Rock Reflection 2

Na semana passada comecei por vos falar do livro de Louise Stanley «O Futuro de Ontem» e ao mesmo tempo acerca da nova corrente literária «rock reflection». Começámos a ver que a ligação que a escritora faz entre o disco e uma revolução ou bocado de futuro prende-se com a questão musical em si e não com as letras. Stanley escreve:

«Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.» Disse-vos também que esta nova corrente literária, se assim podemos chamar, escrevem acerca do mundo pop-rock (mais rock que pop) e os seus intervenientes como até aqui se tem escrito acerca de livros e de escritores. Reflectem sobre muitas questões do humano, do ponto de vista ontológico e social, não a partir de textos, mas de discos, não de escritores, mas de cantores, guitarristas, bandas. Por esta razão, são raros os livros de ficção e muito mais aquilo a que poderíamos chamar ensaios, como é o caso deste livro. Ensaios livres, poéticos. Começámos também por ver que Louise Stanley se opõe completamente a James Goodman, no modo como este entende a «rock reflection». Segundo James Goodman, a «rock reflection» não deve ter limites, tanto pode explorar a filosofia quanto a música, partindo dos discos, dos vídeos, dos músicos. Para Louise Stanley isso é absurdo. A «rock reflection» só faz sentido se a reflexão for essencialmente musical e cultural, abstendo-se de incursões na filosofia. No fundo, é como se cada um deles atribui-se mais importância a um dos termos que ao outro que define o movimento. James Goodman põe enfase na reflexão, Louise Stanley enfatiza a parte musical. Por conseguinte, este livro de Louise Stanley é uma viagem muito mais carismática e sui generis para o leitor comum do que o livro de Goodman. Louise Stanley começa por ir às origens do desencontro entre a música branca e a música negra nos Estados Unidos da América, até que chega a 1979 e a um disco que lhe parece fundamental, como que o início da revolução, da «fusão entre o mais negro e o mais branco».

Por conseguinte, é fundamental citar esta longa passagem que faz justiça a um dos mais injustiçados guitarristas da história popular e que tem uma importância fulcral nesta história. Escreve: «Os Talking Heads, Brian Eno e Adrian Belew não estavam apenas atentos ao futuro [refere-se às inúmeras inovações sonoras] e aos ritmos mais ancestrais [influencias dos ritmos tribais africanos], a canção “Houses in Motion” mostra que também estavam muito atentos ao que de mais contemporâneo se fazia, com a magnífica guitarra de Adrian Belew a lembrar bastante o trabalho de um dos melhores guitarristas da época, Ricky Wilson, que viria a morrer de sida cinco anos depois do lançamento de “Remain in Light”. Ricky Wilson era irmão de Cindy Wilson, e ambos eram membros fundadores dos B-52’s, banda da Georgia, que gravara o primeiro disco no início de 1979, álbum com o mesmo nome da banda, e o segundo no início de 1980, «Wild Planet», portanto discos anteriores a “Remain in Light”. Ricky Wilson tocava guitarra de um modo muito peculiar, apenas com quatro cordas, as duas primeiras e as duas últimas; as suas guitarras não tinham as cordas do meio, a sol e a ré. Aliado a isto, usava várias afinações completamente fora da normal, sendo a mais usual afinada do seguinte modo: DA-BB (Ré, Lá-Si, Si). Isto implicava necessariamente um som original, que era amplificado por um Fender Silverface Deluxe e por uma palhetada percussiva, muito ritmada, por vezes como se fosse um baixo. E este som bastante percussivo e ritmado é precisamente o que Adrian Belew faz em “Houses in Motion”, como homenagem não apenas ao guitarrista dos B-52’s, mas como forma de sublinhar o que de melhor se fazia no final dos anos 70 e princípios de 80. Aliás, não terá sido por acaso que no ano seguinte, em 1981, os B-52’s tentaram fazer o terceiro disco, ainda com Ricky na guitarra, tendo David Byrne como produtor. Infelizmente, os desentendimentos foram tantos que o projecto não chegou a concretizar-se.» Outra das peculiaridades que contribuíam para o som característico de Ricky Wilson e que Louise Stanley não menciona era o uso de cordas muito mais grossas do que a maioria dos guitarristas usava: 0.13 (a maioria usava e usa 0.09 ou 0.10). E concordo em absoluto quando Louise Stanley escreve «Ricky Wilson é um dos guitarristas mais subvalorizado da música popular, que Adrian Belew reconhece e a quem presta homenagem.» Para não falar que o modo como fazia uso dos harmónicos irá influenciar directamente The Edge, guitarrista dos U2. Louise Stanley escreve: «Assim, sem dúvida que “Houses in Motion” é uma canção em que Adrian Belew presta uma homenagem justa e em tempo real não apenas a um dos mais originais guitarristas do seu tempo, mas também àquele que estava adiante do seu tempo, no tocante à amálgama entre música branca e música negra. Era uma forma de trazer para dentro do disco mais revolucionário da história – pelo menos ao tempo é – uma banda e um guitarrista que contribuíram para que isto fosse possível.» Repita-se a passagem de Louise Stanley: «Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.»

Stanley vai mais longe, afirmando que sem os primeiros dois discos dos B-52’s não teria existido «Remain in Light» dos Talking Heads. «O uso dos sintetizadores por Kate Pierson e Fred Schneider, a guitarra original e ritmada de Ricky Wilson, o som marcadamente dançante, e sublinhado pelas percussões, desfazia as barreiras entre música branca e negra. E era esta ideia que os Talking Heads levaram às últimas consequências em “Remain in Light”, com a ajuda de Brian Eno e Adrian Belew, de um modo que seria impossível os B-52’s alcançarem. Há nesta perfeição a faísca da banda da Georgia.»

O livro de Stanley também nos mostra como podemos pensar a música para além do óbvio. Como por mais que se oiça um disco, discos, podemos ter sempre sons ou sentidos que nos escapam, como acontece na leitura de um texto. Escreve Louise Stanley: «A música, mesmo a popular, quando composta por grandes músicos está sempre inserida numa tradição e num contexto cultural que é preciso ter em conta. Sem isso, não estamos a ouvir verdadeiramente um disco.»

Contrariando respeitosamente Louise Stanley, termino esta leitura do seu livro com a citação livre de um excerto de uma das letras do disco, mais propriamente da canção «Crosseyed and Painless»: «[…] Os factos distorcem a verdade / […]».

2 Mar 2021

Rock Reflection 1

Nesta rubrica «Uma Asa no Além» já escrevi dois ou três textos acerca de livros norte-americanos que fazem parte de uma nova corrente literária chamada «rock reflection». Esta nova corrente, surgida em São Francisco, mas que se espalhou ainda com mais expressividade na costa leste – vimos aqui recentemente um pequeno ensaio de James Goodman «O Futuro Eterno Agora» – são compostos maioritariamente por ensaios acerca da música ou das bandas rock. O universo onde a reflexão se centra, nestes textos, é o rock. Embora de modo geral, os textos tenham uma carácter ensaístico-poético, também há também textos que dividem a reflexão com a ficção, como foi o caso do livro que vimos aqui de um autor de São Francisco, Howard C. Jones, «White Punks On Dope».

O livro que nos traz hoje aqui vem da costa leste, mais propriamente de Nova Iorque, e chama-se «O Futuro de Ontem», escrito por Louise Stanley, que nos leva por um dos discos mais importantes na minha juventude: «Remain in Light», da mítica banda nova-iorquina Talking Heads. Mas o livro é também um livro charneira para a linha mais radical da «rock reflection», que pensa o movimento como essencialmente musical e cultural, contrariamente ao ponto de vista defendido por James Goodman. Mas a isto voltaremos na segunda parte desta nossa incursão ao mundo de «O Futuro de Ontem».

Acerca de «Remain in Light», só recentemente tive conhecimento de que a minha experiência com o disco foi muito similar à de um importante músico pop-rock norte-americano, mais conhecido como vocalista e mentor dos Nine Inch Nails, Trent Raznor. Numa entrevista em 2020, Raznor disse que «Remain in Light» era o melhor disco de sempre. Não apenas o melhor da década de 80, como escreve Louise Stanley – «Estou convicta de que “Remain in Light” é o melhor disco da década de 80.”» –, mas o melhor de sempre. Leia-se o que Raznor disse na entrevista, acerca daquele que é para ele o melhor disco de sempre da história da pop-rock: «Trata-se de um dico que não entendo quando o ouvi pela primeira vez, no início dos anos 80. Nessa altura, vivia numa pequena cidade do interior, sem quaisquer actividades culturais. E, vindo do nada, chega este disco. Uma obra de arte estranha, sintética, polirrítmica, com influências africanas, que me baralharam todo. […] O que acontece com bons discos quando os ouvimos pela primeira vez, como neste caso, é que nunca sabemos bem com o que estamos a lidar. Não temos medida de comparação. Mas ficamos fascinados por eles, e depois de o ouvirmos seis vezes o disco começa a revelar-se. À décima audição estamos completamente apanhados. Mas mesmo quando o ouves pela trigésima vez, descobres coisas novas. Foi com “Remain in Light” que aprendi tudo isto e o vivi pela primeira vez.» A experiência que Trent Raznor descreve é muito similar à minha, embora nem por um momento duvide de que ele escute melhor esse disco do que eu, pois não duvido que tenha melhor ouvido e saiba mais de música pop-rock do que eu, além de ter sido considerado imortal por David Bowie, que tinha grande admiração por Trent. Bowie e Raznor fizeram uma tournée juntos em finais de 1995 início de 1996 e também uma música e vídeos, «I’m Affraid of Americans». É muito provável que a musicalidade de Trent Raznor, e o encontro entre ambos, tenha escurecido o coração de Bowie para sempre. Podem assistir aqui a uma das canções dessa tournée «Reptile», dos Nine Inch Nail, ao vivo com David Bowie: https://www.youtube.com/watch?v=wJIJzmcc4MY. Ou ao concerto inteiro, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=j4sP1CTuIjs. Curiosamente, ou talvez não, dez anos mais tarde Trent Raznor cantaria esta mesma canção, «Reptile» com Peter Murphy: https://www.youtube.com/watch?v=gvClJOA5lqA

Esta breve viagem aos Nine Inch Nails e a David Bowie teve apenas como objectivo sublinhar a importância da escolha do quarto álbum dos Talking Heads como o melhor disco de sempre. Trent Raznor poderia ter escolhido um dos discos Bowie do período de Berlim, que ele tanto gosta, poe exemplo, mas escolheu «Remain in Light». Poderia ter escolhido algo mais obscuro, como a sua música ou aquela que usualmente ouve mais, mas escolheu um disco que é o oposto disso. O que tem este disco de tão especial afinal?

Regressando ao livro de Louise Stanley, que foi publicado em 2018, a escritora não pôde ter tido acesso às declarações do vocalista dos Nine Inch Nails acerca do disco dos Talking Heads, embora muito do que Trent Raznor disse musicalmente acerca do disco, ela o tenha dito. Mas além de uma análise musical do disco em geral e das canções em particular, Louise Stanley explora aquilo que ela considera «a grande fenda nacional». Esta fenda nacional, explorada ao longo do livro, é retirada de uma entrevista dada pelo vocalista dos Talking Heads, David Byrne, quando se refere a «Remain in Light»: «Financeiramente, levámos uma grande tareia com esse disco. Na época, foi muito difícil vendê-lo. Aquilo que nos diziam é que o disco soava demasiado “negro” para as rádios “brancas” e demasiado “branco” para as rádios “negras”.» Aquilo que Louise Stanley nos quer mostrar, ao citar logo no início este excerto de uma entrevista de David Byrne acerca de «Remain in Light», é que «[…] no início dos anos 80, os Estados Unidos da América ainda não se tinham libertado do preconceito que atingira o seu confronto máximo nos anos 60. No início dos anos 89 continuava a haver um fosso a separar a sociedade negra da sociedade branca, assim como os apreciadores de música. “Remain in Light” era um disco revolucionário, não pelas letras, independentemente de serem boas, mas pela música, pelo som. “Remain in Light” desmascarava as divergências, sem palavras, fazia com a falsa divergência fosse ouvida. Os americanos não estavam preparados para um disco sem fronteiras de cor. Seria na Europa que o disco ganharia a reputação de obra prima. Musicalmente, o disco estava muito à frente do seu tempo, principalmente pelas guitarras de Belew, culturalmente expressava uma utopia: ouvidos que não escutassem a cor da música.»

Para além dos quatro membros dos Talking Heads – David Byrne na voz e guitarra, Tina Weymouth no baixo e nos teclados, Chris Franz na bateria e Jerry Harrison na guitarra e teclados (nas percussões, todos) –, a banda teve as preciosas colaborações de Brian Eno e do icónico guitarrista Adrian Belew, que tinha tocado com Frank Zappa e David Bowie (no período de Berlim). Além de vários trabalhos de guitarra ritmo, foi responsável pelos estranhos solos de guitarra sintetizadora. Mais do que com notas, Belew solava com sons. Brian Eno, que além de produtor foi também co-compositor de todas as músicas e co-letrista das duas primeiras canções do disco – «Born Under Punches (The Heat Goes On)» e «Crosseyed and Painless» –, tocou todos os instrumentos, excepto bateria, e foi responsável pelos arranjos vocais. Nas vozes secundárias aparecia a incontornável Nona Hendryx, o indiscutível lado negro da voz.

Tenho a noção de que não cheguei sequer a falar metade do que poderia, acerca do livro de Louise Stanley. Felizmente no «Hoje Macau» temos espaço e tempo. Continuarei na próxima semana, de modo a vermos melhor o livro que não é apenas acerca da importância musical e cultural de um disco, mas também tenta ser um divisor de águas no movimento «rock reflection». Asseguro-vos que vale a pena continuar a acompanhar este livro da escritora nova-iorquina. Este trabalho propedêutico que aqui foi feito hoje era fundamental. Para que tenham uma melhor noção deste disco e da importância de Adrian Belew, vejam os Talking Heads ao vivo na Alemanha, em 1980, a tocar «Crosseyed and Painless»: https://www.youtube.com/watch?v=ul7I3Z5LA5M. Dois baixos em palco; além de Tina, Busta Jones. A fazer o trabalho que Nona Hendryx fizera em estúdio está Dolette McDonald. Nos teclados, Bernie Worrel. Nas percussões, Steve Scale.

23 Fev 2021