A última noite do império II

Por Luis Nestor Ribeiro (1)

O Dia a Dia em Macau

O quotidiano antes da transferência era uma mistura de rotinas tranquilas e de celebrações que enchiam de vida o território. O Mercado Vermelho, próximo da zona norte da cidade, era um dos meus lugares favoritos. Ali, o movimento começava cedo. Os pescadores, com suas bancas lotadas de frutos do mar frescos, dividiam o espaço com vendedores que traziam as suas verduras recém-colhidas do outro lado da fronteira das Portas do Cerco. Havia também especiarias exóticas, ervas medicinais chinesas e uma profusão de cores e aromas que transformavam o mercado num espectáculo visual e sonoro, como se estivesse a assistir ao recital polifónico de uma ópera sincrética.

Durante as festividades tradicionais chinesas, as ruas ganhavam ainda mais vida. O Festival do Tung Ng, um dos eventos anuais mais aguardados, era celebrado com a realização de regatas de Barcos-Dragão. O rio das Pérolas enchia-se de embarcações coloridas e ornadas com dragões esculpidos, enquanto os competidores remavam num ritmo frenético, ao som dos tambores e dos aplausos da multidão. A celebração unia a cidade, independentemente da origem étnica ou social. Todos estavam presentes — portugueses, chineses, macaenses, estrangeiros e turistas de várias proveniências.

O transporte público era limitado, mas tinha uma resposta satisfatória à escala da sua dimensão. Os pequenos autocarros serpenteavam pelas ruas estreitas. Por vezes, ainda era possível observar triciclos que se dedicavam primordialmente ao transporte de turistas para os casinos e que eram uma herança do tempo em que a cidade era percorrida num corrupio sem fim de riquexós, enquanto as águas circundantes da Baía da Praia Grande eram sulcadas pelos juncos e sampanas, com suas velas enfunadas pelo vento, à semelhança de um exótico bailado aquático de leques a flutuar sobre água. O progresso ia gradualmente tomando conta do quotidiano, tendo a ligação de Macau a Hong-Kong, outro importante centro comercial e cultural da região, passado a ser assegurada por modernos jactoplanadores. A construção do Aeroporto Internacional, uma antiga aspiração da população, tornou-se uma realidade, após diversos avanços e recuos de ordem legal e administrativa. A vida parecia seguir o seu curso normal, mas, à medida que o ano de 1999 se aproximava, havia uma sensação crescente de que uma mudança colossal iria mudar tudo de forma radical.

A Névoa da Incerteza: expectativa e esperança

Nos meses que antecederam a transferência de poderes, um aumento de tensão era perceptível nas conversas. O futuro estava rodeado de incertezas, e isso afectava profundamente o estado de espírito da população. Como realizador e produtor de TV, testemunhei essa ansiedade de perto, conversando com habitantes que, embora esperassem uma transição pacífica, não podiam evitar algum receio face ao que desconheciam.

Para muitos residentes, especialmente os que tinham raízes portuguesas ou macaenses, a preocupação de perder direitos e liberdades era real. Havia uma sensação crescente de que, com o tempo, a autonomia prometida pela R.P.C. começaria a desvanecer-se. Embora houvesse a promessa de ser respeitado o princípio de “um país, dois sistemas”, que preservaria a autonomia de Macau por 50 anos, era um tema que suscitava alguma inquietação. O meu amigo Xavier tinha-me confidenciado algumas das suas preocupações, quando nos encontrávamos no café da esquina:

– “… o sistema “um país, dois sistemas” parece promissor no papel, mas como será na prática? E, mais importante, quanto tempo realmente durará? O status quo até agora garantido sob o domínio português, será salvaguardado sob a administração chinesa?”

E a Guilhermina, mãe de uma colega dos meus filhos na escola, segredou-me enquanto aguardávamos o final das aulas:

“- Tenho medo que Beijing acabe por intervir mais cedo do que o prometido, para acabar com o clima de insegurança que vivemos agora em Macau, devido aos atentados cometidos pelas tríades.”

Esse estado de espírito reflectia-se em pequenos gestos e atitudes que contribuíam para alimentar a expectativa. Lembro-me de ver mais e mais famílias portuguesas enviando os seus filhos de regresso a Portugal, preocupadas com o futuro educacional e social de suas crianças num território sob domínio chinês. Ao mesmo tempo, muitos funcionários das repartições e serviços da administração pública, cientes de que os seus empregos não estariam garantidos após a transferência, começavam a preparar-se para abandonar a cidade e retornar aos seus locais de origem, rumo a Portugal ou outros países de língua portuguesa. Nos corredores de alguns edifícios administrativos, o clima era de apreensão e de despedida.

Nos locais de encontro e convívio mais frequentados, as conversas giravam em torno de questões relacionadas com a preservação da identidade cultural de Macau. Alguns dos meus amigos mais próximos, que eram professores e artistas locais, preocupavam-se particularmente com o impacto que o controlo chinês poderia ter sobre a expressão artística e o sistema judicial de Macau, de matriz portuguesa, cuja moldura se baseia num ramo de uma árvore sustentada pelo antigo direito de matriz romana.

A ansiedade também afectava os empresários. O sector do jogo, um dos pilares incontornáveis da economia local, vivia uma fase de estagnação. Os operadores dos casinos não sabiam se a nova administração chinesa manteria o modus operandi ou implementaria mudanças drásticas. O clima de incerteza pairava não só sobre os cidadãos, mas também sobre alguns alicerces da economia local.

No final da década de 1990, a segurança do território tinha sido fortemente colocada à prova através de uma série de atentados e incidentes com grande repercussão nos media, cometidos na sua maioria por tríades rivais que disputavam o controlo de áreas fulcrais para o exercício das suas actividades ilícitas. Recordo que nesse período as autoridades portuguesas não tiveram mãos a medir para tentar neutralizar os desacatos cometidos por alguns protagonistas mediáticos do submundo do crime, que encheram as manchetes dos jornais e revistas com notícias sensacionalistas, relatando os atentados bombistas em viaturas, homicídios perpetrados em locais públicos e incêndios colectivos de motociclos estacionados na via pública.

As Divisões Sociais

Apesar da apreensão se ter instalado em grande parte da comunidade portuguesa e macaense, havia também um grupo de considerável influência, que interpretava a transferência como uma nova janela de oportunidade que se abriria. Para os empresários e investidores chineses, a transição significava a possibilidade de Macau assumir um papel económico relevante no contexto regional do grande delta do Rio das Pérolas. A crescente abertura da China ao capitalismo, e a sua promessa de uma maior receptividade relativamente a grandes investimentos no sector do jogo, começava a atrair a atenção de novos investidores, no quadro de futura adesão da China à Organização Mundial do Comércio.(9)

Entre os jovens, as reacções também eram divididas. Alguns, nascidos e criados em Macau, não tinham receio da mudança e viam-na até como uma oportunidade de renovar as suas perspectivas de futuro. Estavam curiosos para ver como a nova administração moldaria a cidade. Outros, no entanto, temiam que a terra que conheciam desaparecesse, substituída por uma versão descaracterizada e padronizada de uma vulgar cidade sob administração chinesa.

O Dia da Cerimónia: Um Momento Histórico

A expectativa nos dias que antecederam a cerimónia de transferência era tanto de celebração quanto de apreensão. O território havia sido profusamente decorado com bandeiras chinesas e portuguesas, e as fachadas das repartições oficiais estavam iluminadas, criando um cenário sumptuoso de despedida monumental. Ao mesmo tempo, não se podia ignorar a tensão pairando no ar. Para muitos, era o fim de uma era.

Na noite de 19 de dezembro de 1999, quando teve início a sucessão de 21 eventos que constavam do programa oficial de comemorações da Cerimónia de Transferência de Administração, as ruas estavam tomadas por uma enchente de populares interligados por uma contagiante mistura de emoções. Teve lugar a despedida do Governador de Macau ao seu staff e colaboradores no Palácio de Santa Sancha (residência oficial), o render da guarda de honra no Palácio do Governo, seguido de uma série de concertos e eventos culturais que mesclavam tradições portuguesas e chinesas. Os convidados reuniram-se para assistir aos espectáculos, mas o verdadeiro protagonista era o próprio território. Cada esquina, cada beco, cada fachada colonial, cada mercado, parecia estar a despedir-se da sua própria história como peça insubstituível de uma antiga colónia.

Os Protagonistas

E, finalmente, às 24 horas de 19 de Dezembro de 1999, no local propositadamente construído para o evento (10), entraram em cena os principais líderes políticos: o presidente de Portugal, Jorge Sampaio, e o presidente da China, Jiang Zemin. Cada um representava o peso de suas respectivas nações. Para os portugueses, a cerimónia marcava o final de quase cinco séculos de presença colonial na Ásia. Para os chineses, significava a recuperação de mais uma peça do que consideravam ser uma parcela perdida da pátria. Os discursos dos líderes estavam repletos de simbolismo. Jorge Sampaio destacou os laços culturais e históricos que uniam Portugal e Macau, mas também enfatizou a necessidade de respeitar a autonomia do território no novo contexto chinês. Jiang Zemin, por sua vez, prometeu que Macau continuaria a prosperar sob o princípio de “um país, dois sistemas”, garantindo a continuidade de seu modo de vida e sistema económico.

Foi o momento crucial dos 21 eventos, assistido no local por 2500 personalidades convidadas, em representação de governos e organismos internacionais, mas que, por força daquela que então se considerou ser “a maior operação mediática da história do audiovisual português”(11), foi seguida por milhões de pessoas em vários pontos do Mundo. Pelo consórcio formado pela TDM de Macau em conjunto com a RTP (Portugal) foi cedido o sinal da cobertura televisiva que realizei a partir de um OB-Van (Carro de Exteriores e Estúdio móvel de TV) à Televisão Estatal chinesa (CCTV – China Central Television) que, após o recepcionar, o distribuiu para cerca de 300 estações afiliadas em toda a China. O colossal dispositivo técnico montado para as várias emissões via satélite, mobilizou 250 profissionais (sendo cerca de 150 da TDM, incluindo alguns contratados a produtoras do Sul da China e H.K. e 100 da RTP) ao serviço do Consórcio TDM – RTP que provisionou as várias frentes operacionais onde estavam perto de 100 câmaras TV, 10 carros de exterior OB-Van, um helicóptero de transmissões por feixes, estúdios, régies, 40 cabines para jornalistas comentadores no Press and Broadcast Center e 12 posições móveis de câmaras TV, em diferentes pontos (no exterior) onde os acontecimentos justificassem a sua presença(12).

O ‘Centro de Imprensa e Emissões TV – Press and Broadcast Center’ foi instalado pelo Consórcio em 3 andares do edifício Zhu Kuan, nas imediações do Centro Cultural de Macau. Durante três longos meses, desde o início de Novembro de 1999 até ao final de Janeiro de 2000, foi naquele preciso local que desenvolvi toda a planificação, organização do trabalho de produção e o encerramento desse complexo ciclo, com a apresentação do relatório final e o fecho de contas do orçamento. Foi necessário coordenar em várias frentes, os aspectos logísticos e técnicos de cobertura televisiva, para instalação dos equipamentos em diversos locais dispersos pela cidade, incluindo as autorizações para os planos de voo do helicóptero que iria recolher imagens aéreas dos eventos. Sucederam-se reuniões e sessões de trabalho com representantes do Palácio do Governo, Segurança, Obras Publicas, staff de Produção e Jornalistas. Entre os jornalistas destacados pela RTP, estavam dois anchors, Judite de Sousa e José Rodrigues dos Santos, antigos profissionais da TDM no início da década de oitenta e que revisitavam Macau com a distinta missão de apresentarem a emissão televisiva personalizada para a audiência portuguesa.

No constante vaivém entre reuniões e visitas prévias de vistoria aos locais de transmissão, incluindo posições de reportagem para os jornalistas, recordo que cada acesso de pessoas e viaturas ao interior do perímetro de segurança onde se localizava o nosso Centro, implicava uma inspecção meticulosa pelos elementos das Forças de Segurança. O perímetro abrangia os locais onde decorreriam as principais cerimónias, e o acesso de pessoas só era autorizado após serem atravessados os pórticos de raios X, usados com o propósito de localizar e neutralizar quaisquer armas ou objectos que pudessem constituir uma ameaça. Isso provocava imensos constrangimentos, para a circulação de pessoal técnico, equipas de reportagem e respectivos equipamentos. Imagine-se o stress causado com os atrasos, quando o material recolhido nas reportagens não podia ser editado a tempo e horas de ser emitido. Havia um excesso de zelo provocado pelo clima de insegurança que se vivia, devido aos incidentes causados pelas tríades em vários pontos do território. As viaturas que entrassem na zona de segurança tinham de se sujeitar a uma inspecção rigorosa do seu interior e do chassis, com o recurso a espelhos colocados em braços telescópicos que reflectiam os pontos inacessíveis.

Numa perspectiva mais pessoal, confesso que foi um período de trabalho intenso, de grande azáfama, em que praticamente só ia a casa para dormir, quando tinha a sorte de não ter de fazer sessões longas de trabalho sem interrupção, por imperativos de ordem profissional. No âmbito do Consórcio, fui o Coordenador de Produção e Realização de todas as equipas que fizeram a cobertura dos 21 eventos oficiais para além de responsável pela realização televisiva do evento principal, onde se procedeu à transferência de poderes.

Coordenei igualmente a realização da transmissão televisiva em directo para várias estações e canais noticiosos internacionais que o Host Broadcaster(13) assegurou de forma ininterrupta durante três dias, após a cerimónia principal. Esta solução permitiu difundir conteúdos relevantes sobre a realidade e história de Macau, para além da reprodução em diferido dos eventos oficiais mais mediáticos, numa emissão internacional disponível via satélite para todos os continentes e adaptada aos diferentes fusos horários. A ela aderiram as principais cadeias mundiais, com destaque para a CCTV China, RTP Portugal, BBC Reino Unido, CNN E.U.A., NHK Japão, ABC Austrália, Globo Brasil, entre outras.

A maior adversidade que senti naqueles momentos foi ter de coordenar uma numerosa equipa multicultural, com profissionais oriundos de várias proveniências geográficas e que não falavam a mesma língua. Esse é sem margem para dúvidas um dos maiores desafios para qualquer realizador. A improbabilidade de poderem reagir todos com o mesmo timing, às instruções que receberiam da régie (14). Como não dominavam todos a mesma linguagem, optei por razões estratégicas, por me dirigir à equipa na língua inglesa, recorrendo aos termos técnicos mais usados nos estúdios de cinema e tv para estruturar guiões e planificações. Se assim não fosse, ia ver-me incompreendido numa Torre de Babel.

Num directo, em termos de realização televisiva, não há margem para indecisões nem reflexos retardados. Ser capaz de transmitir ordens perceptíveis à equipa, sem hesitações, nem hiatos de comunicação é um must. Qualquer instante do que está a ser transmitido e a ser captado pelas câmaras num palco, numa tribuna, num cenário, etc, tem de ser exibido no preciso momento em que acontece, de forma a tornar lógico, perceptível e coerente o conteúdo que se difunde. O realizador não pode perder aquilo que chamo o ‘instante relevante’.

Se isso porventura suceder, a gramática visual de uma sequência não está a ser bem interpretada e reproduzida. Num ambiente de régie em directo, no momento da realização só pode ouvir-se uma voz de comando, a do realizador que solicita e comuta a sequência de imagens e sons, captadas pelas câmaras, microfones, sem atrasos. Todos os meios, humanos e técnicos, têm de estar perfeitamente sincronizados em resposta às instruções do realizador. Um processo criativo análogo sucede quando um maestro dirige uma orquestra sinfónica. Para o sucesso de uma realização em directo, é imprescindível que, qualquer gesto, acção ou movimento seja captado no exacto momento em que ocorre. Se houver um atraso, o que se pretende transmitir perdeu-se irremediavelmente. Em directo, não há lugar para repetições!

Notas

1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008.

9 A China tornou-se oficialmente o 143º membro da O.M.C. em 11 de dezembro de 2001, após 15 anos de

negociações, completando uma etapa importante no seu processo de "reforma e abertura" iniciado em 1978 com o grande líder visionário Deng Xiaoping. Esta adesão oficial, constitui um marco incontornável no processo gradual de globalização que a economia mundial evidenciava no dealbar do novo milénio. A par e passo, os bens de consumo produzidos em massa na R.P.C. começavam a inundar os principais mercados globais.

10 A cerimónia teve lugar num edifício temporário de estrutura leve, com traços arquitectónicos inspirados numa gigantesca lanterna chinesa, construído especificamente para o evento no Jardim do Centro Cultural de Macau

11 Teves, Vasco Hogan – RTP. 50 Anos de História, Museu da RTP, 2007

https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe90/MaisPaisEMaisMundoNosAnosDificeisDaRTP/Pag12/def

ault.htm

12 O Conselho de Administração da RTP reconheceu o mérito do trabalho desenvolvido (Ordem de Serviço nº 3, de 7.2.2000): “Em todas as situações inerentes ao cumprimento da missão, os trabalhadores da empresa destacados para o Consórcio evidenciaram níveis extraordinários de desempenho, ultrapassando não só as dificuldades logísticas como também os constrangimentos linguísticos e de diferença cultural dos seus parceiros de operação. Em face do referido índice de desempenho, aliado à dedicação, à competência e à atitude cívica igualmente patenteados, o Conselho de Administração deliberou aprovar um público louvor a todos os trabalhadores da empresa que integraram o Consórcio TDM/RTP, a que entende dever associar aqueles que nos serviços da Sede asseguraram o conjunto das tarefas necessárias para o referido efeito.”

13 Consórcio TDM – RTP

14 Centro de Controlo e Comando da Realização TV

22 Nov 2024

Diplomacia | Londres pressionou Lisboa a não garantir nacionalidade aos residentes de Macau

O Reino Unido pressionou Portugal a não conceder nacionalidade portuguesa aos residentes de Macau em meados na década de 1980 para evitar que o mesmo pudesse vir a ser reivindicado em Hong Kong

 

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] o que revelam documentos oficiais britânicos, disponibilizados pelos Arquivos Nacionais de Londres: o Reino Unido pressionou Portugal para não conceder nacionalidade portuguesa aos residentes de Macau (antigo enclave português) para impedir que os habitantes de Hong Kong (antiga colónia britânica) tivessem aspirações idênticas antes da transferência de soberania.

Segundo o South China Morning Post, que cita os documentos que deixaram de estar classificados, a tensão entre os dois países remonta a 1985, ano em que Portugal preparava a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), actual União Europeia. Activistas de Hong Kong, ouvidos pelo mesmo jornal, consideram que os ficheiros vêm mostrar, mais uma vez, o tratamento “vergonhoso” dado pelo Reino Unido aos residentes da então colónia britânica durante o período que viria a culminar na entrega do território à China, em 1997.

De acordo com o SCMP, Londres apenas concedeu o direito de residência a 50 mil habitantes de Hong Kong e aos respectivos familiares, atribuindo aos demais o passaporte British National (Overseas). O documento não oferece as mesmas regalias e permite apenas a permanência no Reino Unido por um período de seis meses, além do gozo de assistência consular fora de Hong Kong.

Os ficheiros analisados pelo SCMP indicam que o então secretário do Interior britânico, Douglas Hurd, instou os seus colegas a persuadir Lisboa a apertar os critérios para a atribuição de nacionalidade portuguesa aos residentes de Macau. Numa carta, endereçada ao então ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Geoffrey Howe, datada de Outubro de 1985, Douglas Hurd alerta que qualquer residente com passaporte português em Macau teria possibilidade de viver e trabalhar no Reino Unido ou em qualquer parte da CEE.

Sob pressão

Uma estimativa da época indicava que cerca de 85 mil residentes de Macau teriam direito à nacionalidade portuguesa, mas Hurd temia que o número fosse maior. “Com Macau a regressar ao controlo da China eventualmente ao mesmo tempo que Hong Kong, é provável que haja muitos macaenses de nacionalidade portuguesa que decidam que a Europa, em vez de Macau, seja o lugar certo para estar”, escreveu.

Para Hurd, era claro que as autoridades britânicas iriam ficar sob pressão por causa da posição dos portugueses que permitia um acesso mais livre ao Reino Unido por parte dos residentes de Hong Kong. Não obstante, o mesmo responsável insistiu que Londres deveria resistir a tal pressão, embora reconhecendo que tal postura era passível de fortes críticas.

Na resposta, o chefe da diplomacia britânica reiterou, contudo, que não iria iniciar conversações directas com as autoridades de migração em Macau sobre o assunto, dado que o então governador de Hong Kong receava que maior pressão britânica sobre os portugueses pudesse ser ressentida na cidade.

Portugal, ao contrário do Reino Unido, não faz distinções, não possuindo um sistema de dois níveis. Os passaportes portugueses – que têm inerente pleno direito de cidadania – foram concedidos a todos os nascidos antes de 20 de Novembro de 1981, podendo a nacionalidade portuguesa ser transmitida aos seus filhos.

25 Jul 2018