Flávio Tonnetti VozesNa Substância do Tempo – dança, corpo e linguagem O programa de dança apresentado pela Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo no Festival de Artes de Macau, concebido para a comemoração dos 100 anos de nascimento da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foi particularmente tocante. Primeiro, porque a escolha de uma companhia portuguesa que homenageia uma de suas maiores poetisas permite retomar as conexões históricas existentes entre Portugal e Macau em planos estéticos e simbólicos, mobilizando afetos e sensibilidades que nos tocam não no passado, mas na emergência do presente. Depois, porque o poema “Quando” de Sophia, que dá o mote à primeira peça do programa intitulada “Em Redor da Suspensão – e seguida por “Outono para Graça” e “Requiem” – fala justamente de transformação e transcendência, conectando imediatamente esse espetáculo europeu à versão chinesa da Sagração da Primavera de Yang Liping, cumprindo com a promessa de oferecer um Festival de Artes que nos permita, refletindo sobre vida no tempo expandido das longas jornadas, olhar para o futuro com afeto. No caso da coreografia portuguesa, também é sensível que o espetáculo tenha ocorrido na mesma data em que se comemora o dia da Língua Portuguesa, uma língua pluricêntrica cuja variedade de sotaques e modos de ser encontra em Macau uma vida própria. Que se homenageie, em Macau, essa língua com uma dança dedicada a Sophia, não me parece uma questão trivial por parte dos programadores dos eventos, tendo em vista, sobretudo, o cuidado com as escolhas e as articulações que percebemos emergir ao longo de toda a programação do Festival. O que temos, nesse caso, é o corpo do bailado como oferenda à língua feminina, que tudo gera e tudo conecta – que tudo transforma. A língua que cria realidades para além da realidade dada. Se a poesia, por ser ancorada na palavra, necessita de grande esforço tradutório, o mesmo não ocorre com a dança, mais universalmente acessível como linguagem. A caligrafia dos corpos que cruzam o ar em movimento é capaz de cruzar quaisquer fronteiras da sensibilidade. A dança, como linguagem, realiza aquilo que a nação portuguesa um dia pretendeu: lançar-se para além dos limites do próprio confinamento. Contra todos que um dia quiseram conquistar e dominar, impondo uma cultura sobre as outras, vemos no corpo da língua de Sophia uma mátria imensa acolhedora que, na coreografia de Vasco Wellenkamp, nos convida, em tons gentis, a girar em suas calhas de roda. E nossos corações sentimos vir se revelando: a leveza mais que a gravidade, a brisa mais que a umidade, o voo mais do que a ave. A dança da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, com sua gramática delicada de gestos, mostra uma Sophia como expressão máxima de uma cultura que sabe ser sedutora, que domina ao ser dominada, que vence ao ser vencida, que faz acender a luz na noite da madrugada. Dessa cultura ninguém deseja fugir, a ela queremos nos entregar na transcendência além do amor – e de toda morte. Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta Continuará o jardim, o céu e o mar, E como hoje igualmente hão-de bailar As quatro estações à minha porta. Outros em Abril passarão no pomar Em que eu tantas vezes passei, Haverá longos poentes sobre o mar, Outros amarão as coisas que eu amei. Será o mesmo brilho, a mesma festa, Será o mesmo jardim à minha porta, E os cabelos doirados da floresta, Como se eu não estivesse morta. Sophia de Mello Breyner Andresen Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Sofia Margarida Mota EventosRota das Letras | “Sophia” sobe ao palco amanhã pela companhia D´as Entranhas [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma abordagem de “um real” possível, tendo em conta que um poema é, para Sophia de Mello Breyner, “um círculo onde o pássaro do real fica preso”, é o que o espectáculo “Sophia” pretende levar ao palco, amanhã, pela mão da companhia D´as Entranhas, revela a actriz Vera Paz ao HM. A peça marca a abertura oficial da oitava edição do Festival Literário Rota das Letras e vai ter lugar às 21h nas Oficinas Navais n.º2. “Sophia” é um espectáculo que nasce a partir da viagem levada a cabo no livro “Contos exemplares”. “É a história de um homem e de uma mulher que vão fazendo um caminho, e à medida que vão andando vão perdendo tudo”, aponta a actriz. Foi esta permissa, “a da procura”, que serviu de mote para o trabalho que viria a seguir. “Estamos sempre à procura de um lugar ideal e nunca vivemos o momento presente e ao perder o presente, perde-se tudo o que se vai vivendo pelo caminho”, refere. No fundo, trata-se de uma interpretação da vida, das encruzilhadas e das escolhas que se fazem, tendo em conta “o que fica quando se chega ao fim”. A partir daqui, D´as Entranhas pôs mãos à obra e pegou nos textos da poetisa portuguesa para os poder trabalhar, até porque “é uma obra imensa, de uma dimensão quase intocável. A Sophia é um monstro sagrado da literatura”. Mas o objectivo não é fazer a récita do trabalho de Sophia de Mello Breyner. Numa abordagem mais atrevida, D´as Entranhas construiu uma história, “a partir de poemas escritos em várias fases da vida da autora”. Temas universais Mais do que abordar a componente política do trabalho de Sophia de Mello Breyner, o enfâse agora é posto na sua “componente poética, do amor, da morte, da vida, de um homem e de uma mulher”, refere Vera Paz. “É uma voz masculina e feminina capazes de representar qualquer um”, explica. A actriz recorda uma peça homónima encenada há doze anos, “uma primeira ‘Sophia’ em que a componente era muito política”. Mas, agora o objectivo foi mostrar um outro lado da autora – “ela tinha tantos lados que uma pessoa nem sabe por onde pegar”, aponta. “Aqui foi uma outra releitura, talvez porque as pessoas estão a viver outros momentos da vida”, justifica. Por outro lado, o amor é sempre um tema a ser abordado, assim como a morte e a vida, “são temas universais”, remata. Olho cinematográfico Para produzir “Sophia” foram desconstruídos poemas, interpretadas ideias e produzida toda uma cenografia “quase cinematográfica” para acompanhar as palavras e os actores. “O espectáculo conta com uma importante componente plástica, da autoria de Bernardo Amorim, que integra a projecção de vídeo e o acompanhamento músical”. O objectivo é criar interactividade com uma encenação “mais visual”, diz. A contracenar com Vera Paz vai estar o também director de D´as Entranhas, Ricardo Moura. O espectáculo conta com entrada livre.
Andreia Sofia Silva EventosRota das Letras | Poesia e Salvador Sobral marcam a edição deste ano A oitava edição do festival literário Rota das Letras acontece no próximo mês e será dedicado à poesia, lembrando não só o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner como os 200 anos do nascimento de Walt Whitman. Na música, destaque para o concerto de Salvador Sobral [dropcap]N[/dropcap]em só de romances se fará a nova edição do festival literário Rota das Letras, que este ano muda de casa e acontece em vários pontos da cidade. O programa foi ontem divulgado e dá destaque à poesia escrita em português e inglês, mas também à música. Agendado para os dias 15 a 24 de Março, o festival acontece no Centro de Arte Contemporânea, localizado no Porto Interior. Grandes nomes da poesia norte-americana, como Walt Whitman e Herman Melville serão recordados, sem esquecer o centenário da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner. Jorge de Sena, autor que ficou conhecido essencialmente pela sua poesia e que escreveu um único romance, “Sinais de Fogo”, também será lembrado. A organização do festival vai recordar o poeta macaense Adé dos Santos Ferreira, que escreveu poemas em Patuá. “Todos eles serão homenageados durante o evento, em sessões de poesia, debates, projecção de filmes, performances e exposições, envolvendo convidados locais e vindos do exterior”, aponta o comunicado oficial. Na música destaque para a presença de Salvador Sobral, o cantor português que venceu o Festival Eurovisão da Canção com o tema “Amar pelos Dois”. O concerto acontece a 17 de Março, estando prevista a realização de outros eventos com “músicos, romancistas e cineastas”, que serão “anunciados oportunamente”. Nova literatura A primeira edição do festival sem Hélder Beja como director de programação celebra também o centésimo aniversário do 4 de Maio, a efeméride que marca o nascimento do chamado Movimento da Nova Literatura da China. O programa irá destacar o contributo de alguns dos seus mais importantes mentores, como Lu Xun, Hu Shi e Zhu Ziqing, entre outros. Está garantida a presença dos poetas chineses Jidi Majia, vice-presidente da Associação de Escritores da China, Bei Dao, Yan Ai-Lin, Chris Song, Yam Gon, Chen Dong Dong, Shu Yu, Huang Fan, Lu Weiping, Na Ye, Tan Wuchang e Hsiu He, a maioria proveniente da China Continental, mas também alguns oriundos de Taiwan e Hong Kong. Dos países de expressão portuguesa vão chegar, entre outros, José Luís Tavares (Cabo Verde), Pedro Lamares (Portugal), Hirondina Joshua (Moçambique), Gisela Casimiro (Guiné-Bissau) e Eduardo Pacheco (Angola). A associação local de poesia O Outro Céu junta-se ao evento através dos seus membros Mok Hei Sai, Lou Kit Wa, Wong In In e Gaaya Cheng. O grupo de teatro de Macau Rolling Puppets levará à cena, nos últimos três dias do Festival, nas antigas Oficinas Navais, a peça de teatro de marionetas Droga, adaptação do romance homónimo de Lu Xun publicado em 1919. Além do Centro de Arte Contemporânea o festival Rota das Letras terá sessões públicas em diversos outros locais da cidade, como o Art Garden, Albergue da Santa Casa, Centro de Indústrias Criativas de Macau, Instituto Português do Oriente, Cinemateca Paixão e Livraria Portuguesa. A oitava edição conta com o jornalista e escritor Carlos Morais José e a artista plástica Alice Kok na direcção do festival. O director do jornal Hoje Macau assume as funções de director de programação, sendo que Alice Kok, presidente da Associação Arts For All, passa a ocupar o cargo de directora executiva. A saída de Hélder Beja aconteceu depois de ter sido retirado o convite aos autores Jung Chang, Suki Kim e James Church, cujas obras são sensíveis ao Governo chinês, tendo a direcção do festival sido informada por parte do Gabinete de Ligação do Governo Central na RAEM que a sua presença no território não era oportuna.
Andreia Sofia Silva EventosUSJ recorda em Novembro centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Os cem anos do nascimento da poetisa Sophia de Mello Breyner serão recordados pela Universidade de São José num colóquio agendado para Novembro. Vera Borges, coordenadora do departamento de português, destaca a importância dos poemas de Sophia pela sua ligação aos Descobrimentos [dropcap]N[/dropcap]asceu a 6 de Novembro de 1919 e será sempre recordada como uma das maiores poetisas da literatura portuguesa. Em Portugal já se preparam actividades que marcam o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner e em Macau também, graças à iniciativa da Universidade de São José (USJ). O colóquio “No centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2019) – Navegação a Oriente” acontece em Novembro e vai abordar três temáticas, que passam pela poética, questões de tradução e literatura na sala de aula, adiantou Vera Borges, coordenadora do departamento de português da USJ, ao HM. “Contamos com a colaboração de colegas de Macau, que trabalham em várias instituições de ensino superior, e contamos com pessoas de fora.” A ligação ao Oriente surge através dos escritos que a poetisa portuguesa dedicou aos Descobrimentos. “A Sophia tem uma série de poemas belíssimos, não só sobre o mar, mas sobre os Descobrimentos, a chegada dos portugueses às paragens do Oriente. É uma linha muito forte na poesia dela e que deixou seguidores. É algo particularmente interessante na literatura portuguesa.” Neste sentido, Vera Borges considera que nunca como agora fez tanto sentido discutir os poemas deixados por Sophia de Mello Breyner. “No momento em que se começa a discutir em Portugal, até com uma certa intensidade dramática, o colonialismo português, o racismo e o Império, pegar nos textos de Sophia de Mello Breyner pode ser uma perspectiva muito interessante para se perceberem certas questões.” Repto linguístico A autora de livros como “A Menina do Mar” e “O Cavaleiro da Dinamarca” representa, na visão de Vera Borges, um “desafio” em termos de tradução, pela contemporaneidade da sua linguagem. “Acho que os textos dela são um desafio, primeiro porque são belíssimos e depois pela temática que têm, e depois também pelo tipo de linguagem. É uma linguagem muito económica, concisa, exacta.” Em Macau, Vera Borges destaca o trabalho de tradução de Yao Jingming, actualmente o director do departamento de português da Universidade de Macau, que já traduziu autores portugueses como Camilo Pessanha e Eugénio de Andrade, entre outros. “A Sophia é um dos nomes mais traduzidos por todos aqueles que gostam de poesia, e há grandes tradutores que quiseram poemas da Sophia. Nestas paragens temos o professor Yao Jingming, que tem traduções belíssimas de textos da Sophia.” Vera Borges assegura que aqueles que, em Macau, se dedicam ao estudo da cultura e literatura portuguesas têm “particular interesse” nos escritos de Sophia. Esta, “pela visão que nos dá do percurso histórico dos portugueses, é uma autora particularmente interessante”. Sophia de Mello Breyner faleceu em 2004 e deixou cinco filhos, um deles o escritor e jornalista Miguel Sousa Tavares.
Hoje Macau PolíticaSophia de Mello Breyner Andresen – “Meditação do Duque de Gândia” Meditação do Duque de Gândia [dropcap]N[/dropcap]unca mais A tua face será pura limpa e viva Nem o teu andar como onda fugitiva Se poderá nos passos do tempo tecer. E nunca mais darei ao tempo a minha vida. Nunca mais servirei senhor que possa morrer. A luz da tarde mostra-me os destroços Do teu ser. Em breve a podridão Beberá os teus olhos e os teus ossos Tomando a tua mão na sua mão. Nunca mais amarei quem não possa viver Sempre, Porque eu amei como se fossem eternos A glória, a luz e o brilho do teu ser, Amei-te em verdade e transparência E nem sequer me resta a tua ausência, És um rosto de nojo e negação E eu fecho os olhos para não te ver. Nunca mais servirei senhor que possa morrer. Nunca mais te darei o tempo puro Que em dias demorados eu teci Pois o tempo já não regressa a ti E assim eu não regresso e não procuro O deus que sem esperança te pedi. Sophia de Mello Breyner Andresen