Desenterrar o visível

O romance ‘Aparição’ de Vergílio Ferreira foi importante nos verdes anos, porque, quando o leste, em 1971, desenterrou a cidade que continuavas a ver diante dos teus olhos. Foi um verdadeiro pasmo. Sem dares por isso, na altura, aprendeste que desenterrar aquilo que é visível corresponde, afinal, a toda a história dos humanos. 
 
A “Ideia” de Platão, o delírio sobrelunar inventado por Aristóteles, o lektón dos estóicos (ou “significado”, a única coisa incorpórea que existiria no meio de uma visão da vida inteiramente materialista), a pré-concepção de Santo Agostinho e os mil experimentalismos modernos, tudo isso, eram formas diversas de desenterrar o visível. 
 
Além deste detalhe gigante, o romance incorporava o debate existencial que à época ainda não arrefecera. Independentemente de tudo o que se possa mencionar à primeira vista, o livro vivia – e vive – duma atemporalidade de fundo que nada tinha que ver com o espaço concreto onde as acções (e as reflexões) decorriam. Havia ali um tempo paralelo, uma espera sem termo, uma incerteza longínqua, um aceno comovente. 
 
A grande literatura vive destes mitemas e sussurros, tantas vezes invisíveis, mas que frisam o espanto e o salto que a leitura pode e deve provocar. Desenterrar o visível tornar-se-ia no rastrear de algo sempre maior. A perder de vista (na verdade, uma aparição pode cegar).
 
Alguns anos antes, estavas em Sintra e observaste o imperador da Etiópia, Hailé Selassié, a acenar dentro de um carro preto que tinha o tamanho de uma lança sem terminação. Uma lança que ainda hoje vês passar por ti tantas vezes. Foste ao encontro dos fungos que se instalam na memória e confirmaste que a visita teve lugar nos últimos dias de Julho de 1959, ano em que o romance ‘Aparição’ foi lançado.
 
Entre essa data e 1996, a bandeira da Etiópia mudou oito vezes. As listas horizontais vermelhas, verdes e amarelas mantiveram-se, mas o leão da Judá do tempo de Selassié transformou-se numa estrela de cinco pontas. Lembras-te ainda de que havia rendas junto à janela onde a mão do imperador se agitava. Nunca tinhas olhado para um imperador e toda aquela sobreinvestida fez-te pensar, suspender os séculos. 
 
No ano em que a bandeira da Etiópia inaugurou a sua última versão, cruzaste-te no funicular de Haifa com vários soldados etíopes. Eram judeus etíopes. À saída, um deles avançou na tua direcção e disse: “I´ve been there!”. E ali ficou com o dedo a apontar para o Mediterrâneo, na direcção do sol-pôr. E tu entendeste que o alvo era inevitavelmente Sintra. Concluirias, nesse instante, que o entendimento é uma teologia sem deus ou o fac-símile de uma primeira pessoa confusa (a olhar para o mar). E lá continuaste a jornada, sempre a subir, em direcção ao monte Carmelo. Nesse mesmo dia – era 1 de Março – morreu Vergílio Ferreira.
 
Alheio à morte, às metamorfoses das bandeiras e às taras do Selassié, Vergílio Ferreira continuou a sua tarefa de desenterrar o visível. 
 
Em certos dias, como hoje (fosse em 1986 ou em 1996, que interessam as tabuadas?), regressas aos mais altos cumes de Haifa e tentas seguir a direcção do dedo indicador do soldado etíope. Segue-lo como se espreitasses por um monóculo potente e, ao fundo, lá está o escritor na sua casa de Fontanelas (afinal era mesmo em Sintra) a escrever: “Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Sintra é o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça.”. O mar a perder de vista. E a desenterrar o visível.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

11 Mar 2021

Aparição, desvio e paixão

[dropcap style= ‘circle’] O [/dropcap] filme é protagonizado por Jaime de Freitas e Victória Guerra e foi rodado na cidade de Évora, onde Vergílio Ferreira foi professor. Chegou a esta cidade em 1945 na qualidade de professor de Português após a licenciatura em Filologia Clássica na Universidade de Coimbra em 1940.

O filme que agora chega às salas de cinema teve o galardão para o melhor filme português no Festival Internacional de Cinema Fantástico do Porto 2018, e não foi aceite em Veneza, Cannes e Berlim.

Alberto Soares, é o nome do personagem e é professor no colégio Espírito Santo, nome atual do na época Liceu de Évora.. A história passa-se nos anos 50, num Portugal onde uma burguesia rural tinha evidentemente assento e vida na cidade, mas em que cidade e campo eram realidades muito diferenciadas. Évora, cidade milenar, vivia em adormecimento uma anemia do sangue onde as vontades tem normas a cumprir. P “status quo” é o de uma ordem a manter em que nada se questiona, mas, como sempre e mesmo sem que saiba porquê, é impossível estancar a curiosidade, estancar da vontade, estancar o desejo, estancar a dor. O abismo pode chegar da forma mais inesperada, pelo crime ou pelo suicídio. Por vezes, demasiadas vezes, alguém decide o tempo do fim. É uma cidade que habita uma planície onde a força telúrica da terra e o excesso do sol encontram caminho, de certa forma paradoxalmente, no gélido território da morte. Não raras vezes alguém se abraça em excesso à corda e o corpo quando impedido de respirar não vive. O Alentejo telúrico e suicidário, é nos anos 50, um lugar distante, de contrastes fortes de sol e sombra, de sonhos por vezes indizíveis, onde o desejo caminha por vezes demasiado próximo da morte.

Neste Alentejo de espaço e sol a opção do realizador foi por um tempo de inverno, nuvens e chuva, uma outra forma da dimensão trágica dos céus.

Há na postura em aula de Alberto Soares, professor, e na relação que estabelece com a turma de alunos de português, que o aproxima desse grande sucesso cinematográfico que foi, é, o “ Dead Poets Society” de 1989 , escrito por Tow Schulman, realizado por Peter Weir e genialmente interpretado por Robin Williams, um filme que aproximadamente custou $ 16 400 000 e que fez um encaixe de $ 140 000 000 . A aproximação é tímida, a relação entre os alunos e o professor e entre o universo poético e a rigidez institucional do programa escolar é um apontamento, e não o corpo do desenvolvimento narrativo do filme.

APARIÇÃO também outro orçamento, não anda longe dos € 700 000 se acumularmos os diferentes apoios nas diferentes fazes do filme e o seu box office, se cobrir se vier a cobrir esse custo já será um enorme êxito, uma aparição de sucesso na cinematografia nacional.

Contingências de um cinema produzido num país que tem a sua maior distribuidora focada no “grande universo “ doméstico, e onde muito provavelmente toda a cultura é mais uma chatice do que uma área de trabalho para os ilustres governos da nossa não menos ilustre democracia.

O caminho escolhido pelo realizador e que é também o caminho da obra literária escrita em tempo anterior ao filme referido note-se, tem o enfoque noutras relações “desviantes” não só literárias. O dos corpos habitados pela tensão de Eros.

No quadro dos comportamentos ordenados, submissos e em regra com as leis da igreja e códigos civis, quais os comportamentos que resultando da força do sangue nas enzimáticas sinapses do cérebro, capazes de alterar a cor, a dureza e a liquidez da carne, o não são? É por isso que há uma moralidade volátil que acompanha o que de alguma forma se poderia chamar alter ego dos tempos se o tempo for também metafísica, prova-o código civil de hoje não ser igual igual ao de ontem, nem ao do próximo século, e também nunca o mesmo em todos os lugares e culturas.

No filme APARIÇÃO, Alberto Soares é o Virgílio Ferreira, há uma cena já na resolução do filme em que surge como o autor, e tem na relação com a jovem Sofia, filha do médico da cidade, o Dr. Moura, amigo do pai do Alberto Soares.

A aproximação acontece no decurso de explicações de Latim , língua clássica Indo-Europeia derivada do alfabeto Etrusco e Grego e um dos mais importantes instrumentos do poder do Império Romano. À jovem Sofia as línguas mortas causam pouco entusiasmo, é mais aborrecimento mesmo do que a excitação do conhecimento, e a presença do professor, homem bem parecido e com autocontrole, – enfim o possível- das emoções e pulsões eróticas, e as aulas particulares são um momento em que o tédio dos dias pode ser anulado pela agitação do sangue no exercício da sedução, jogo sempre com perigos, mas com os prazeres do flanar nos territórios do pólen e do mel. Despertam-se outras línguas, as línguas que se tocam, e nesse toque falam e tecem a volúpia doce e húmida do prazer dos corpos.

A aparição surge nos caminhos dos territórios não inteiramente coincidentes com a vida higiénica , mas também insalubre, da vida inteiramente civilizada e normativa, da vida útil, do casamento, da igreja e dos filhos, da acumulação de património e da sucessão dos bens. A vida esperada numa cidade rural dos anos 50 em Portugal, e em tantos outros lugares no mundo.

Sofia, é uma personagem luminosa, inquieta, representada pela Victoria Guerra, com aquele ancorar movediço nas emoções do contemporâneo estou aqui mas também não estou, quero e não quero, sou poço que incendeia, fujo para me agarrares, sou livre? do amor líquido sociologicamente caracterizado pelo Zygmunt Bauman no seu ensaio sobre a fragilidade dos laços humanos. Neste sentido a Sofia é uma personagem que habita mais este nosso tempo do que os idos anos 40 e 50 na Évora das pedras caladas.

Esse jogo em que vê reflectida a beleza que encontra quando se olha no espelho, bem como os caminhos usuais dos laços sociais e económicos que os laços entre os filhos constroem nos patrimónios das famílias, leva-a um namoro com um futuro latifundiário, agora adolescente e aluno de liceu na turma do professor escritor. É o Carolino, – numa interpretação convincente e subterrânea do João Cachola-, jovem desperto para dimensões perigosas do ser nas elevações do espírito nas aulas de Português. Há um combate entre um proto-fascismo em que se percebe a presença das correntes da força futurista do inicio do séc. XX e o existencialismo que na época , e também hoje, tinha em Sartre o nome mais visível. Vergílio Ferreira, Alberto Soares, acolhe e é expressão desse existencialismo, por vezes com forte apego ao hedonismo dos sentidos, mas sempre atento ao mistério e deslumbramento. É uma batalha que vai ter um final de tragédia. Em que a violência final é uma vez mais exercida no corpo da mulher. Confrontado com a cegueira do poder e do ciúme, com afastamento da experiência do habitar o corpo do mel, CAROLINO preso a uma iluminada cegueira mata. E mais, mais uma vez, a tragédia anunciada desde o início dos tempos tem lugar, desta vez como em demasiadas outras vezes, no corpo feminino.

APARIÇÃO é uma sucessão de confrontos e descobertas onde uma certa sabedoria atávica presente no discurso do reitor, personagem interpretada por João Lagarto, quando aconselha o recente professor a outros temas nas suas redações, tipo caridade, bons costumes, bons filhos e bons pais, diz essa personagem que com esses temas tudo fica bem, os pobre os ricos e os remediados, pode parecer ter sentido. E na verdade tem, o da anemia do sentir.


A aproximação do actor Jaime Freitas ao personagem, foi segundo o próprio, muito orgânica e apaixonante dado o mergulho no universo do Vergílio Ferreira ter sido uma comunhão de sentidos e interrogações. Victoria Guerra, a protagonista, entregou-se também, como ela própria o disse, de forma aberta e orgânica à personagem, à direção do Fernando Vendrell e ao jogo próprio da representação com os atores com quem contracena, em particular com Jaime Freitas.

Há referencias cinematográficas totalmente explicitas como é o caso do desenho do enforcado que nos chega vindo do filme JAIME, do António Reis e da Margarida Cordeiro, realizado em 1974 ano do golpe de Estado que mudou a hegemonia dominante a ocupar o aparelho do governo em resultado do necessário acompanhar o movimento do mundo, coisa em se continua por aqui sempre com várias passadas de atraso, não por virtuosismo, mas por incapacidade. É sempre interessante falar do JAIME, filme surpreendente na sua materialidade completamente ao lado da agitação social da época e na sua expressão formal onde se joga a contaminação do documentário e da ficção, é como que um cometa a atravessar o céu no cinema por cá produzido nesse momento.

É talvez a uma forma, de o realizador Vendrell, afirmar o seu alinhamento com a denominada escola portuguesa de cinema.


Esta “Aparição”, teve inicio com uma proposta de escrita de argumento do João Milagre e Fátima Ribeiro, professores na Escola Superior de Teatro e Cinema, ao Produtor Fernando Vendrell. A proposta foi a concurso no ICA para apoio à escrita em 2005, teve dinheiro, e o filme foi escrito. Esteve posteriormente num concurso em que o realizador era o Mário Barroso, nesse concurso não teve apoio, e mais tarde, num novo concurso, obteve o necessário apoio para a produção.

Filme conseguido, menor que a obra literária, mas com um notável e esforçado trabalho da equipa técnica e artística. Para outros voos o filme precisaria de um segundo acto mais desenvolvido permitisse novas contaminações e folgo narrativo, isso implicaria necessariamente maior orçamento e mais tempo do que as 5 semanas de rodagem. Foi montado em 6 semanas e teve inicio conceptual em 2005, em 2018, esta semana, chega às salas de cinema em Portugal.

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no concelho de Gouveia, distrito da Guarda, a 28 de janeiro de 1916 e morreu em Lisboa a 1 de março de 1996. É considerado um dos mais importantes escritores do século XX, estando a sua produção literária dividida em dois períodos: neorrealismo e existencialismo. Enquanto adolescente estudou num seminário e mais tarde na Universidade de Coimbra sendo que da sua experiência no seminário resultou uma das suas mais importantes obras, Manhã Submersa, publicada em 1953 e adaptada para filme em 1980 por Lauro António. O autor trabalhou a maior parte da sua vida como professor em escolas por todo o país e recebeu vários prestigiantes prémios, entre eles o Prémio Femina em 1990 – um dos mais importantes galardões literários franceses – o Prémio Europália em 1991 pelo conjunto da sua obra e o Prémio Camões um ano mais tarde. A sua ligação a Évora começou, em 1945, altura em que chegou à cidade para dar aulas no então Liceu Nacional, atual Colégio do Espírito Santo – o principal edifício da Universidade de Évora – onde foi professor até 1959, o ano em que publicou Aparição. Para além do contexto autobiográfico, na criação deste livro o autor extrapolou a sua vivência pessoal de forma a aprofundar a narrativa e os temas da obra, utilizando pessoas suas conhecidas como modelos para as personagens do romance. Escrito na primeira pessoa, Aparição transporta teorias filosóficas relacionadas com o existencialismo. A partir deste momento, Vergílio Ferreira constrói uma história que dificilmente pode ser esquecida e confirma o sucesso internacional de um livro que é considerado um dos dez romances portugueses mais importantes.

27 Mar 2018

Lançada biografia sobre Vergílio Ferreira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) de Portugal vai publicar um novo título da colecção “O Essencial Sobre”, desta feita acerca de Vergílio Ferreira. Helder Godinho é o autor da obra sobre o escritor que afirmava ter “nascido para a literatura entre a Presença e o Neo-realismo”, referindo-se a dois movimentos literários que marcaram a vida cultural na primeira metade do século XX – o da Presença ligado ao Modernismo, e o Neo-realismo, muito marcado pelo pensamento marxista.

Todavia, “Vergílio Ferreira cedo se virou para a questionação existencial que, a partir [do livro] ‘Mudança’ (1949), desenvolverá nos seus romances em que se repercute a reflexão presente nos seus ensaios”, escreve Godinho. Uma reflexão que o autor de “Manhã Submersa” prosseguiu nos ensaios e poemas que publicou, tendo utilizado os conceitos “romance-problema” e “ensaio poético”.

“Toda a obra de Vergílio Ferreira (ficcional, ensaística, diarística e de intervenção cultural) é movida por uma mesma coerência que se estrutura como uma forma que percorre a ficção e o ensaio, e que baliza o seu ‘imaginário’”.

Na biografia do autor de “Aparição”, Helder Godinho destaca o facto de ter sido “marcada pela Ausência, em dois momentos”, quando os pais emigraram da aldeia de Melo, na Beira Alta, tinha Vergílio entre dois e três anos, e quando, aos 22 anos, foi estudar para a Universidade de Coimbra.

“Estas duas ausências vão estar na base de grande parte da problemática vergiliana e serão directamente evocadas em muitos dos seus livros. Elas constituem um núcleo estável e duradouro que a evolução cultural do autor irá fazendo encarnar em algumas faces diversas”, atesta Helder Godinho.

Dividida em quatro partes, a obra sobre Vergílio Ferreira (1916-1996) inclui a lista de títulos publicados do autor, e ainda uma “bibliografia seleccionada” sobre o autor de “Cartas a Sandra”.

A colecção “O Essencial Sobre” soma com um total de 131 títulos, abordando as mais diferentes temáticas e personalidades, nomeadamente Política da Língua, A Ópera em Portugal e personalidades como Padre António Vieira, Bernardim Ribeiro ou Eduardo Lourenço.

Centro Cultural | “InspirARTE à Solta” para todos

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá marcado para o próximo dia 27 de Agosto, domingo, o evento que assinala o final dos eventos de Verão dedicados aos mais novos, organizados pelo Centro Cultural de Macau (CCM). “InspirARTE à Solta” é uma iniciativa aberta a todos, com vários espectáculos e workshops.

De acordo com o Instituto Cultural (IC), que gere o CCM, os participantes do workshop de música “GoGoGo!” deste ano vão mostrar o que aprenderam nestas férias. Também os alunos do ateliê “Hora das Palhaçadas!” sobem a palco, e os “Feiticeiros de Marionetas” juntam-se aos seus instrutores para actuarem e mostrarem os novos fantoches. A festa conta ainda com a presença do Coro Infantil do CCM, que vai fazer um miniconcerto.

Além da demonstração do que foi aprendido no programa de Verão, um grupo de artistas locais preparou uma série de actividades criativas. Do programa fazem parte histórias, palhaços, uma visita guiada aos bastidores, pinturas faciais e marionetas. Está também prevista a exibição de filmes.

O Museu de Arte de Macau junta-se ao evento, com um desfile de máscaras e dois workshops. O IC faz ainda referência ao “Art Jamming”, que “leva as crianças a criar novas galáxias coloridas”. O público poderá também “descobrir as pinturas estreladas de Van Gogh”.

O “InspirARTE à Solta” é um evento de entrada livre e começa a partir das 15h30 no CCM.

8 Ago 2017

Vergílio Ferreira: Memória, realidade e imaginação

Ferreira, Vergílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7.

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia.

O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”.

É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”.

Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo.  

     

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.

Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

8 Jun 2017

Rápida, a sombra, de Vergílio Ferreira: O regresso e a memória

Ferreira, Virgílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7.

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia.

O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”.

É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”.

Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo.

 

 

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.

Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

6 Abr 2017

Turbilhão existencial

Ferreira, Vergílio, Signo Sinal, Bertrand, Lisboa, 1990.
Descritores: Romance, Memória, Utopia, Progresso, História, 268 p.21cm, ISBN: 972-25-0270-0

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

Turbilhão existencial

O romance Signo Sinal decorre em grande parte numa aldeia que é completamente devastada por um abalo de terra, após a revolução do 25 de Abril de 1974.

É necessário reconstruir a aldeia, mas no contexto revolucionário as medidas são difíceis de implementar. Vergílio Ferreira utiliza a aldeia como metáfora de toda a sociedade portuguesa no contexto de uma regeneração desencadeada pelos ideais utópicos gerados pela revolução. Também o país foi abalado por um verdadeiro terramoto social. Também o país pretende sair das ruínas e descobrir os caminhos para uma nova vida. E pior do que o terramoto social foi, para mim, o terramoto ideológico.

Aqui há uns anos enquadrado pelas potencialidades dinâmicas de uma dicotomia engendrada por Paul Ricoeur numa das sua obras e fixada na fórmula utopia versus ideologia escrevi um texto definitivamente legitimador do processo revolucionário e jamais me atreveria a revê-lo à luz de preconceitos conservadores ou reaccionários, mas sempre à luz da historicidade intrínseca extra moral que os tempos transportam consigo tacteando os caminhos que a história ainda pode abrir e devastar. Isso não inibe o discurso crítico jamais judicativo no plano histórico imanente. Foi como tinha que ter sido e agora é fácil imaginar que pudesse ter sido de outra forma. No essencial é essa a sensibilidade que subjaz ao narrador de Signo Sinal.

O personagem principal, Luís, sobrevivente do cataclismo e herdeiro de uma fábrica que o seu pai havia construído, encontra dificuldades na acção que resultam da convergência da sua vocação, mais dada ao pensamento e à reflexão que a iniciativas concretas e práticas, com a inoperância própria de momentos históricos em que se quer reconstruir tudo e depois muitas vezes não se reconstrói nada, pois o conflito entre ideais absolutamente utópicos e a realidade é na maior parte das vezes paralisante. Respira-se uma atmosfera ébria e exaltada, pouco propícia ao humilde lançamento dos caboucos da reconstrução. Proliferam os comícios, as manifestações, os planos, mas avança-se muito pouco ou quase nada. Todos os planos são grandiosos, mas as realizações são nulas. A burocracia, as discussões intermináveis, os excessos idealistas manietam o bom senso, e sem bom senso e eficácia nada se realiza.

Se a aldeia representa o microcosmos do país, o arquitecto responsável pela reconstrução representará a elite revolucionária que tem em mãos a construção de uma sociedade nova e de uma nova época da história. Uma espécie de demiurgo do tempo novo. Os diálogos de Luís com o arquitecto mostram essa realidade contraditória entre o desejo e a realidade.

Vergílio Ferreira vai desconstruindo com eficácia as ilusões de uma sociedade que pretende, a partir de fragmentos de antropologias ingénuas e de crenças que nada acrescentam às mais antigas, erguer-se acima da sua própria condição. Sabemos que todas as revoluções resultam de excessos voluntaristas em que os sonhos, os ideais, as utopias adulteram por pura ansiedade escatológica a trama omnipresente da realidade. Os revolucionários, por vocação própria, caricaturam a realidade para melhor terem a ilusão de que a podem moldar, mas aquilo que à pressa se expulsa pela janela, bastas vezes volta a entrar pela porta que continua escancarada. Ou o contrário. Vale o mesmo e é mais perverso.

É em Luís que culminam as contradições do processo transformista, pois nele a realidade social conflitua com a realidade da sua própria vida, onde a dimensão que o transcende conflitua com a sua procura, com a sua demanda, de um sentido existencial. Ora, é sempre isso que acontece, no turbilhão das questões sociais transpersonalistas é sempre a nossa própria questão que continua a acossar-nos. Qualquer ideólogo marxista se apressaria a apostrofar Luís, afirmando que as suas preocupações, impasses, dúvidas e hesitações não passam afinal do drama histórico da classe social a que pertence, a pequena burguesia. E que a história e o seu progresso facilmente removem essas inércias.

Nada mais ingénuo; e por isso Vergílio Ferreira que há muito atirou para trás das costas esses paradigmas sociológicos estreitos, maniqueístas e redutores, acolhe portanto Luís no seu texto como expressão de uma resistência estrutural à rasoura simplista das ideologias. Há na história da humanidade muito mais a expressão do mito de Sísifo que a saga gloriosa do progresso, embora ambas coexistam de forma pletórica. Sendo assim, o autor coloca na boca da sua emblemática personagem estas palavras: “talvez destruam tudo outra vez do que construíram, porque escutam uma ordem nova e certa e irrecusável desde o ignorado da vertigem”. Se nos lembrarmos da metáfora de Walter Benjamin, plasmada plasticamente no quadro de Paul Klee, em que a história é identificada com um anjo que voa de costas continuamente a olhar para o passado, facilmente se percebe que o progresso acontece à margem das vontades, subordinado a um vórtice que aspira vectorialmente para a frente. Enfim, como o anjo voa de costas, parece que é para trás.

Não sei se era assim que pensava Vergílio Ferreira, mas que ele procurava enfatizar neste romance a persistência de estruturas de longa duração ligadas à natureza da condição humana muito mais do que ao visionarismo circunstancial ditado pelos artífices voluntaristas da história, a partir de projectos grávidos de ideologias, disso não tenho dúvidas.                   

9 Mar 2017