam sequer a ser enviadas.

No caso em concreto, fica-se sem perceber bem o que aconteceu – o filme não revela esse pormenor desnecessário.

Por outro lado, o seu pai irritou-se com todo o episódio dos anteneiros e a partir daí deixou-se de ver televisão no restaurante. É que o homem, sendo um antigo de Macau, apreciava a clandestinidade do sistema montado pelos anteneiros e das 90 patacas que pagava por mês que lhe dava acesso a todos os canais, incluindo o tal de desporto tailandês onde via o seu futebol.

Assim, quando se deu cabo do esquema e se criou a Canais de Televisão Básicos de Macau, S.A., por solidariedade com os anteneiros o velho botou prontamente a televisão no lixo.

Desconectado e sem informação actualizada, Miguel está à espera do autocarro numa paragem provisória sem cobertura – porque a rua está em obras para a instalação de cabos da MTEL – quando cai uma chuvada que o deixa molhado até à cueca. Frustrado, regressa ao restaurante.

* * *

Passado uns tempos, quis o destino que Miri ganhasse uma oportunidade para finalmente ir ter com Miguel ao restaurante: foi notificada pelo Centro de Saúde da Areia Preta para ir a uma consulta marcada uns anos atrás.

É que, tal como muitos que não têm casa própria, Miri mudou de casa umas 20 vezes antes de se fixar em Seac Pai Van. E, pelo percurso, chegou a morar na Areia Preta.

Deslocou-se a essa zona da cidade através da Uber. Por azar, o carro que a transportou foi parado pela polícia. Miri é persuadida pelos agentes da autoridade a confessar que estava a utilizar um transporte ilegal. Ao condutor foi aplicada uma multa pesada.

Atrasada, Miri acaba por faltar à consulta. Decide então caminhar em direcção ao restaurante. Para a sua enorme surpresa, o estabelecimento já lá não estava. No seu lugar encontra uma loja que vende não se sabe bem ao certo o quê. Perdida, Miri pergunta ao homem da loja – um sujeito com ar de artista – pelo restaurante.

“Não sabes?”, respondeu o artista. “Não aguentou a renda e fechou as portas!”.

Surpreendida e insatisfeita, Miri responde: “E tu? Como aguentas tu a renda?”

“Tenho um subsídio do Fundo das Indústrias Criativas.”

Miri encolhe os ombros e desiste. Afasta-se de tudo e todos, sorrindo sempre.


(*) “Rua de Macau” tem a duração de 45 minutos e está disponível no YouTube, podendo ser visto no topo deste artigo.

15 Abr 2016

Ladrões do Tempo – “Rua”

“Rua”

Se nada eu posso ter
Aquilo que eu quiser aqui
Não será ninguém que me vai dizer
Esse tempo já sei de cor

Um retrato a mais
Num quadro de um pintor qualquer
Teorias de um senhor capaz

De conspiração
Elementar a condição de tudo ter e nada ser
Esse tempo já eu sei de cor…

Se nada eu posso ter
Aquilo que eu quiser aqui
Não será ninguém que me vai dizer
Esse tempo já eu sei de cor…

Um segredo a mais
a construir uma ilusão
de tudo ser sem ter que agir
Esta condição de tudo ser sem ter que agir
É a pura da contradição

Esse tempo já eu sei de cor…

Ladrões do Tempo

DONY BETTENCOURT / PAULO FRANCO / TÓ TRIPS / ZÉ PEDRO / SAMUEL PALITOS

12 Abr 2016

Clã – “O Tal Canal”

“O Tal Canal”

Adoro a tua luz, a tua cor, o teu sinal
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro a tua voz, a tua escrita, a tua oral
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro o teu olhar, teu gaguejar, teu ar fatal
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro a tua grelha, a tua taxa, o teu jornal
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal

O Tal Canal (o Tal Canal)
O tal canal (o Tal Canal)
O tal o tal o tal o tal o Tal Canal

Adoro o teu andar, teu ondular sinusoidal
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro os teus botões e etcetera e tal
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro assim ligar-te e desligar-te no final
Mas o que mais adoro em ti é o Tal Canal
Adoro e em geral dá-me a impressão que faço mal
Mas posso lá passar sem ti, sem o Tal Canal!

O Tal Canal (o Tal Canal)
O tal canal (o Tal Canal)
O tal o tal o tal o tal o Tal Canal

Clã

MANUELA AZEVEDO / HÉLDER GONÇALVES / MIGUEL FERREIRA / PEDRO BISCAIA / PEDRO RITO

2 Abr 2016

Boogarins – “Avalanche”

“Avalanche”

A maior demonstração
De propagação do ser é o eco
Com ele o meu grito tem força
Para derrubar todos os prédios

Que não me deixam ver o sol
Eles não deixam eu ver o sol
Que não me deixam ver o sol
E eles não deixam eu ver o sol

Que não me deixam ver o sol
Eles não deixam eu ver o sol
Que não me deixam ver o sol
Para me prender nesse labirinto de tédio

Boogarins

FERNANDO “DINHO” ALMEIDA / BENKE FERRAZ / RAPHAEL VAZ / YNAIÃ BENTHROLDO

31 Mar 2016

Thiago Pethit – “1992”

“1992”

Se você quiser me encontrar
Na noite mais escura
Eu estarei na rua
Como um rebelde noir
Com minha calça gasta
Enquanto o sol se afasta

Eu sei que assim como eu
Você faz do escuro seu lugar seguro
Venha como você quiser
E seja como é, um anti-herói qualquer

I still smell beer and leather
Running under your sweater
C’mon c’mon
como quiser
C’mon c’mon como você é

Venha se esconder por aqui
E só sair com a lua correndo no rua
I’ve got lust for youth
C’mon c’mon
como quiser
C’mon c’mon como você é
C’mon c’mon c’mon c’mon come on

Thiago Pethit

16 Mar 2016

DJ Ride (feat. Capicua) – “Fumo Denso”

“Fumo Denso”

Tu fumas à janela, olho pra ti espelhado nela,
A noite é longa e dentro dela, a chuva pinta uma aguarela
Somos tu e eu, só tu e eu, tu e eu, só tu e eu…
E é quando me tocas que eu sei. Eu sei.
Porque é que eu ainda não te ultrapassei. E sei…
Que nada eu que eu vivi ou viverei
Pode ser maior que o nosso fogo e neste jogo todo és rei.

O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume… o cheiro…

E é quando me falas que eu sinto…
Que as palavras são amargas como o tinto
E esses lábios doces cor de vinho
Só me mentem ao dizer “Eu não te minto”!
E nesses olhos verdes absinto
Eu só consigo ver um labirtinto.
E é quando tu te calas que eu penso…
Porque é que não és feito de silêncio?
Dás-me um copo que eu dispenso
Estendo o corpo e adormeço
sono tenso, sonho intenso
entre nós só fumo denso
fumo denso…
é só fumo denso…
fumo denso…
Dás-me um copo que eu dispenso
Estendo o corpo e adormeço
sono tenso, sonho intenso
entre nós só fumo denso
só fumo denso…
fumo denso…
é só fumo denso…

Tu fumas à janela, olho pra ti espelhado nela,
A noite é longa e dentro dela, a chuva pinta uma aguarela
Somos tu e eu, só tu e eu, tu e eu, só tu e eu…
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume, o fumo, o perfume, o cheiro…
O lume… O cheiro…

DJ Ride

OLIVEIROS TOMÁS OLIVEIRA, ANA MATOS FERNANDES

5 Mar 2016

Virgem Suta – “Ela Queria”

“Ela Queria”

Ela sonhava com um herói
Ele playboy
Tinha alta pinta de jingão
Ela queria ser feliz
Ele um petiz
Queria apenas diversão
Ela sonhava com o amor
Ele estupor
Achava isso uma aflição
Mas algo havia entre os dois
Havia pois
E era para lá do bom

E o final foi bestial
Tudo ligou
O Dom Juan lá com o charme
Romeu virou

Ela adorava o céu azul
Ele ser cool
E lançar charme para o ar
Ela era tão bom coração
Ele um pimpão
Para com outras se embeiçar
O que pra ela era bem bom
Pra ele não
Tanto mais tinha em que pensar
Mas algo havia entre os dois
Havia pois
E era coisa pra durar

E o final foi bestial
Tudo ligou
O Dom Juan lá com o charme
Romeu virou

O tempo venceu o herói
Tudo lhe doi
E mesmo assim bem ela o quer
Agora é ele que lhe diz
Sou tão feliz
Por ter-te aqui supermulher
Ela sorri por tê-lo ali
Cutchi, cutchi
Tão manso, agora mimo quer
E nem aquele olhar mongol
De quem vê mal
Esconde o brilho a irromper

E o final foi bestial
Tudo ligou
O Dom Juan lá com o charme
Romeu virou

Virgem Suta

JORGE BENVINDA / NUNO FIGUEIREDO

24 Fev 2016

Cavalheiro – “Este Dia”

“Este Dia”

Nunca pensei estar aqui
Nunca esperei por este dia
Andei em frente e recuei
Caí numa vala vazia
E tudo foi acontecendo
Enquanto eu fazia outros planos
Agora o que tenho eu
De pouco em já tantos anos?

O tempo corre contra mim
Tira-me tempo para mudar
Eu tive tantas mais certezas
De como isto ia acabar
E tudo foi acontecendo
Enquanto eu fazia outros planos
Agora o que tenho eu
De pouco em já tantos anos?

Cavalheiro

JOÃO FILIPE / RICADRO CIBRÃO / JOÃO COUTADA

20 Fev 2016

David Bowie – “Lazarus”

“Lazarus”

Look up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now

Look up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t that just like me?

By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass

This way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?

Oh, I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?

DAVID BOWIE

12 Jan 2016

Macau, esse filme…

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]endo os filmes uma representação da realidade, porque não então comparar o seu processo de produção com coisas prosaicas como a gestão de uma cidade? Podia ser uma cidade ao calhas mas compare-se com Macau. Parece-me até especialmente apropriado neste momento solene em que se discutem as Linhas de Adormecimento Geral ou LAG, ou lá como se chamam. Tomemo-las como o guião do nosso filme.

Fazer um filme parece um processo relativamente fácil: escrevem-se uns diálogos, arranjam-se uns actores, um realizador, uns tipos para filmar mais umas roupitas, luzes e já está! Gerir uma cidade também. Arranjam-se uns secretários, um chefe, escrevem-se umas leis, uns polícias para as fazer cumprir, uma tropa para arranjar as ruas… enfim, vocês sabem. A diferença é que a grande maioria dos filmes é lixo e só algumas cidades dão mesmo vontade de lá viver, ou de lá voltar.

Todos os filmes começam por um guião. Quanto melhor for, quanto mais inteligentes e marcantes os diálogos, quanto mais elaborada e pensada a história, maiores as possibilidades de termos um filme de sucesso. Um mau guião dificilmente dará um bom filme a menos que a equipa de produção se exceda e consiga improvisar uma história melhor ou então estamos a filmar um porno. Mas, mesmo neste caso, ajuda que os grandes planos tenham algum contexto erótico subjacente. Um filme precisa, portanto, de uma ideia sólida, de um final entusiasmante, de um enredo que nos compila a viver naquele hiato de ficção, a vê-lo mais do que uma vez e até a recomendá-lo aos amigos. Neste contexto, os diálogos assumem um papel crucial ao revelarem personagens maiores do que a vida, ao desvelarem inconscientes, ao catapultarem a acção e a imprimirem na nossa memória lições de vida, formas de estar ou apenas grandes tiradas que marcam tempos gerações, modas, eternidades. Um bom filme não tem personagens que soam todas ao mesmo, nem as palavras são ditas apenas porque sim. Por exemplo, não podemos ter os personagens todos do filme a gritarem repetidamente “diversificação económica” ou “indústrias criativas” sem saberem muito bem o que isso quer dizer, a menos que estejamos a escrever uma comédia onde a repetição e o nonsense podem ser utilizados como ferramentas dramáticas. Mas gerir uma cidade não pode ser uma comédia. Um bom filme não se coaduna com uma personagem que é, por exemplo, médico e não sabe o que é uma amigdalite, como não podemos ter um dirigente de uma cidade ignorante do valor pago pelo governo dessa cidade em rendas. Especialmente quando a dita sofre horrores a esse nível. A menos, de novo, que estejamos a produzir uma comédia. Às vezes acontece não conseguirmos puxar mais por uma personagem. Foi mal desenhada, está desajustada da história, qualquer coisa. Quando assim é, é melhor riscá-la do guião. Mas lá está, quanto mais sólida for a ideia da história mais fácil se torna criar os personagens certos para a interpretarem. Naturalmente, um guião começa com uma ideia forte, uma premissa, uma questão que pretendemos ver satisfeita, uma sensação que pretendemos criar, seja lá o que for. Mas não basta uma boa ideia. Não basta dizer que vamos fazer um filme sobre dois gajos perdidos na lua, temos de construí-la, de criar drama, conteúdo, tensão, envolvimento de elaborá-la de tal forma que ela quase se materializa por si própria, ou o filme tem apenas uma cena de 10 minutos e acaba. Tal como não chega dizermos que pretendemos que uma cidade seja um Destino Mundial de Lazer – precisamos de saber o que isso quer dizer, o que isso implica, de tudo o que está à volta dessa ideia e traçar planos concretos que se coadunem com a visão do que isso realmente é. Por muito que se pense, o guião de um filme não é escrito de impulso, durante uma semana, ou duas, a fio. É um trabalho de sapa, de planeamento, de investigação, de reflexão, e depois um processo contínuo de decisões pois quando mergulhamos num assunto abrem-se mil e uma hipóteses, e isso implica sangue frio para separar o importante do prescindível, discernimento, qualidade. Temos de saber escolher: o personagem morre? A acção acontece onde? Qual o tempo? Enfim, chega uma altura em que é preciso decidir um caminho, cortar o supérfluo, avançar e ter coragem para eliminar cenas que achávamos fantásticas mas que em nada contribuíam para o enredo, por muito gozo que nos desse vê-las filmadas, caso contrário nunca teremos guião e, por consequência, nunca teremos filme. Comparando com a nossa cidade a tal cena que adorávamos mas que tivemos de cortar: será, por exemplo, que vale mais a pena construir uma passagem aérea faiscante numa rotunda, ou aplicar a mesma verba no apoio ao pequeno comércio local que, esse sim, caracteriza mais uma cidade do que 10 rotundas iguais à aquela? É apenas uma reflexão como muitas outras que vão sucedendo no processo de criação.

Chega de guião. Partamos do princípio que está lá tudo, que até é uma boa peça literária, com o necessário para dar um bom filme e passemos para a equipa. Se um mau guião dificilmente dará um bom filme, nada nos garante que um bom guião o consiga fazer. Uma escolha criteriosa do elenco para dar vida às personagens, do realizador para consubstanciar a visão, da equipa de filmagem, de iluminação, de guarda-roupa e por aí fora, é um processo absolutamente crucial para que o tal do guião consiga brilhar no ecrã. No caso da cidade, a equipa somos todos nós, governantes e governados, empregados e patrões, desempregados e poetas, artistas e cirurgiões. Naturalmente, como nos filmes, uns mandam mais que outros, mas todos são necessários para que a coisa corra bem. Ao produtor cabe-lhe a responsabilidade de se assegurar que reúne as condições financeiras e logísticas necessárias para conseguir fazer o guião brilhar, o realizador é responsável por ter e comunicar uma visão à equipa, explorar o seu potencial e assegurar-se que os diálogos são executados de forma convincente. Ambos são ainda, ou devem ser, responsáveis por que a equipa se sinta motivada e perfeitamente elucidada da visão subjacente, desde o mais simples assistente de produção ao director de fotografia todos devem estar no mesmo filme e com vontade de dar o seu melhor. Nestas circunstâncias, até um guião menor pode vir a tornar-se num grande filme pois todos contribuem para o fazer melhor – o realizador produz situações incríveis, os actores proporcionam desempenhos memoráveis, o guarda roupa sai-se com indumentárias inesquecíveis, o director de fotografia com imagens de rara beleza, e por aí fora. Mas é preciso uma visão clara, comum a todos para que isso aconteça. E, acredite-se ou não, nem tudo é dinheiro e muito tem a ver com a capacidade de se entusiasmar uma equipa, pois apenas assim obras foras de série são possíveis. Uma produção onde a equipa anda de trombas e desnorteada dificilmente fará um filme decente. No caso da nossa cidade, sabemos bem que o guião é defeituoso, ou inexistente mas, pior do que isso, é sentirmos também que a equipa está desmotivada e tem óbvia incapacidade para consubstanciar essa visão débil, quasi desconhecida. Vivemos de improviso em improviso e esperamos ter sucesso na bilheteira, ou no caso da nossa cidade, dar corpo ao tal Destino Mundial de Lazer.

Não basta colocar o ónus do desenvolvimento nos operadores turísticos que se regem por regras de concorrência e não de desenvolvimento urbano e civilizacional. Mesmo eles acabam por sofrer quando as suas equipas não estão suficientemente motivadas. Caso os produtores deste filme macaíno tenham dúvidas, perguntem à maioria dos estrangeiros que por cá trabalham o que os mantém cá. É preciso dizer “salário”? Mas a vida não é só trabalho e quando se está numa cidade entupida pelo trânsito, com proibições para isto e para aquilo, com uma assistência médica defeituosa alguém pensa em por cá ficar muito tempo? Mesmo aqueles que por cá nasceram ou que por cá andam há muito tempo, quantos não sonham em encher o pé-de-meia e porem-se a andar daqui para fora? Há estatísticas disso, ou não vale a pena fazer a pergunta? Que prazer dá viver numa cidade onde nem sequer existem esplanadas para se cavaquear com os amigos e esquecer as agruras do dia de trabalho? Que prazer dá visitar uma cidade que cada vez mais é uma colecção de lojas de marca e menos uma revelação dos sentimentos locais? Que gozo dá viver numa cidade onde as festividades são contínuos exercícios de boçalidade como os concertos de Ano Novo ou as decorações de Natal do Leal Senado para citar um exemplo recente? Que prazer dá viver numa cidade que tanto fala de criatividade mas não a estimula? Que prazer dá viver, ou visitar, uma cidade onde respirar começa a ser uma actividade de risco? Que prazer dá viver numa cidade onde os pequenos negócios não arranjam pessoal para trabalhar, nem argumentos para pagar os custos de localização? Qual viajante menos sensível às mesas de jogo terá vontade de cá voltar enquanto não esquecer os problemas que teve em deslocar-se, as contas surdas que pagou ou a cidade centenária que não descobriu?

Se um produtor quiser mesmo assegurar-se que tem hipóteses de fazer um bom filme deve pensar primeiro em ter um guião com o mínimo de qualidade, uma visão clara do caminho que pretende seguir, coragem para decidir e capacidade para o maximizar com equipas motivadas, capazes e felizes. Sim, felizes, fazer um filme é duro mas pode ser um processo feliz. Não basta depois ao realizador dizer “acção” e esperar que tudo se encaixe como por magia, como não basta ao governo falar de “linhas de acção” se os discursos forem apenas composições de frases sem conteúdo, se as ideias surgirem dispersas, e até desconexas, se os secretários não souberem que gastam 600 milhões por ano em rendas e não forem capazes, sequer, de imaginar, o que poderiam fazer com esses 600 milhões para consubstanciarem a visão. Porque não têm um guião, porque não conseguem perceber o filme em que estão e nem sequer demonstram capacidade para o realizar. Quando se gere assim um filme, o resultado é normalmente um fracasso de bilheteira, equipas alienadas, investidores tramados e mais umas bobines para a poeira do esquecimento. Quando se gere assim uma cidade, o resultado só pode ser exactamente o mesmo, ou então estamos a ensaiar um remake da “Fuga de Alcatraz”.

MÚSICA DA SEMANA
“The Final Cut” – Pink Floyd
Through the fish eyed lens of tear stained eyes
I can barely define the shape of this moment in time
and far from flying high in clear blue skies
I’m spiraling down to the hole in the ground where I hide (…)

2 Dez 2015

Prana – “Raiva”

“Raiva”

Raiva é amor mal canalizado
É uma prenda enfim
Que ofereço só a mim
E aceito com agrado

Raiva é saudade de tudo o que nunca foi teu
É um tesouro achado
Que estimo e que guardo
Como se fosse meu

E não tens de a esconder
Quando ela vem
Porque a raiva só é má
Quando a alma é má também
Porque a raiva só é má
Quando a alma é má também

E a raiva não dá murros
Não dá turras nem pontapés
Quem a tem sempre a experimenta
Dos 8 aos 80 e de lés a lés

Porque a raiva não é feia
Não é crime nem é pecado
É uma fogueira ao frio
Uma santa com feitio um bocadinho ao lado

E não tens de a temer
Quando nada corre bem
Porque a raiva só é má
Quando a alma é má também
Porque a raiva só é má
Quando a alma é má também

Deixa toda a tua raiva em mim!
Deixa toda a tua raiva em mim!
Deixa toda a tua raiva em mim!
Deixa toda a tua raiva em mim!

E se caso com a alma
Não distingo o mal do bem
Guarda longe essa raiva
Antes que mates alguém
Guarda longe essa raiva
Antes que mates alguém

Prana

MIGUEL LESTRE / JOÃO FERREIRA / DIOGO LEITE

26 Nov 2015

“Nada Tenho de Meu” – #02

“Nada Tenho de Meu, um Diário de Viagem no Extremo Oriente”

Autoria: Miguel Gonçalves Mendes, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca
Montagem: Pedro Sousa
Narrador: Siung Chong
Desenho de Som: 1927 Audio
Tema Original: Pedro Gonçalves
Produção: JumpCut

21 Jul 2015

Sérgio Godinho – “Espalhem a Notícia”

“Espalhem a Notícia”

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
o ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Sérgio Godinho

18 Jul 2015