Sui generis

[dropcap]Q[/dropcap]uando viu o Sidónio nu à sua frente ficou sem jeito e sem capacidade de reacção. Estava farto de ver homens naquele estado, isso não era o problema, bastava olhar-se ao espelho ou ir ao balneário do ginásio, mas assim naquele registo tão íntimo, pronto-a-comer, nunca tinha acontecido. Deixava-o desconfortável. Esta sua decisão de se tornar homossexual ainda não era cem-por-cento consensual dentro de si, tinha ainda as suas dúvidas. Nem todos os seus genes tinham aprovado essas regras em uníssono, por isso caminhava um pouco a medo, em terreno desprovido de qualquer cor. Não, não era nenhum arco-íris, por enquanto. Sempre gostara de mulheres e, apesar de estar a entrar nos cinquentas, era um homem sexualmente bastante activo. Esteve casado duas vezes, a última quase dez anos, com muitas aventuras nos entretantos, mas chegara a altura de sair do armário, como se costuma dizer. Bom, ele nunca tinha estado a viver numa prateleira, tinha a certeza disso, sempre fizera tudo às claras, não tinha nada a esconder. Mas a heterossexualidade também não fazia o seu género, no sentido em que gostava de dar um passo à frente. Era um experimentalista e apetecia-lhe mudar de ares.

A primeira coisa que disse ao Sidónio foi: “vai devagar”. Era um comprimido dos grandes que tinha de engolir. Lembrava-se de quando tinha de tomar coisas assim quando era miúdo. Deitava tudo cá para fora e a sua mãe ficava com os cabelos em pé e gritava com ele. Mas aquele espécime não o atraía minimamente, tinha um ar a dar para o abichanado que o irritava. Sempre o irritou, para ser sincero. Por diversas vezes, em pensamento, tinha troçado um pouco dele, apesar de naquela figura se apresentar com um corpo tonificado e com uma cara laroca. Tratava-se bem, o Sidónio. E até era um gajo porreiro, mas era para ir beber uns copos e apanhar uma grande tosga, não era para estar com o pila dele na boca.

Mas tinha de ser e a ideia até tinha sido sua. Trabalhavam juntos há muitos anos e sempre teve um à-vontade extremo com o Sidónio para falar das coisas, vá-se lá saber porquê. Era um facilitador. E quando começaram a trocar ideias sobre o assunto, de como ele não se importava de experimentar “aquilo”, o colega ficou logo de antenas no ar e mostrou-se híper interessado, convencendo-o de que gostaria de ser a cobaia. Até chegarem a esta situação embaraçosa, não demorou muito tempo. Duas semanas?

Agora, era preciso relaxar e ultrapassar de uma vez por todas o complexo que se tinha atravessado à sua frente, senão não ia conseguir cumprir os seus objectivos. Dantes, quando precisava de se abstrair pensava em matrículas de automóveis. Estava sem recursos. Precisava de uma mão divina. À medida que o Sidónio fazia tenções de o acarinhar ele afastava-se compulsivamente. Dizia: “espera!”, enquanto colocava uma musiquinha a tocar, na esperança de que aquilo ajudasse, criando um ambiente mais propício, não diria ao romance, mas whatever. Queria era ver-se livre daquela situação e prosseguir com a sua vida.

Ele que não era nada esquisito com a comida, comia tudo o que lhe pusessem no prato e gostava sempre de se lançar de estômago alegre para gastronomias desconhecidas. E se as mulheres, de quem ele tanto gostava, o faziam com tanta facilidade, não havia de ser ele que iria agora voltar para trás e desistir. Mas havia ainda a outra parte, o factor essencial para que a contenda desse certo, entre as suas pernas parecia existir uma letargia completa. “49-BO-13”. Na casa-de-banho tinha usado um lubrificante adequado, para não estar a interromper nada mais à frente, o que ainda iria ser pior, e achava que estava preparado, que não ia custar. Já tinha beijado amigos em noites de bebedeira e ali tinha pensado em todos os pormenores, mas estava demasiado tenso, era preciso libertar-se daquele torpor, fosse de que maneira fosse. Então achou que se desse um beijo ao Sidónio, daqueles à antiga, imaginando-se inebriado com uma lufada de vento, talvez tudo se resolvesse. Sim, era isso que iria fazer. Iria abraçá-lo e beijá-lo com estrondo.

Depois logo se veria.

O que aconteceu, em concreto, não sabemos. O que é certo é que deu o grande salto em frente e com naturalidade enfrentou sem encerros a sua nova condição perante a sociedade. Do modo como os colegas de trabalho o entreolharam nas semanas seguintes, só confirmava que o seu outro eu já não era segredo. Mas ele gostava disso. Gostava da assumpção.

Encontramo-lo tempos mais tarde, já com o coração a bater a um ritmo semi-descontrolado. Começara a namorar com um homem, ou era o que ele achava, que aquilo era uma relação à séria. De início, estava confiante que tinha finalmente encontrado o seu primeiro namorado, extremando ainda mais a corda para a sua vida passada. Mas a história tinha outros contornos e revela-se aqui num excerto roubado do seu diário.

“Quando conheci o Eddy ele não me contou a verdade, não me disse que afinal não era bem assim. Conhecemo-nos numa noite, num festival de cinema. Ele fazia parte de uma equipa de produção de um documentário premiado, um documentário sobre a extinção do género, e a partir daí fomos falando quase todos os dias. Até que noutra noite mais acalorada, sem câmaras pelo meio, nos envolvemos de modo íntimo. Aconteceu tudo muito rápido. Bem que lhe meti logo a mão entre as pernas, mas ele afastou-me, dizendo que ainda não. Queria primeiro aguçar-me o apetite, pensei. E quando passámos ao acto em si – já não aguentávamos mais! – baixou as calças e virou-se de costas para mim. Tínhamos trocado beijos clamorosos, ficámos agarrados como duas tomadas, em curto circuito, com as nossas línguas derretidas uma na outra. Tudo corria bem. Todo o meu ser efervescia de paixão. Finalmente, estava com os dois pés no caminho que tinha começado a traçar com o palerma do Sidónio. Mas quanto a esse caso, nem me quero lembrar desse momento, aquilo foi um suplício.

Nunca tive qualquer dúvida quanto ao Eddy. Vira-o de tronco nu e, apesar de profusamente depilado, é uma mania que não pratico, tinha um bonito peito de homem. Seja lá o que isso quer dizer. Eu sei lá, pelo menos foi o que supus. A minha ideia nunca tinha puxado para o outro lado. Quando se vê uma coisa não se vê a outra e o toldo tapa o horizonte por completo. Mesmo depois de ele engolir o auge do meu prazer e continuarmos com aquilo noite fora, eu gritava: ‘Eddy! Eddy!’ E abraçava-o, como se não houvesse mais mundo.

Mas não demorou muito até descobrir a realidade, de que afinal o rapaz por quem me tinha apaixonado era afinal uma mulher. Raios! Não havia como evitá-lo, fiquei estupefacto e chorei. O que me tinha levado a gostar de homens tinha sido uma vontade imensa de experimentalismo e ao dar esse passo queria aprofundar a minha nova postura, assumindo-a. Na verdade, passei a ter uma atracção genuína por pessoas do mesmo sexo, e só por elas, achava eu. Limitava-me a saborear aquela fruta tropical. Agora, parece que me egasguei. Terá sido o caroço? Quando conheci o Eddy, era indiscutível de que ele era um homem. Nem foi tema de que alguma vez tenhamos falado, a dúvida, era tudo claro como a água. Mas a extinção do género tinha ganho um prémio, esse tinha sido o nosso ponto de encontro, e quando deparei com aquilo, não soube como reagir. Uma pessoa ama o indivíduo, para além da inscrição do género, seja ela qual for? O que é isto da sexualidade e do corpo que nos calhou? Depois de tanto esforço, eu não podia andar com uma mulher, ia contra os meus novos desígnios. Ai, Sidónio, eu vi logo que isto não podia dar certo.

Mas eu adoro o Eddy. É uma paixão sem fim, como nunca tinha sentido. E quero passar a vida nos braços dele – dela! – para sempre. E se descobrirem, depois de tanto vergar a corda, que afinal eu não sou homossexual? Também o que me havia de calhar na rifa, o Monsieur Butterfly. Não sei o que pensar, mas também não me interessa saber. Dê por onde der, mesmo sem arco-íris, sigo em frente.”

Ficamos descansados, não há cenas dos próximos capítulos.

13 Jun 2019

Como se fazem os bebés

[dropcap]U[/dropcap]ma amiga comentou que fazer sexo e fazer bebés poderão ser encarados como actividades diferentes. Uma coisa é o sexo, outra coisa é fazer um filho. Uma coisa é ter prazer, outra coisa é criar uma família. Há momentos de intercepção também. Mas quem faz sexo porque quer um bom orgasmo, pode ser um depravado. Quem tem filhos é decente. Mas o sexo nunca desaparece dos nossos mundos de significado.

Os pais que procriam em decência, terão que encarar a dura realidade de uma criança que se tornará adolescente e adulto. É preciso falar de sexo em algum momento e de como se quer incluir o sexo na parentalidade. Falar da intimidade é um dever cívico que não se resume a uma conversa do que são pipis ou pilinhas. Nas nuances do sexo e do comportamento sexual existem conceitos confusos. Há necessidade de clarificar emoções e direitos para que certas situações deixem de ser assustadoras ou estranhas. Estes são conteúdos que vão muito além dos métodos contraceptivos que existem e de ‘como se fazem os bebés’. Os conteúdos programáticos das escolas são inflexíveis, simples e de contrastes distintos e limitados. Estes carregam também uma fraca noção do direito à auto-determinação pessoal das crianças e jovens. Como se eles não tivessem nada a dizer, como se eles não pudessem participar na conversa.

Devemos falar de intimidade, consentimento, contracepção e prazer. Mas não há fórmulas perfeitas. Só abrindo espaços seguros e sem julgamento é que é possível explorar a curiosidade natural do sexo. Julgar que se pode controlar os conteúdos sexualizados a que as crianças e jovens têm acesso é pateta. Mais vale oferecer-lhes ferramentas onde eles próprios possam dar sentido às imagens e aos conceitos. Falar sobre sexo pode ajudar, mas impõem-se certos desafios.

Primeiro porque pensar na sexualização infantil/juvenil é difícil. Há um medo premente que conversas sobre sexo motivem a iniciação sexual. Segundo, há demasiada imaturidade sexual por este mundo fora para pensar que a solução passa por simples conversas. Poucos relacionam a obrigatoriedade do sexo – para a propagação genética e perpetuação da vida familiar com o bem último da vida humana – ao prazer dos corpos nus. A parte dos bebés é pragmática, a parte do prazer é polémica. A tensão cai obrigatoriamente na premissa que o sexo fora da procriação é crime – um exemplo bem contemporâneo é o caso do Brunei onde agora o sexo homossexual e o adultério são punidos com pena de morte. Portanto – estamos preparados para falar sobre sexo?

Não. Podemos não falar sobre sexo com os mais jovens? Também não. Falamos como podemos disto de ‘como fazer bebés’ e de como não tê-los. Esticamos os conteúdos para uma conversa sobre sexo cada vez mais informativa para depois percebermos que falar sobre sexo (e género também) é agora visto pelos mais melindrados como uma escolha ideológica. Sexo não é ideologia, sexo é um facto. Este facto de consequências reais precisa de ser apresentado da forma que melhor inclui a diversidade. Porque o sexo não é só sobre fazer bebés, é sobre percebermo-nos a nós próprios e à nossa sexualidade.

10 Abr 2019

Sobre o trabalho sexual

[dropcap]O[/dropcap] trabalho sexual continua a ser um tema demasiado sensível e difícil de ser discutido, afinal, como é que se discute a sexualidade (que é difícil por si só) nos tempos neoliberais e dependentes da produção e crescimento económico? Qual é o valor do sexo, e mais importante de tudo, porque é que tudo precisa de ter um valor? Em Macau, o paraíso dos vícios, a prostituição sempre fez parte da sua história e imagética. Lembro-me bem andar pelo Hotel Lisboa e explicarem-me quem eram aquelas pessoas e o que faziam. Com desdém na voz, claro. Porque é raro falarmos sobre a prostituição sem tomar uma posição moralizadora. Não é por ser o posicionamento mais adequado, mas simplesmente – e infelizmente – porque nos é demasiado natural.

Num outro momento explorei a importância de distinguir o trabalho sexual com o abuso e exploração sexual – que de bem verdade, em muitos casos co-existem. Esta confusão é legítima em certos contextos, mas não o é em muitos outros. A análise do trabalho sexual tem que ser sensível que este ramo de negócio pode ser uma escolha. Há quem queira vender a sua sexualidade para fazer dinheiro – no mundo em que o dinheiro é a única coisa que nos vale para vivermos uma vida digna. A lógica mercantil que está enraizada nas nossas vontades, espíritos e comportamentos é tão profunda que moralizamos a suposta falta de dignidade que é vender o sexo ou o corpo – mas nunca moralizamos a falta de dignidade que o pouco dinheiro proporciona. Porque aí já entra a lógica meritocrática de que ‘quem não tem dinheiro é porque não fez o suficiente para o ter’. Se se vende sexo ou outros serviços sexuais é porque a comercialização de quem somos é uma pré-condição para sobrevivermos no mundo contemporâneo. Por isso é que me parece hipócrita que os moralizantes do trabalho sexual usem a falta dignidade como justificação última para censura e criminalização deste, mas não o façam para criticarem quem, ou os mecanismos, que perpetuam a lógica económica da vida humana.

Agora – eu também acho que é preciso muito cuidado com esta linha argumentativa. Porque apresentando o mundo comercializado e opressor em que vivemos, o único em que faz sentido vender o sexo, o trabalho sexual pode ser visto como a inevitabilidade de uma escrava condição deste sistema. E isto parece-me ser uma visão demasiado simplista do que é o trabalho sexual, porque também o vitimiza. Lá pelo trabalho sexual ser sintomático de um sistema neoliberal que nos obriga a vender o corpo para pagar, por exemplo, as propinas da universidade (como já aconteceu com muito boa gente), talvez seja melhor vermos para além disso. O trabalho sexual não pode ser sinónimo de exploração sexual, nem quando o sistema é o opressor. É necessário proporcionar um espaço de emancipação para que mulheres e homens escolham a carreira que lhes faça sentido. E que estas escolhas laborais tenham condições dignas de trabalho.

Na era da comunicação e partilha, em que as redes sociais dão voz a quem pode tê-la, estive há dias a passar pela conta de instagram de uma stripper que é bastante honesta acerca das tensões que existem à volta do tema. Fiquei seriamente incomodada pela forma como até os seus clientes se posicionam desta forma moralizadora – vitimizando-a ou repreendendo-a. Uma conversa séria e activa envolvendo quem de facto é trabalhador sexual faz falta. Acho que passamos muito tempo a discutir de formas demasiado exclusivas, não envolvendo as pessoas a quem estes temas dizem directamente respeito. Parece-me natural que se pense nos direitos e protecção que este trabalho – que gera imenso dinheiro – precisa e exige.

Se em Macau foram registados 21 crimes de exploração de prostituição até Outubro de 2018 – um crescimento que veio contrariar a tendência decrescente dos últimos anos – é necessário reflectir sobre o que estes números querem dizer. Afinal, como é que o sexo é vendido em Macau, e em que condições? Qual é a expressão de outro trabalho sexual no território? Existirão formas de contornar esta lógica de criminalização – para melhor compreender as experiências do trabalho sexual em Macau?

16 Jan 2019

Gino-fobia

[dropcap]U[/dropcap]ma tentativa falhada de neologismo, ou talvez nem tanto.
Estou na sala de espera do hospital, à espera de uma consulta. Estou à espera há imensas horas, porque aconteceu eu ter uma vida e atrasar-me. Se calhar atrasei-me de propósito. O que interessa é que puseram-me no final da fila e agora tenho, quantas, uma dezena de vaginas à minha frente? Não sei, estou à espera há duas horas para a minha ser ‘inspeccionada’ ou verificada, nem sei que verbo é o mais adequado. Não sei porque é que as pessoas à minha volta têm um ar tão relaxado – serei só eu a irradiar tensão e desconforto?

Quem é que no seu perfeito juízo quer tirar as cuecas, deitar-se de costas, abrir as pernas e deixar um estranho mexer-lhe nas parte íntimas? Mesmo que seja um estranho de bata branca, continua a ser um estranho. A verdade que esta é a segunda vez na minha vida que estou numa sala de espera para ver um ginecologista. A primeira foi há dez anos atrás e a coisa correu muito mal. Prometi a mim mesma que não voltaria. O raio da Gineco era bruta como tudo, e por isso acho que… traumatizei. Daí o pobre neologismo no título, que, na verdade, quer dizer ‘fobia de mulheres’. Não é bem o caso, tenho é medo da Ginecologista.
Esta não é a minha história, tenho outra(s). Mas o medo não é incomum: pessoas detentoras de vaginas que tomam calmantes, pessoas que têm que respirar fundo e outras que estão absolutamente tranquilas com toda a experiência. Há imensos factores que podem moldar esta ida – extremamente importante à saúde feminina – à Gineco. Primeiro, a relação paciente e profissional de saúde é uma relação que pode ser complicada. Uma das razões é que nós temos um corpo que o sentimos, mas o outro é que percebe mais sobre o nosso corpo, apesar de não o sentir. Digamos que é uma experiência muito pouco participativa.

Há quem tenha problemas com essa dinâmica e há outros que não. O cerne da questão é que temos que ter a sorte em arranjar um bom médico que nos ouça com atenção – daí as pessoas detentoras de vaginas procurarem recomendações. Segundo, continuamos a anos luz de perceber bem a saúde feminina, aqui no reino do conhecimento diário e mundano. Há coisas do conhecimento técnico que não passam para o reino dos comuns mortais. Vivemos com a sombra do cancro que nos assola frequentemente – e por isso a insistência em campanhas de sensibilização para se tomarem medidas e rastreios como mamografias e citologias. Mas há tantas outras condições que podiam ser mais discutidas. Como por exemplo HPV (e as suas verrugas vulvares), herpes genital, cândida, vaginites e vaginoses.

Ir ao médico ginecologista regularmente é extremamente importante porque o nosso corpo detentor de vagina – cíclico – passa por muitas transformações e desafios ao longo do tempo. Mas para quem tem medo de ir, há vários dilemas que se criam. O que é que é melhor? Eu não encarar a condição da minha vagina ou submeter-me a uma carga de nervos aterrorizadora? Parece uma decisão simples, mas percebo perfeitamente que não seja.

Acho que o primeiro passo é compreender este terror. Há imensa gente que tem medo de ir ao dentista. Mas por alguma razão, fala-se mais disso do que do medo da Gineco. Uma pesquisa rápida em bases de dados em artigos científicos mostra-me que há mais literatura desenvolvida sobre o medo do dentista, do que o medo do Ginecologista – que sugeriu zero resultados. O medo do urologista também sugeriu zero resultados – apesar de ser a especialidade mais odiada pelos homens. Parece-me bastante natural que estas idas a especialistas do órgão sexual reproductor não sejam fáceis pelo simplesmente facto de já ser difícil falar sobre o sexo, educação sexual, direitos sexuais e reprodutivos no espaço público. Tenho cá para mim que talvez deva ser um tópico mais discutido, se não for na academia, que seja entre amigos ou com profissionais de saúde. A ‘ginecologio-fobia’ será real?

22 Nov 2018

A estúpida Cistite

[dropcap]A[/dropcap]s mulheres sofrem de infecções urinárias, mais do que os homens. Isto não é porque as mulheres têm que pagar pelo pecado original, é um simples mau cálculo fisiológico. As mulheres têm uma uretra que podia estar numa posição e lugar mais conveniente para que não sofressem deste mal, mas pronto, o nosso corpo não pode ser perfeito em cada ângulo ou centímetro.

Apercebi-me que nunca utilizei este espaço para falar das estúpidas das cistites quando até é um tópico de importância para o sexo e para a saúde feminina. Acontece, também, que sou uma especialista no tema porque já tive à volta de 25 chatas (e muito dolorosas) infecções. Se não estão convencidos que a fenomenologia da coisa possa trazer alguma sabedoria a ser partilhada, tenho a dizer que também nunca li tantos artigos científicos de medicina – sou detentora de conhecimento de causa.

Pensei que era a única no mundo a padecer do mal das estúpidas e recorrentes cistites quando comecei a conhecer mais amigas que estavam na mesma situação, e de amigas passou a colegas ou vizinhas. Umas com situações piores que outras, umas com caixas de antibiótico nas carteiras, porque nunca se sabe quando uma estúpida cistite vai aparecer, – frequentemente dei por mim a pensar porque é que não se fala mais das infecções urinárias?

Aparentemente, dizem as estatísticas médicas, é normal uma mulher ter uma estúpida infecção por ano – se tiver três num ano, é melhor procurar um especialista – mas se tiver uma por ano, está dentro da normalidade. Ora, eu não acho normal ter uma infecção urinária por ano, da mesma forma que não é normal as mulheres sofrerem de dores menstruais – por vezes tão intensas quanto um ataque cardíaco – todos os meses. Não vou entrar na batalha que ainda tem que ser travada por mais respeito pela saúde feminina (tanta investigação que diz que os profissionais médicos desconsideram queixas das mulheres…) mas focar-me-ei nas estúpidas cistites. Surpreendentemente ou não, não há grandes veículos informativos que falem sobre estas coisas abertamente e de forma clara e fidedigna.

As gentes de outrora alcunharam de cistite da lua-de-mel as infecções urinárias que as mulheres frequentemente tinham depois da noite de núpcias. Isto porque a probabilidade de ter uma infecção 24 ou 48 horas depois de uma relação sexual com o (ou um novo) parceiro é significativa. Há alguma investigação (pouca) feita para perceber o que se pode fazer para evitá-la, mas primeiro uns esclarecimentos: uma cistite pós-coito não é uma IST. Esta acontece porque a fricção genital ajuda a que bactérias que temos naturalmente pelo corpo possam viajar pela uretra feminina, que é pequenina e que está perto de todo o movimento. Podia acontecer o mesmo com os homens, mas eles têm uma uretra de 15cm e as mulheres de 5cm, daí a facilidade da pequena viagem bacteriana. Para evitar a invasão indesejada, há quem diga que não há nada como ir fazer um xixi depois de toda a actividade – golden showers? Estejam à vontade. A melhor forma de prevenir uma infecção, no geral, é fazer muito xixi, porque assim não se criam as condições ideais para as bactérias se multiplicarem dentro da bexiga. Daí também ser problemático segurarmos a urina durante muito tempo – mas enfim, como eu tenho material para escrever uma tese de mestrado sobre isto, não vou prolongar-me.

Não é só o sexo que aumenta a probabilidade de uma infecção, espermicidas, por exemplo, podem despoletar uma crise, produtos de higiene feminina muito agressivos, também. As mulheres, principalmente, vão sofrer transformações naturais que as vão tornar mais susceptíveis a estas chatas cistites no pós-menopausa. É preciso ter em atenção também que muitas vezes as inflamações da bexiga têm uma sintomatologia muito semelhante à infecção, mas que não precisam de antibióticos para serem tratadas. E eis que entra em cena o arando vermelho – o cranberry – a baga melhor amiga do sistema urinário! Bastante eficaz no tratamento das inflamações (e não das infecções propriamente ditas, elas precisam sempre de antibiótico) e funcionam muito bem na prevenção de infecções recorrentes.

Há mais dicas, mas vou ficar por aqui. A todas as mulheres (e homens) que sofrem de infecções da bexiga, aqui me apresento em solidariedade.

18 Out 2018

#elenão

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]le – não. Não é um ele qualquer, é um ele muito particular do contexto brasileiro. Um tal de Bolsonaro candidato à presidência. Pois, ele não. Dia 29 de Setembro várias mulheres (e homens) juntaram-se para reclamar que não o querem. Porque segundo certas pessoas ele é homofóbico, machista e racista.

O movimento #elenão, liderado pelo grupo de mulheres contra Bolsonaro, ecoou pelas ruas no último sábado em, pelo menos, 18 capitais de estado, outras 65 cidades no Brasil, e também em Portugal. Mas existe uma oposição também, que não é de admirar. O #elenão tem um #elesim ou um #mulherescombolsonaro de resposta. A guerra política também é digital. Há ataques por hackers, há ondas de popularidade que tentam ser travadas, há trolls da internet a causar reboliço na secção de comentários, de posts, de videos, de artigos do jornal. Estão todos em pé de guerra porque uma secção da população o acha absolutamente desadequado para o papel de Presidente, e uma outra secção acho que aquilo que poderia ser desadequado, não o é de todo.

Até o Stephen Fry já veio à comunicação social pedir que os brasileiros ponderem muito bem os seus candidatos nas presidenciais que se avizinham. Entrevistou Bolsonaro em 2011 a propósito do esforço do dito em não permitir que passassem uma legislação referente à educação para o género e orientação sexual nas escolas. Este era um pacote, um ‘kit gay’ como eles lhe chamavam, para contribuir para a prevenção da homofobia e a violência associada, nas camadas mais jovens. O ‘gringo’ do Fry teve dos momentos mais estranhos de sempre porque não é fácil falar com um homofóbico que não se considera homofóbico. Sendo ele homossexual, ainda mais estranho ficou quando o Bolsorano diz que o que é preciso é uma marcha do orgulho heterossexual e que ele não seria convidado!

O que uma secção do Brasil julga é que este candidato traz resoluções simples para temas complicados, como o de tentar resolver o assustador aumento da criminalidade no país armando civis. E isso fá-lo popular, isso e não só, porque ele fala ‘francamente’ sobre temas que uma secção da população sempre quis discutir mas sentia que o ‘politicamente correcto’ esquerdista não lhes permitia. O pôr em causa um kit gay nas escolas, é um dos exemplos. Em vez de fornecer mais e melhor informação sobre a diversidade sexual, muitos julgavam que esta era uma estratégia de ‘recrutamento’ sexual para tornar as crianças tão naturalmente hetero e cisgénero em homossexuais. Essa secção do país encontrou o seu representante, que diz coisas polémicas e duvidosas, em plena esfera pública, e que acha que educação sexual inclusiva está a produzir homossexuais. Fantástico.

Há boas hipóteses que ele possa tornar-se no próximo Presidente do Brasil – e digam-me lá se tudo isto não vos faz sentir um grandessíssimo déjà vu? A pergunta que permanece sempre – sempre – é quem é que vota nestas criaturas que parece que só disparam um discurso de ódio, violência e exclusão? Como (e porquê) é que a democracia se torna perigosa para si própria? A pergunta mantém-se mais pertinente do que nunca.

E se a solução fosse uma boa educação para o sexo? Leram bem. Vou atirar agora com uma proposta fantasiosa a partir do testemunho de um ex-republicano norte-americano que agora virou democrata. Eu perguntei-lhe o que tinha acontecido para virar a moeda. Moeda esta bem delimitada nas suas caixinhas políticas – e ele disse-me que foi uma aula sobre género e sexualidade na faculdade. Isto não é fabuloso? O pessoal tem medo do sexo e das suas variâncias porque o sexo é transformador! Porque obriga a descobrirmos coisas sobre os nossos corpos, as nossas relações e sobre como vemos o mundo, e tudo isto é inerentemente político. Um ex-republicano que nos dias que correm poderia muito bem ter votado Trump não o fez porque aprendeu o sexo na Universidade. O sexo intelectual, o pensante, ou o reflexivo. Vou continuar a ter esperança de que o sexo saudável é o que vai mudar o nosso mundo.

#elenão

3 Out 2018

Riso do sexo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] comédia é um veículo informativo. Já em português se diz que ‘a brincar, a brincar é que se dizem as verdades’ e não deixa de ser aqueles dizeres populares que não são ridículos de todo. Há teses académicas que provam que os temas difíceis são acompanhados de gargalhadas.  Alguém se lembra da risota que era, dentro da sala de aula, quando se falava do aparelho reprodutor?

Não vou falar de qualquer tipo de riso, mas do riso profissional, e nem é da comédia na sua generalidade, mas gostaria de vos falar da Hannah Gadsby e do seu último espectáculo de stand-up comedy. Para quem está familiarizado com os recantos da internet com facilidade encontrará a gravação desta performance, que se chama Nanette. Neste exercício de comédia a única voz que se ouve é a de Hannah, uma mulher lésbica que não está muito preocupada em mostrar-se particularmente feminina. Esta é uma mulher que já sofreu na pele a homofobia generalizada e internalizada nas nossas sociedades contemporâneas e, através destas experiências de violência e de incompreensão dos outros à sua volta, faz comédia. Porque a brincar a brincar é que se confessam a pior das verdades sobre nós e os outros. Não quero destruir a experiência de quem tenciona ouvi-la de viva voz neste espectáculo – que se ainda não o disse, recomendo vivamente! -, mas ela vai mais longe do que gozar com ela própria e com a sua experiência, ela põe em causa a experiência da comédia: dos artistas às suas audiências. Se o riso serve para libertar a nossa tensão e dificuldades,  será que o faz de forma saudável? Será que uma mulher lésbica que conta as suas experiências (muitas delas traumáticas) num tom jocoso, revela que estão resolvidas? E a audiência, continuará a perceber a gravidade do preconceito diário de quem não se conforma com uma ‘dita’ norma?

Por isso este espectáculo não é só um desabafo de como as sociedades falham continuamente na tentativa de igualdade ou liberdade de expressão de género e de sexo. A comédia urge em ser repensada, na forma como os artistas e as suas audiências dão sentido às suas vidas sexuais, e à, infelizmente, violência que muitas destas gentes estão sujeitas. Qual é, afinal, o papel do riso? Uma forma fácil de lidarmos com o nosso desconforto? Uma forma de entretenimento? Sem dúvida que é uma arte, mas como em tudo o que nós, seres sociais, tocamos, será que é crítica e politicamente suficiente?

Este é um espectáculo de comédia, uma reflexão e uma zanga com o mundo. Todas as palavras proferidas são feitas com a maior honestidade, e isso é raro de se ver. Honestidade, humanidade, e uma pinta de humildade!  É por isso que este é um espetáculo estrondoso, porque é engraçado, intelectualmente bem construído, e brutalmente honesto. E não sei se isto tudo foi deliberado para ser um sucesso ou não, mas a verdade é que a conclusão da tão bem construída verborreia da Hannah, é de parar de fazer comédia.

Partilho com ela a preocupação do que fazemos com as palavras, e o que fazemos com o nosso gozo ou o riso. Não que ela tenha uma conclusão brilhante de como será a melhor forma de falar acerca dos homens que a violaram, ou da homofobia que lhe valeu bofetadas com negras e dores por todo o corpo. Mas ela, com toda a sua honestidade, sabe que gozar com isso não está a fazer-lhe bem, e também sabe que não é sua intenção, gerar um ciclo de ódio que junte as massas. O ódio (e dor) que sente são resultado da experiência pessoal nesta infeliz sociedade. O que é claro para ela é que quer ressoar a quem lhes faz sentido, e a quem não faz também, mas não quer ser um veículo para um movimento de ódio partilhado. Porque o ódio não precisa de mais ódio para ser resolvido, precisa de gargalhadas, claro. Mas no mundo complicado em que vivemos, nem sabemos o que uma ‘boa’ e inofensiva gargalhada poderá ser. A Hannah Gadsby, uma especialista do riso, deixou de o saber.

26 Set 2018

Maria-Rapaz

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]nde é que está a masculinidade perfeita? Os mais insensíveis dirão que se encontra nos homens detentores de um pénis. Claro está que existem expectativas pelas quais todos nós trabalhamos árdua e diariamente. Esta perspectiva biológica de que a masculinidade pressupõe um pénis já leva tempo que tenta ser desconstruída. A minha tentativa de desconstrução fará uso da masculinidade sem pénis, mas com uma vagina. Afinal, onde podemos nós encaixar, no léxico e semântica sexual, a masculinidade feminina?

Há toda uma literatura académica que se debruça acerca de um possível fenómeno de masculinidade feminina que é a ‘Maria-Rapaz’. Os especialistas mostram que é um estado que tem sido retratado como aceitável na infância e talvez parte da adolescência, e por isso é circunscrita no tempo. Contudo, com algumas limitações, porque a Maria-Rapaz é castigada quando começa a ter uma forma exagerada de identificação masculina, i.e, quando quiser mudar de nome e recusar toda e qualquer forma de identificação ‘típica’ feminina – como roupas, acessórios, maquilhagem. Na análise literária e cinematográfica das Marias-Rapazes, esta rebelião é tida como uma forma de evitamento da fase adulta, e não necessariamente uma rebelião de fase adulta feminina. A representação da Maria-Rapaz nos nossos objectos culturais reduz a masculinidade feminina a uma experiência de desapropriação pessoal e emocional, mas não a relacionada com um desejo de, sei lá, mudar de sexo, manter formas ambíguas de género, ou querer ser uma mulher masculinizada – e ser adulta dessa forma. Aliás, para juntar à fantasia colectiva que as Marias-Rapazes passam por ‘fases’ que têm que ser ultrapassadas – é que as narrativas da feminilidade vêm depois todas em força. Juro-vos que tenho reconhecido um padrão em que as grandes referências da figura feminina, e de como a feminilidade é apresentada, como as super-modelos e super actrizes de hoje em dia, foram todas, outrora, algures no tempo, Marias-Rapazes.

Para melhor explorar este conceito difícil de masculinidade feminina (que é um conceito que está cheio de pré-concepções, mas facilita o nosso entendimento mais mundano do foco desta análise – pessoas de vagina e as suas masculinidades) não há nada como analisar o problema das casas de banho. As casas de banho públicas são a materialização de um binarismo extremo, estático, e sem espaço de manobra. E de acordo com relatos de gentes que querem e tentam pôr em causa a sua feminilidade, as casas de banho públicas são um teste a todos os envolvidos. Aos que não são de binarismos, aos limites e violências desses mesmos binarismos e aos medos e injustiças da nossa falta de reconhecimento do que é diferente. Contam-se histórias de pessoas de masculinidades femininas que entram nas casas de banho das raparigas e que são acusadas de terem entrado na casa de banho errada. Ou pior, verem a ser chamados seguranças que batem à porta dos cubículos para uma verificação da legitimidade daquela presença. É de uma violência atroz, não é? Ter que justificar uma simples entrada na casa de banho: porque quando os indicadores de que estamos à esperam falham em ser exibidos o que nos resta? Mostrar os genitais para garantir uma entrada pacífica? Um acto tão simples como ir fazer xixi parece ter um potencial complicador que muitos simplesmente evitam. Que mundo estranho vivemos nós que a simples ida à casa de banho, para concretizar uma necessidade fisiológica básica, pode ser tão pouco inclusiva?

A masculinidade é um constructo com o potencial mutante e transformador para o qual todos nós contribuímos com as nossas ideias e comportamentos. Mudando as nossas ideias e comportamentos podemos mudar as violências das fronteiras (fronteiras de qualquer tipo, mas neste caso conceptuais). Não será novidade que o nosso bem-estar também depende da possibilidade de nos criarmos à luz do que queremos ser. E esta criação pode ser dita ‘normativa’ ou pode não sê-lo. Porque as Marias-Rapazes podem tornar-se em Marias-Homens também – e não deveria existir problema algum.

8 Ago 2018

Casamento homossexual

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o final da semana passada um jornal de Hong Kong publicou uma noticia sobre a derrota judicial de Leung Ching-kui, funcionário superior do Gabinete de Imigração. O caso prendia-se a reivindicação dos beneficíos sociais a que o seu esposo deveria ter tido direito por casamento. O Tribunal de Recurso deu razão ao Gabinete da Função Pública e ao Departamento Local de Contribuições. O casal viu ainda rejeitada a hipótese de apresentar uma declaração de rendimentos conjunta. Leung confessa-se desiludido e afirma que vai tomar medidas para continuar com a acção.

Ambos consideram este veredicto como um gigantesco passo atrás na luta contra a discriminação dos casais homossexuais em Hong Kong. Leung salienta que não estão a exigir um estatuto especial e que só esperam poder ser tratados com respeito e numa base de igualdade.

O Tribunal de Recurso expressou no veredicto a ideia de que é vital a preservação do conceito do casamento tradicional. Os benefícios devidos aos esposos e o direito de declarar os rendimentos em conjunto são prerrogativas matrimoniais. No entanto, o Tribunal de Recurso negou ambos os direitos Leung, que ainda terá de pagar as custas de tribunal.

O Tribunal salientou que em Hong Kong, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista social, o único casamento reconhecido é o heterossexual. Assim, é mais importante defender o conceito do casamento tradicional do que encorajar as pessoas a casarem-se. Se os benefícios e direitos de que usufruem os casais heterossexuais se estender aos casais homossexuais, o conceito de casamento tradicional poderia ser posto em risco. Como a Lei Básica, e a opinão pública, de Hong Kong só reconhecem o casamento heterossexual, o interesse público é um factor de peso nos julgamentos. O Tribunal compreende que o queixoso se sinta financeiramente injustiçado. No entanto, se puseremos o “interesse publico” no outro prato da balança, a situação ficará equilibrada.

Três juizes do Tribunal de Recurso consideraram que a preservação do conceito do casamento tradicional ditou a sentença que privou este casal de benefícios e de outros direitos matrimoniais. A sentença não implica discriminação indirecta contra a orientação sexual do queixoso. O Tribunal acrescentou que, já que o conceito social de casamento foi a questão central deste julgamento, como os conceitos sociais mudam significativamente ao longo dos tempos, a decisão que agora foi tomada pode vir a ser alterada, se este conceito mudar.

O ano passado, uma lésbica britânica foi contratada para trabalhar em Hong Kong. QT, a sua esposa, apresentou uma petição ao Departamento de Imigração, para ficar no território como dependente. O pedido foi indeferido. O Tribunal de Segunda Instância rejeitou o pedido, mas QT recorreu e ganhou o recurso. É interessante que os três juizes que deliberaram no caso de QT, tenham sido exactamente os mesmos que presidiram ao caso de Leung. No entanto, as decisões foram completamente diferentes.

No caso de QT, os juizes argumentaram que também o sistema do matrimónio “monogâmico” não poderia ser posto em causa em Hong Kong, por ser anti-constitucional. Neste caso os juizes apenas tomaram em consideração se o queixoso estava, ou não, em situação de acordo com as directrizes governamentais de Hong Kong. O Departamento de Imigração não foi chamado para reconhecer o estatuto de depêndencia de QT, enquanto parte de um casal homossexual.

No entanto, os juizes salientaram que, ao abrigo da mesma política, o Departamento de Imigração já tinha reconhecido casamentos poligâmicos, e conferido o estatuto de dependência a mais do que uma esposa do mesmo homem. O Tribunal considerou que a recomendação resolvia a contradição e deliberou a favor de QT.

No caso de Leung, vemos claramente que a decisão dos juizes foi condicionada pela crença de que casamento só se pode efectuar entre um homem e uma mulher. Como o Tribunal afrmou, o veredicto pode ser considerado controverso. No entanto, a decisão não pode ser facilmente aceite pelos casais homossexuais. Mesmo hoje em dia, especialmente nas comunidades chinesas, o casamento homossexual continua a não ser bem aceite. Como os juizes referiram, possivelmente as mentalidades irão mudar ao longo dos tempos. Mas actualmente, já que se aceita a homossexualidade, também deveria ser fácil aceitar o casamento homossexual. Mas, por enquanto, não é.

5 Jun 2018

Caprichos (ou como ouvir uma vagina)

[dropcap style=’circle’] Q [/dropcap] uem tem uma vagina – mulheres, mulheres trans e também possivelmente homens – saberá que é um pedaço de corpo delicado e versátil, com capacidade de promover o prazer e a procriação. Quando nós temos caprichos do sexo e fantasiamos com tudo e mais um par de botas (daquelas com salto agulha, sensuais), o nosso corpo também tem uns caprichos por satisfazer. O que quero dizer com isto: o capricho, definido como uma vontade inexplicável e repentina, não é só uma vontade da mente, mas uma vontade do corpo.

E quem é que entende as vontades do corpo na sua plenitude? Poucos de nós. Porque vivemos a vida presos na nossa existência mental, e lá de vez em quando temos uma brecha de consciencialização deste corpo que nos carrega, que tem apetites, que tem manias e caprichos. As vaginas são pedaços particularmente misteriosos que poucos parecem entender – poucas e poucos parecem ter a vontade, sequer, de olhá-la, cara a cara, mediada com a ajuda de um espelho. A inabilidade de poder olhá-la francamente no nosso dia-a-dia talvez venha ajudar ao nosso evitamento constante.

Há quem se lembre, certamente, da primeira vez que tentou colocar um tampão – porque enfim, está sol, há uma boa praia e nós queremos evitar pensar que o período existe e que possa estragar os nossos planos – e é então necessário todo um domínio das partes íntimas para poder colocar um ‘mini’ pedaço fálico de algodão, com o intuito de absorver o inevitável sangramento. A vulva e vagina são vistas como sagradas, e a ideia de que está lá toda uma área flexível (muito flexível), capaz de absorver aquele pedacinho, é, para muitas, difícil de compreender. Se isto é difícil para as virgens, para as que começaram a sua vida sexual também pode ser complicado porque, é como vos digo, há pouca consciência da vagina.

A vagina ressente-se, claro, e capricha-se. O que se tornou no senso comum vaginal de evitamento, algum nojo, e em casos mais extremos de repúdio, faz com que as necessidades da vagina não sejam ouvidas com atenção. O tabu da menstruação e do prazer sexual feminino também leva com o tabu da vagina, tanto que mais não seja porque ‘originalmente’ estaria escondida por detrás de um pequeno arbusto de pelugem púbica, que até essa é rejeitada hoje em dia. Já ouviram a vossa vagina hoje? Estará em que fase folicular? Como é que gosta de ser estimulada? Saberemos tratá-la bem, com saúde e bem-estar? Estou ciente da minha hipocrisia, porque verdade,verdadinha, também não percebemos nada do nosso corpo de outras partes menos censuráveis, quanto menos do orgão sexual biologicamente tido como feminino, e historicamente alvo de alguma negligência, de todas as naturezas.

Se pudesse mudar de carreira num abrir e fechar de olhos, provavelmente teria sido ginecologista e terapeuta sexual, e tentaria pregar por aí a importância do bem-estar vaginal – e digamos que não são só as mulheres que se aproveitam desta vantagem. Vagina feliz leva a um sexo feliz, em qualquer idade. Será necessário relembrar que o nosso corpo que cresce e se desenvolve, muito na expectativa do sexo, passa por fases mais ou menos difíceis? Com mais ou menos apetites, mais ou menos lubrificação. A maternidade até, que de partos e nascimentos transformam vaginas e o sexo. Onde e quando é que se fala disso? Na novela das 21h? No telejornal? Na literatura erótico-pornográfica? Na medicina? Onde é que afinal se fala de vaginas felizes e caprichosas ao longo da idade adulta?

2 Mai 2018

Exclusivo: De Joana a Jo-B, a história em curso do primeiro transexual masculino de Macau

Ao longo da vida ocultou os vestígios de feminidade que as cirurgias plásticas têm extinguido passo a passo. Aguentou e recuperou com rapidez das operações, feito que lhe valeu a alcunha de Super-homem entre o pessoal da clínica tailandesa onde removeu os seios, útero e ovários. Hoje em dia, Jo-B De Souza está a um passo de completar a metamorfose e tornar-se um homem. O HM conta-lhe a jornada de coragem, sofrimento e amor de uma pessoa determinada a viver a sua identidade

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] caminho do bar, Jo-B De Souza caminha com virilidade para dar e vender. Cabelo penteado para trás com gel e rapado dos lados, ombros largos, braços que denotam frequência regular no ginásio e um sorriso malandro. Lança um “hey, man!” e cumprimenta com um aperto de mão vigoroso.

Quem não o conhece nunca imaginaria que Jo-B De Souza nasceu Joana um dia antes do início do Verão de 1988, e é esse nome que ainda figura no seu Bilhete de Identidade de Residente. Algo que vai tentar alterar num futuro próximo e que será um dos passos na caminhada para se tornar um homem. Ao longo dos últimos dois anos, a sua vida tem sido um corrupio de entradas e saídas de uma clínica na Tailândia onde removeu os seios, útero e ovários. É também em Pattaya que é acompanhado na terapia hormonal por uma equipa clínica chefiada por um médico norte-americano.

À entrada de 2018, resta-lhe uma última cirurgia: A faloplastia – a construção do órgão sexual masculino – uma etapa que terá de adiar devido às anestesias gerais que tomou recentemente. Será o fim da metamorfose que se iniciou quando era demasiado novo para sequer ter noção do que estava a acontecer.

“Cresci a pensar que era um rapaz, desde pequenino, praticamente bebé. Quando a minha mãe estava grávida fez dois testes que indicaram que teria um filho”, conta. A família estava preparada para receber um rapaz em casa, previsão que se reflectia na decoração do quarto e nas roupas que os pais compraram para o novo membro da família.

Este pequeno detalhe familiar tornar-se-ia premonitório da pessoa que Jo-Bo viria a ser, uma pessoa com uma feminidade rarefeita. Aliás, tão rarefeita que praticamente não teve menstruação, apenas uma vez por ano, ou de dois em dois anos. Esta particularidade biológica deu-lhe descanso quanto a um trauma muito frequente entre maria-rapazes: a necessidade de terem de conviver e esconder todos os meses a menstruação.

Verdes anos

Olhando para trás, Jo-B De Souza recorda-se de achar que era um menino. Porém, o embate com a realidade do género com que nasceu deu-se cedo, entre os três e os quatro anos, durante os tempos de jardim de infância. O episódio deu-se quando estava na casa de banho com o seu melhor amigo e lhe perguntou porque é que ele estava de pé em vez de estar sentado. O amigo respondeu que era por ser um menino e ela uma menina.

A dureza da verdade desencadeou um autêntico drama infantil, que mais de vinte cinco anos depois estampa um sorriso na cara de Jo-B. “Corri para casa a chorar e fui contar tudo aos meus pais. Foi aí que percebi que era uma rapariga e senti que era o fim do mundo. Lembro-me de ter chorado muito”, recorda.

A história de Jo-B De Souza é recorrente no dia-a-dia de Graça Santos, Psiquiatra e Terapeuta Sexual, coordenadora da Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “São pessoas que, na grande maioria dos casos, desde a infância manifestam preferência pelo papel e expressão do género do outro sexo, que no caso de FtM (abreviatura para female to male), será uma menina “Maria-rapaz”, explica Graça Santos.

“Ao olhar a sua infância a própria pessoa e os familiares relatam-nos uma preferência por brincar com rapazes, jogar à bola, ser mais activa fisicamente, recusar ou manifestar desagrado por usar vestidos ou adereços de menina”, conta a coordenadora da URGUS.

Seguindo os seus desígnios, Jo-B De Souza continuou a vestir calções e t-shirts até ingressar no Colégio do Sagrado Coração de Jesus, uma escola feminina onde a farda era obrigatória. Aí descobriu que não estava sozinha e que havia outras marias-rapaz, “talvez entre 12 a 15”. Nesse período, com cerca de 6 ou 7 anos, via-se obrigada a usar um vestido, facto que conseguiu contornar através da prática desportiva. “Adorava jogar basquetebol. Então, foquei-me no desporto e não me importava como as pessoas me viam porque debaixo do vestido usava os calções de basquetebol”, conta.

Jo-B De Souza sente-se um sortudo devido ao apoio incondicional que teve da família desde cedo. “O meu pai é o meu grande suporte, a minha mãe uma cuidadora incansável, a minha irmã e o seu namorado têm estado sempre disponíveis para me ouvir, a minha namorada é quem dá mais força”, conta.

Era dos descobrimentos

A adolescência quando chega molda aquilo que será a nossa personalidade, quem somos, a partir da revolução hormonal. Esta fase, que pode ser um purgatório de crescimento, tem uma outra dimensão em pessoas como Jo-B De Souza.

À medida que foi crescendo procurou ser cada vez mais masculino, um salto evolutivo que foi recebido de forma distinta pelos seus pais. Enquanto o pai lhe deu sempre total apoio e lhe fez as vontades, a mãe tentava convencê-lo a usar roupas femininas ou a deixar crescer o cabelo. “Se ela me perguntava se eu achava um vestido bonito eu dizia que sim, que era muito bonito mas nela”, recorda com humor.

Apesar das ténues tentativas maternas para que fosse uma menina durante a infância e início de adolescência, Jo-B nunca se sentiu reprimido pela família. Muito pelo contrário, a relação que tem com os pais assenta em fortes pilares de respeito, aceitação e amor. “O meu pai costuma dizer coisas do género: vou agora para o escritório, o meu filho dá-me boleia e a minha mãe costumava dizer quer tinha duas filhas, mas agora diz que tem um casal”, exemplifica.

Por volta dos 13/14 anos, Jo-B De Souza atravessava um período de descoberta. Não apenas em termos de revelação sexual, mas também de conhecimento que haveria de lhe abrir as portas para a metamorfose que o esperava.

“Já na altura dizia às pessoas que iria mudar de sexo, sem ainda saber se isso era possível”, recorda deixando claro que nunca gostou de não cumprir com a sua palavra, ou de perder face em relação a aspirações partilhadas socialmente. A realidade entrou-lhe pelos olhos adentro numa pesquisa online em que descobriu que afinal havia quem mudasse fisicamente de sexo.

Começou a seguir bloggers que relatavam as várias etapas da transformação que haveria de iniciar uma década mais tarde. “Comecei a seguir um blogger, via as fotos e as mudanças na pessoa, ouvia também a forma como a sua voz mudava e comecei a ficar cada vez mais intrigado”, relembra.

Foi também nessa altura que começaram as primeiras experiências sexuais e a rebeldia adolescente materializada em múltiplos piercings e tatuagens. “Todos queriam pertencer ao nosso grupo porque nos estávamos nas tintas. No fim das aulas, ainda com uniforme, íamos fumar e beber cerveja e como era muito popular era fácil ter parceiras”, conta.

Jo-B De Souza explica que beneficiou de dois factores: ter uns pais compreensivos e o facto de “Macau ser mais aberto a lésbicas e marias-rapaz, por ser uma cidade que se habituou a isso, mais do que a gays”. Mesmo em termos de transexuais, entende que é mais facilmente aceite uma mulher transformar-se em homem do que o inverso.

Este é um fenómeno que não é estranho para Anthony Lam, presidente da Associação Arco-Íris de Macau. “Acho que a explicação pode estar no facto da sociedade de Macau ser muito patriarcal daí ser mais fácil aceitar uma mulher que se transforme num homem”, teoriza.

Fora do lugar

Em 2016, a Associação Arco-Íris de Macau fez um inquérito sobre a incongruência entre o sexo atribuído à nascença e a identidade de género, para o qual foram ouvidas 715 pessoas locais. O resultado revelou que 41,54 por cento dos inquiridos demonstravam alguns níveis de inconsistência entre o sexo biológico e a identidade de género.

Apesar dos números serem consideráveis estão longe de representar a parcela demográfica que leva até às últimas consequências a incongruência de género que vivem. Neste aspecto, a experiência de Anthony Lam diz-lhe que os transexuais são pessoas que “ficam mais no seu ciclo e que se sentem mais confortáveis na sua bolha social, em vez de se revelarem ao público”. Principalmente, no que toca a transexuais que fazem a transição de homem para mulher. “Macau não é uma cidade suficientemente progressiva, não é acolhedora para a comunidade LGBT”, explica o presidente da Associação Arco-Íris de Macau.

Em termos de aceitação social, Jo-B De Souza não tem dúvidas de que tem sorte por estar no lado mais facilmente aceitável da transexualidade em Macau, onde a sociedade aceita melhor a transformação para o lado masculino.

Porém, o residente de Macau entende que não existe uma comunidade de pessoas que se encontrem numa situação similar à sua, circunstância que explica com a fluidez entre maria-rapazes, que podem oscilar entre períodos másculos para depois regressarem a um vivência totalmente feminina.

“Há pessoas que são atraídas pelo mesmo sexo, mas que estão felizes com a forma como nasceram, é aí que eu não me encaixo, porque não é a minha preferência sexual que está em causa, ou seja, a pertencer a algum grupo pertenceria a algo completamente diferente e que em Macau é muito pequeno”.

Esta falta de pertença a um ciclo social dominado pela preferência sexual, ou género, não é algo que aflija Jo-B De Souza, ainda para mais no momento em que se prepara para dar o último passo, o que agudiza a falta de identificação com qualquer categoria da comunidade LGBT. “Agora estou no meio, estou perdido”, diz antes de soltar uma gargalhada sonora.

Primeiras etapas

Ao longo da adolescência, Jo-B De Souza continuou a ter casos com mulheres. Porém, havia algo dentro de si que o distinguia de todo o universo lésbico. “Há mulheres que só querem estar com outras mulheres, a mim o que me preocupa é não estar no papel de mulher”, conta.

Apesar de ainda estar preso ao sexo com que nasceu, Jo-B De Souza considera-se e comporta-se como um macho alfa, ao ponto de não se sentir cómodo em mostrar as partes íntimas durante relações, a menos que seja com alguém com quem tem uma relação longa e de profunda confiança. “Quando estou com uma mulher, fora do contexto de namoro, não me sinto confortável sem roupa à frente delas, nem permito que me toquem abaixo da cintura”, explica.

Após algumas relações longas e experimentação, Jo-B De Souza teve de encarar a transição que se impunha e que desde sempre germinava dentro de si. Em 2016 começou a aplicar um gel com hormonas masculinas e iniciou o processo da sua reconstrução física.

“Andei a procrastinar a mudança de sexo. Primeiro não tinha dinheiro, mas depois comecei a ter medo de dar o próximo passo, andava sempre a adiar, dizia sempre para mim que seria amanhã, que ainda era jovem, que era muito cedo”, confessa.

Outra das hesitações de Jo-B De Souza era o receio em revelar aos pais que queria embarcar numa viagem biológica sem retorno, mesmo sabendo que os seus pais são pessoas bastante abertas. Não era uma questão de falta de confiança, mas da dificuldade em contar que se quer fazer algo tão drástico.

“Eles têm feito um excelente trabalho em fazer-me feliz e a ideia de lhes dizer que havia algo tão grande reprimido dentro de mim, ao longo de todos estes anos, é muito triste”, explica.

Apesar de não ser segredo para quem era próximo de Jo-B De Souza, a efectiva mudança de sexo era algo que parecia distante, mas inevitável.

Mas o seu corpo era um empecilho com o qual tem sido obrigado a viver todos os dias da sua vida. “Impediu-me de fazer muitas coisas, adoro nadar e não posso, gosto de ir à praia e não quero ter de vestir biquínis, gosto de jogar basquete mas não conseguia devido ao peso do peito, também não podia comprar a roupa que queria”, enumera.

Salto em frente

Jo-B De Souza virou a página da sua identidade de género numa altura que decidiu encerrar um capítulo amoroso com uma pessoa que entrava e saía da sua vida há algum tempo.

Cansado da falta de eficácia do gel com testosterona e posta de parte a hipótese de congelar óvulos para uma futura maternidade, decidiu dar os passos que a cirurgia reconstrutiva lhe permitem dar.

Em todas as etapas médicas, Jo-B De Souza recorreu sempre a uma clínica na Tailândia e passou a ser seguido por um médico norte-americano que opera em Pattaya. É de salientar que em Macau não existem este tipo de serviços médicos. Aliás, solicitados pelo HM, os Serviços de Saúde locais não responderam se existe algum plano de no futuro virem a providenciar serviços cirúrgicos, ou mesmo de substituição hormonal.

Assim sendo, em Maio do ano passado, Jo-B De Souza removeu os seios na clínica que o vinha seguindo. “Passei a poder vestir o que me apetece, sem sentir que tenho um segredo a esconder. Agora quando vou ao ginásio já não vou para o balneário feminino, estou no balneário dos homens e ninguém sequer duvida, desde que tenha uma toalha à cintura”, conta.

A partir de Outubro de 2016 começou a injectar testosterona, um processo que se iniciou com umas análises que revelaram uma quantidade anormalmente grande de hormonas masculinas. Desde então, recebe todos os trimestres uma encomenda de injecções.

Como nunca teve uma relação confortável com agulhas, tirando as que tatuam, Jo-B De Souza recorreu a alguém em quem sabia que podia confiar, a sua irmã, um dos seus principais pilares de apoio, sem esquecer o cunhado.

“Há dias que é doloroso e outros dias em que não há sensação”, conta acrescentando que as injecções passaram a ser um ritual que tem de cumprir a cada três dias. “Comecei com 0.2 mg e agora tomo 0.35 mg. Isto vai ser para sempre, mas não com esta frequência”.

Começou assim o processo de modificação total das hormonas, antes do adeus final à produção de estrogénio que viria em Novembro último, altura em que removeu o útero e os ovários. Esta fase significaria o armistício de uma guerra hormonal que durara a sua vida inteira.

Super-homem

Antes de começar com as injecções, Jo-B De Souza teve de fazer análises. “Quando fiz o meu primeiro teste ao sangue na clínica o médico perguntou-me se já tinha feito algum tratamento hormonal porque, normalmente, os níveis de testosterona de uma mulher vão até 30, mas eu tinha 61”, conta. Níveis que não são surpreendentes face à fisionomia de Jo-B De Souza, que sempre teve, por exemplo, ombros largos e dedos grossos.

Desde a primeira intervenção, em que removeu os seios, o residente de Macau ganhou uma reputação de homem de ferro entre os pessoal médico e de enfermagem na clínica tailandesa que o tem acompanhado.

“No hospital deram-me a alcunha de Super-homem”, conta bem humorado. A remoção do peito, mastectomia, é um procedimento doloroso que implica o reajuste do torso. Como tal, após a cirurgia os pacientes podem ter de ficar duas semanas imobilizados numa cama de hospital.

“No dia seguinte à operação, acordei e não senti dor e como precisava de ir à casa de banho e não havia ninguém por perto, levantei-me e fui à casa de banho. Ainda não tinha decorrido 24 horas desde que tinha saído do bloco operatório. Os médicos ficaram alarmados mas eu acalmei-os e disse-lhes que não sentia dor, que estava tudo bem”, recorda.

A partir desse momento, começou a circular entre o pessoal da clínica e pacientes a alcunha “Super-homem”, uma alcunha que se foi disseminando das empregadas de limpeza, enfermeiras, até ao pessoal médico.

A reputação aprofundou-se quando chegou a altura de remover órgãos. Em Novembro, Jo-B De Souza deu entrada na clínica da Pattaya para fazer uma histerectomia e ovariectomia, o que trocado por miúdos significa a remoção do útero e ovários.

Mais uma vez, o natural de Macau tinha pela frente uma recuperação lenta, dolorosa, que implicaria cerca de duas semanas de cama. Ainda assim, no dia seguinte à cirurgia resolveu pôr-se de pé, ao lado da cama, tranquilamente a ver televisão. Sem grande disposição para ficar deitado, Jo-B De Souza, após exame médico, teve alta e regressou a Macau, encurtando o período de convalescença na cama da clínica de duas semanas para dois dias. A forma como o seu corpo recuperou de uma intervenção que não é definitivamente pêra doce em termos médicos surpreendeu o médico e aumentou a sua reputação de super-herói.

Durante estes complicados processos, Jo-B De Souza contou com o apoio incondicional da sua namorada e de uma nova família que conheceu na Tailândia a partir de um amigo que fez na clínica.

Mesmo durante os períodos de curta convalescença, o natural de Macau teve sempre uma rede de apoio que não o largou, desde a família e a namorada à distância, passando pela família do amigo tailandês que o acompanhou nos momentos mais frágeis. Ficaram tão próximos que Jo-B passou a visitá-los regularmente à Tailândia.

Homem novo

Com a remoção do útero e ovários, Jo-B De Souza deixou de produzir estrogénio. Juntando a esse facto as injecções de testosterona, pode-se dizer que em termos hormonais é um homem, algo que lhe dá uma vantagem de perspectiva que poucas pessoas alguma vez irão experimentar.

“Como fui exposto a ambos os mundos, nunca imaginava que as emoções de uma mulher são assim tão doidas, porque as considerava normais”, conta. Hoje em dia, Jo-B De Souza sente-se nas nuvens, “high” como diz em inglês, e congratula-se porque nada o chateia como antes. “Saí dessa montanha russa emocional, estou focado e não fico tão facilmente agitado ou irritado com as coisas”, revela.

O residente de Macau sempre entendeu que as suas emoções representavam dois extremos pendulares que eram, em simultâneo, a maior fraqueza e a maior força. Até à remoção de parte do sistema reprodutor feminino, a sensibilidade, a empatia e mesmo a atribuição de significado a coisas triviais para os outros foram motivos para altos e baixos de ânimo.

Neste momento, vive uma espécie de segunda puberdade enquanto as hormonas masculinas tomam conta do seu corpo. No seu rosto começa a despontar uma mais que bem-vinda barba e a voz torna-se mais funda. Aliás, este é um dos detalhes que o faz recuar em sentimentalismo.

Jo-B De Souza sempre gostou de cantar, nesse aspecto a perda da sua antiga voz é algo que o emociona, principalmente quando ouve antigas gravações que fez. Porém, já se aventura com a voz masculina, enquanto a intensidade de interpretação se mantem.

“Acho que vou apreciar estas mudanças, que são de médio longo-prazo, não chegam de repente. Agora vou fazer a viagem de um rapaz dos 12 anos aos 18 anos. Existe essa margem, um homem não se faz assim de repente e eu quero saborear esse longo período”.

Última fronteira

Depois de duas anestesias gerais em menos de um ano, Jo-B De Souza não pode voltar tão cedo ao bloco operatório. Porém, no horizonte falta um passo, a faloplastia, ou seja, a construção do órgão sexual masculino.

Esta cirurgia, a derradeira, pressupõe algum planeamento pois requer uma recuperação mais lenta e complicada, mesmo para um Super-homem. A faloplastia implicará muitas horas de fisioterapia e de recuperação muscular.

Outra questão na mente de Jo-B De Souza é de natureza monetária. Além do preço da cirurgia, o residente de Macau quer amealhar dinheiro para estar confortável por um período de tempo, que se prevê largo, durante o qual não poderá trabalhar.

“Preciso de saber como será a recuperação mas não estou com pressa, desde que esteja bem de saúde estou óptimo”, explica com simplicidade.

Além da mudança física, Jo-B De Souza vai tentar alterar o seu género juntos da Direcção dos Serviços de Identificação. “As leis em Macau não regulam estas situações, mas acho que encontrei uma lacuna. Ao que parece, desde que um médico escreva uma carta a dizer que o corpo da pessoa é 75 a 80 por cento daquele sexo, eles têm de adequar essa realidade com o género que está no BIR”, conta. Aliás, Jo-B De Souza apronta-se para fazer a análise de sangue que servirá de argumento para a oficialização junto dos serviços públicos da pessoa que existe além da identidade no papel.

Essa será a derradeira fase da metamorfose de Jo-B De Souza, o momento em que lhe será restituído algo que nunca teve, mas que sempre sentiu. Será, também, um passo que lhe trará esclarecimento, mesmo dentro de uma comunidade LGBT com a qual nunca se identificou completamente. “Não julgo as pessoas gays, nem lésbicas, mas não quero ser uma delas. Só quero ser normal, não quero casamento gay, quero um casamento normal, heterossexual”, comenta Jo-B De Souza, que simplesmente repudia que o tratem como mulher.

Apesar de conhecer um residente local que fez a transição de masculino para feminino, igualmente operado na Tailândia, Jo-B não conhece ninguém que tenha feito o percurso pioneiro que se prepara para completar.

Com a determinação e força que o caracterizam, Jo-B De Souza está perto de finalizar um caminho nunca antes trilhado por ninguém em Macau. Entre dois tragos num cigarro, diz com leveza: “Vou fazer todas as etapas porque se começo algo tenho de ir até ao fim”.


A perspectiva clínica

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] transtorno da identidade de género ainda é considerado umapatologia pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. Facto que irá mudar na próxima revisão do documento, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Está em curso “a despatologização dos transgéneros, a autodeterminação e as identidades de género não binárias e flutuantes, que são noções e conceitos que desafiam as ideias milenarmente instituídas na sociedade”, explica Graça Santos, psiquiatra e coordenadora da URGUS (Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

A coordenadora da unidade que providencia em Coimbra hormonoterapia, assim como histerectomia, ovariectomia e faloplastia, considera que estes casos têm, normalmente, uma elevada dose de sofrimento implícito. “Muitas vezes isolam-se dos seus pares e não adquirem as necessárias competências de socialização, têm dificuldade em ter relações de amizade, namoro etc”, explica a psiquiatra. Os constrangimentos físicos e psicológicos pode valer a “perda de experiências como a prática desportiva, ir à praia, nadar e situações em que o corpo se desnuda”.

Se à falta de apoio se juntar a discriminação e o bullying, os jovens transgéneros podem mesmo a sofrer “episódios depressivos, ansiedade elevada, ideação suicida, tentativas de suicídio e auto-mutilações”.

Após uma primeira fase de avaliação em consulta em sexologia (psiquiatra ou

psicólogo) é feito o diagnóstico de Disforia de Género. No caso do indivíduo o desejar (o mais comum é desejarem-no) o utente deve ser acompanhado na especialidade de endocrinologia para iniciar tratamento hormonal de feminização ou masculinização.

“Estas alterações são vividas com agrado, muitas vezes com euforia, embora a

terapêutica hormonal também possa induzir alguma instabilidade emocional. As

modificações são muito bem-vindas e permitem que a pessoa transexual possa

afirmar-se socialmente como sendo do género que pretende ser e não daquele que lhe foi atribuído à nascença. Esta conformidade entre corpo e identidade traz sentimentos de bem-estar e uma perspectiva positiva do futuro. Agora podem ser o que sempre sentiram que eram”, explica a coordenadora do URGUS.

Quem embarca neste processo no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tem uma equipa multidisciplinar ao seu serviço, que inclui clínicos de psicologia, psiquiatria, endocrinologia, urologia, ginecologia, cirurgia plástica, terapeuta da voz e assistente social.

26 Jan 2018

China | Hospital condenado por impor reorientação sexual

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m hospital chinês foi condenado pela justiça por impor um tratamento de reorientação sexual a um paciente, segundo a sentença de um tribunal anunciada ontem. De acordo com a cópia do veredicto, o hospital psiquiátrico de Zhumadian, na província de Henan foi condenado por um tribunal da mesma cidade e terá de fazer um pedido público de desculpas e pagar ao queixoso 647 euros pelos danos causados.

M. Yu foi admitido na instituição em Outubro de 2015, pouco depois de ter revelado a sua homossexualidade à esposa e pedido o divórcio. O paciente foi então diagnosticado com “problemas de orientação sexual” pelo hospital, que se recusou a deixá-lo sair, e impôs um tratamento médico para garantir “cura” de Yu. A “terapia de reorientação sexual” aplicada é considerada uma prática não científica e ineficaz pelos peritos, embora continue a ser utilizada em várias clínicas do país.

Yu foi amarrado durante cerca de 20 dias à sua cama de hospital e forçado a tomar comprimidos e receber injecções concebidos “para corrigir” a sua orientação sexual, sob pena de espancamentos, explicou o próprio, numa entrevista à agência France-Presse.

Uma testemunha confirmou em tribunal que Yu foi “tratado contra a sua vontade durante 19 dias”, através de medicação que incluía antidepressivos e injecções, lê-se no documento do tribunal.

“Este veredicto é importante para a comunidade homossexual porque nenhuma lei oferece protecção” contra o tratamento forçado, disse Peng Yanhui, director de uma organização não-governamental que defende os direitos LGBT na China.

Num caso semelhante, em Dezembro de 2014, um tribunal de Pequim condenou uma clínica em Chongqing, no sudoeste da China pela prática de tratamentos com o objectivo de “curar” a homossexualidade.

A China removeu a homossexualidade da sua lista de doenças mentais em 2001, mas muitas pessoas da comunidade continuam a ser vítimas de discriminação e sofrem de pressão familiar.

5 Jul 2017

O amor não escolhe idades

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á diz a sabedoria popular que o amor não escolhe idades, seja isso porque o amor pode vir a qualquer fase das nossas vidas ou porque as nossas preferências amorosas não se prendem única e exclusivamente por sujeitos da mesma faixa etária.

Se o amor não escolhe idades, o sexo também não escolhe idades. Não me venham cá com lenga-lengas de que relacionamentos com parceiros mais velhos ou mais novos são reflexo de ‘recalcamentos’, má resolução de processos de vinculação ou que possam ser encarados como problemas psico-emocionais. Aconselho muita calma nesses julgamentos.

Todos já reparam que o mais recente presidente francês tem uma esposa com mais 24 anos do que ele. Por causa disso, o Macron já foi acusado de ter um casamento de fachada porque é um homossexual não assumido – casado com uma mulher só para satisfazer as expectativas heterossexuais. O que é que é problemático nesta discussão? Para mim, nem é a homofobia associada, mas o facto de uma mulher de 60 anos ser automaticamente cunhada como não desejável – porque raio um homem se sente amorosa e sexualmente por uma mulher com rugas? Deve ser homossexual! Pois, a assumpção social não é a regra, felizmente.

Olhemos agora para o mais recente presidente brasileiro, que tem uma esposa 43 anos mais nova do que ele. Alguém acha atípico? Nem pensar. Devem pensar que o dinheiro compra esposas belas, novas e jeitosas, mas ninguém dúvida da virilidade do homem, vulgo, da heterossexualidade do homem. Porque estar com uma mulher mais nova é mais natural do que estar com uma mulher mais velha. E assim o pessoal anda a julgar relacionamentos heterossexuais de acordo com as expectativas de beleza femininas. Porque, infelizmente, as mulheres (mais do que homens) têm um prazo de validade mais precoce. O que faz com que seja normal que homens com mais de 70 anos tenham mulheres jovenzinhas, mas o contrário seja mais criticado e duvidado até (!) – talvez seja altura de pôr essas ideias em causa, para paramos de encontrar homens que digam qualquer coisa como: ‘achei uma mulher de 50 anos sexy, o que é se passa comigo?’

Não se passa nada de errado com ninguém. Acho que ninguém dúvida que o cupido possa enviar umas setinhas românticas a casais com diferenças de idades de mais de 20 anos – e que possa haver paixão, tesão e desejo. Seja ele o mais velho ou ela a mais velha, sejam casais heterossexuais ou homossexuais.

Os desafios, é que são uns quantos, sim. Os julgamentos do sociedade alheia podem não ser muito simpáticos – são mais vezes reprovadores que outra coisa. Os ditos ‘especialistas’ em relacionamentos cunham certas constelações relacionais como trágicas à partida. Mas na minha humilde opinião, o que me parece desafiador num relacionamento entre dois seres com uma grande diferença de idade (quasi-geracional) não se prende tanto com questões de maturidade-imaturidade (que todos sabem que não depende da idade). Por mais que os membros de um casal possam ser feitos um para o outro e encaixem na perfeição na forma de ser e de serem, uma pessoa de 25 anos e uma pessoa de 40 anos podem perspectivar objectivos de vida diferentes – e isso pode ser problemático.

Se antes era dado adquirido que todos trabalhavam para terem uma casa, puderem casar e ter filhos, hoje em dia a imagem não se pinta bem assim, e a panóplia de possibilidades e de estilos de vida multiplicam-se. E as constelações, até as mais perfeitas, podem partir-se, por não estarem em sintonia com o que um e o outro querem fazer. Imaginem lá uma mulher de 35 anos a querer ter filhos com um homem de 25, que se calhar não se sente tão capaz de se aventurar na paternidade?

O amor não escolhe idades, mesmo. E o amor também não escolhe tão acertadamente trajectórias de vida semelhantes e/ou momentos que possam estar em mais sintonia. Para além disso não há mais nada, nem daddy issues, nem complexos de Édipo mal resolvidos. Descompliquem!

28 Jun 2017

Análise | Macau distante do exemplo de Taiwan no que toca a direitos LGBT

O Tribunal Constitucional de Taiwan decidiu que os casais do mesmo sexo podem contrair matrimónio, ficando em pé de igualdade de direitos com os casais heterossexuais. Taiwan torna-se assim no primeiro país asiático a legalizar o casamento gay. Apesar da conquista pioneira da Ilha Formosa, em Macau os direitos LGBT parecem congelados

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ouco mais de 800 quilómetros separam Taiwan de Macau, uma viagem de avião que demora uma hora e pouco. Descolar, ler um capítulo de um livro e a descida para aterrar inicia-se. Porém, em termos de igualdade e de luta pelos direitos civis a distância é grande.

Esta semana, uma longa batalha de um activista de Taiwan culminou numa decisão histórica do Tribunal Constitucional, que declarou que pessoas do mesmo sexo têm o direito a casarem. A Ilha Formosa abre, assim, o caminho na Ásia no que toca a igualdade perante a lei, sendo o primeiro território asiático a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A decisão do tribunal superior deu dois anos ao legislador para alterar o Código Civil, que define o casamento como um contrato apenas entre um homem e uma mulher, a fim de respeitar o direito à igualdade.

Anthony Lam, presidente da Arco-Íris de Macau, quando questionado se acha possível seguir os passos de Taiwan, ri-se antes de responder. “Acho que um dia poderá ser atingido em Macau, mas ainda é cedo para se falar em igualdade no casamento, para já é apenas um sonho.”

Na opinião do activista de direitos LGBT, a situação é complicada, uma vez que não se protesta a favor da união de facto, nem contra a não inclusão de casais do mesmo sexo na lei da violência doméstica.

A apatia na luta por direitos iguais é transversal à comunidade. “Do que percebi da situação da comunidade em Macau, acho que é muito difícil mobilizar as pessoas LGBT para a causa política, para que advoguem pelos seus direitos, ou mesmo assumirem-se em público”, conta Melody Lu, do departamento de sociologia da Universidade de Macau.

Viver na sombra

Quando a Associação Arco-Íris se formou, a comunidade estava muito escondida em Macau, uma situação que conheceu poucos avanços até hoje. Os gays e lésbicas do território “tendem a ser invisíveis porque não sentem apoio suficiente para saírem do armário e viverem confortavelmente como eles próprios”, releva Anthony Lam. Assumir a identidade sexual pode levar a “discriminação, pressão familiar e de amigos, e há o medo de perder o emprego porque os patrões podem não gostar da sua orientação”, explica o activista.

O presidente da Arco-Íris encontra vários empecilhos institucionais na luta pela igualdade, nomeadamente uma classe política e legislativa que não apoia a comunidade LGBT. “As autoridades têm implementada uma política “dont ask, dont tell”, ou seja, é como se não existissem, ficando sem capacidade para influenciar as esferas de poder. Algo que empurra as pessoas para a obscuridade.

Melody Lu, académica especialista em questões ligadas ao género, considera que em Macau a comunidade gay e lésbica tende a agrupar-se mais num sentido social. Existem alguns focos de activismo, mas sem a força mobilizadora capaz de pressionar o poder. “Pelo que vejo, na generalidade, as pessoas em Macau não são muito dadas a activismo, excepto um pequeno número de pessoas”, conta a académica.

Assumir a sexualidade enquanto gay, ou lésbica, é um passo complicado, em especial numa sociedade asiática. Mesmo em Hong Kong, ou Taiwan, “ainda se vive muito um estilo de vida influenciado pelo tabu social e as pessoas só se assumem num grupo pequeno e selectivo”, revela Melody Lu. Muitas vezes, nem os próprios pais sabem da orientação sexual dos filhos.

A académica vê em Macau uma particularidade que não ajuda. “É uma cidade pequena no sentido em que tem várias redes sociais que se interligam, a palavra circula rápido, se te assumes para um pequeno grupo, toda a gente sabe”, explica.

No fundo, a identidade LGBT tende a ficar restrita no grupo. “Portanto, os encontros sociais são tão importantes, porque é a única forma que encontram para serem eles próprios, em que não têm de se esconder”, esclarece Melody Lu.

A académica entende as razões para esta clausura identitária, que é um mecanismo de defesa, mas considera que “assim é muito difícil avançarem para o próximo patamar”.

Pioneiros precisam-se

S. é uma mulher na casa dos 20 anos que diz não sentir na pele muita discriminação, inclusive não vê problemas em dar a mão à namorada nas ruas de Macau. Porém, considera que “a sociedade de Macau continua a ver muito mal, sobretudo, os homens gays”, revela. Encontra o preconceito mais enraizado nas famílias mais tradicionais, algo que é transversal à idade e grau de ensino.

Anthony Lam alarga o espectro preconceituoso, que não se circunscreve apenas a famílias chinesas, mas também a algumas portuguesas que reagem muito mal quando um familiar se assume como homossexual. O activista acha que a falta de sensibilidade das autoridades para os assuntos LGBT não ajuda a população a mudar de mentalidade, daí a importância da vitória dos activistas de Taiwan. “É um exemplo para toda a Ásia e que mostrará que a igualdade não terá efeitos negativos na sociedade”, projecta o presidente da Arco-Íris Macau.

O caso taiwanês não surge do nada, mas é resultado de um longo percurso de várias décadas. “Há 20 ou 30 anos estavam iguais a Macau, nem podiam assumir para eles a sua própria identidade, mas de repente aparece uma pessoa com coragem suficiente para se assumir”, conta Melody Lu.

Chi Chia-wei, um gay que saiu do armário há mais de 40 anos, foi o autor do processo que terminou na decisão histórica do Tribunal Constitucional. “A longa jornada de aceitação e legalização de relações entre pessoas do mesmo sexo partiu de um indivíduo e agora mais de 250 mil pessoas participaram no último protesto”, contextualiza a académica.

Muitos jovens seguiram o exemplo de coragem de Chi Chia-wei, que abriu as portas para muitos jovens. Na leitura de Melody Lu, “é preciso uma geração para mudar a atitude social”. A geração de S. pode ser fundamental para a revolução de mentalidades que urge impor-se em Macau.

A jovem “gostaria de, no futuro, ter o direito de poder escolher casar”. Hoje em dia vive com a companheira com quem tem uma relação há quatro anos e faz parte de uma geração que pode ser rastilho da mudança.

Para já, S. sente-se uma cidadã de segunda classe, por não ter os mesmos direitos dos seus amigos heterossexuais.

A decisão desta semana do Tribunal Constitucional de Taiwan está a levar a um interesse entre a comunidade LGBT chinesa com os requisitos para emigrar para a ilha. É de salientar que apenas em 2001 as autoridades chinesas retiram a homossexualidade da lista de doenças mentais.

Li Yinhe, professor da Academia Chinesa de Ciências Sociais, comentava ao South China Morning Post há uns anos que mesmo com a legalização do casamento gay em países ocidentais, Pequim ignoraria este progresso social justificando inacção com as diferenças culturais e de valores entre Ocidente e a China. O académico disse ao jornal baseado em Hong Kong que “não existe um único legislador na Assembleia Popular Nacional que represente os interesses da comunidade LGBT”.

Tanto por parte do Governo Central, como das autoridades de Macau, as questões relativas à homossexualidade são relegadas para o plano da insignificância. Tirando pontuais contactos com poucos resultados práticos, a invisibilidade atira uma comunidade para a inexistência em termos institucionais.

Para a sociedade avançar no sentido de reconhecer a igualdade de direitos da comunidade LGBT, são necessários indivíduos que ajudem à evolução mentalidade. Pessoas como Anthony Lam e S.

26 Mai 2017

Libertem os mamilos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá que é assim tão simples, libertar os mamilos? Eu diria que não é fácil. Há qualquer coisa de especialmente escandaloso, chocante e perverso no mamilo, feminino, claro!  Não que esta seja a minha opinião mamária (muito pelo contrário), mas o meu contacto diário dá-me a entender que esta é a opinião geral. Tópicos como sutiãs, aleitamento ou cancro da mama revelam os macaquinhos conceptuais e a constante censura da aréola mamária.

Às raparigas/mulheres desde muito tenra idade que lhes são incutidos sutiãs, um obrigatório rito de passagem assim que as picadas de mosquito começam a ganhar uma forma melhor ajeitada. E assim continuamos, usamos sutiãs atrás de sutiãs, e umas aprendem, melhor ou pior, a lidar  com o desconforto dos arames e dos enchimentos. As dificuldades são eternas, entre encontrar o tamanho absolutamente perfeito para a felicidade das nossas mamas, a decidir qual o formato desejado para o nosso peito. Dificuldades que existem desde a clássica obsessão pelo espartilho – a problematização do peito feminino não é de agora.

Há quem se liberte da ditadura do sutiã porque até a ciência já provou ser mais saudável assim fazê-lo. Libertem a mama e o mamilo! Mas haverão consequências. Basta nos aventurarmos a ir para a rua com as meninas a baloiçarem livremente em contacto directo com a nossa t-shirt que vamos ser alvo de olhares – e quiçá de comentários. Nem parece que foi há muito tempo (nos anos 60 e 70) que parecia muito mais normal deixar as mamas livres de armação. Desde então que o pudor se intensificou, em vez de ter diminuído. E sejamos claros, não é a mama em si que incomoda – porque somos bombardeados por imagens de decotes generosíssimos – mas a existência do mamilo. A protuberância, o alto, o espevitado, o relevo, qualquer mera lembrança de que os mamilos existem no corpo da mulher e de repente tudo se torna muito mais provocatório.

Esta teimosia em perceber os mamilos femininos como uma arma de provocação sexual infalível dificulta a conversa acerca de outros tópicos bastante normais, como por exemplo, falar do cancro da mama ou lidar com o aleitamento. Chegou ao ponto de anúncios de sensibilização pela prevenção do cancro da mama terem que utilizar mamas masculinas para mostrar como é que a apalpação é feita. Como as mamas femininas (detentoras de mamilos) são censuráveis pelos meios de comunicação, tiveram que pegar num homem de algum peso, com alguma gordura mamária, para ensinar como é que se pode prevenir o cancro da mama (que apesar de haver alguma incidência nos homens, tem maior incidência nas mulheres).

O aleitamento, então, nem se fala. Há depoimentos de mulheres a amamentar os seus filhos em público e que foram criticadas por terem-no feito, a ponto de serem expulsas fora de um avião! Irónico, não é? O mundo força e reforça que o leite materno é o melhor suplemento para o crescimento de uma criança saudável e depois? Tem se ser feito à porta fechada ou devidamente tapadas. Ai delas se tiverem um mamilo à solta em público!

Os mamilos são assim, muito úteis e grandes proporcionadores de prazer, mas censurados até ao tutano quando… os homens também têm um par e ninguém os chateia por terem-nos ou não à mostra. Até lá sofremos os dilemas de querer andar confortavelmente livres sem sutiã, ou mostrar um ou outro mamilo a nosso bel-prazer.

23 Mai 2017

Retratos

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ego numa máquina fotográfica e tento capturar a essência do sexo. A imagem enche-se de cores e diversidade que enquadram os protagonistas: o prazer e a vergonha. O prazer luta pelos seus direitos enquanto que a vergonha tenta atrofiar qualquer tentativa de legitimidade prazerosa. Este conflito é constante, repito, constante. As nódoas negras são visíveis, mas esta é daquelas lutas inevitáveis que têm que ser travadas.

Contudo, este retrato pseudo-global não mostra que a tendência será a repressão sexual, e aí o Foucault também concordaria. A variedade, a disponibilidade para uma exploração sexual plena – e individual – surgiu da nossa capacidade, como sociedade, de criar espaços de discussão para que assim acontecesse. Fomos capazes de enaltecer o prazer e o bem-estar para formas supremas do ser, mesmo que nos pareça que haja fortes contra-correntes a contestar esta possibilidade. O sexo é tão natural e primitivo como intelectual. A complexidade emocional, fisiológica, biológica e mental poderia ser a protagonista deste retrato, mas prefiro pô-la no pano de fundo, como as estruturas necessárias para que o entendimento sexual evolua.

O retrato reflecte a eminência da libertação sexual, e isso será possível quando a política da culpa substituir a política do prazer. Na cultura popular a sexualidade é vista como uma forma rentável de lidar com o mercado. Pensamos que o mundo ocidental é ‘liberal’, mas só o é para fins comerciais – porque o sexo vende. A hiper-sexualização social tem sido bem sucedida a mascarar o pudor que o sexo ainda é. As ‘minorias’ sexuais são as que ainda mais levam por tabela. Aqui incluem-se as mulheres também. As mulheres que de minoria não têm nada – são metade da população mundial – mas que são tratadas como se a luta pelos seus direitos sexuais fossem desnecessários. Se me perguntarem, o retrato do sexo teria que incluir estas novas nuances discriminatórias com que me deparo diariamente, quando tento incutir em muitas cabeças de que há processos interpessoais que (ainda) afectam as mulheres particularmente – e que têm que ser alterados.

Se calhar este retrato merecia uma atenção particularmente feminina, particularmente queer, particularmente trans. Não que queira deixar os homens heterossexuais para atrás! Nem pensar. Só que eles foram os protagonistas do sexo por demasiado tempo, já tiveram direito à sua voz. Uma nova era impõe-se. Imaginem tempos onde o prazer consegue o seu lugar na ribalta! Talvez seja útil pensarmos no sexo mais em relação aos seus potenciais objectivos e dissociá-lo de formas patriarcais que teimam em flutuar – até nas cabeças ditas mais progressivas – incessantemente, descontroladamente.

Não sei se consegui fazer com que este retrato tivesse mais forma, ou se continua difuso, confuso e complexo. Talvez o retrato do sexo consiga se expressar melhor no abstracto, no não dito, no emotivo íntimo. Ou talvez precise de corpos, de erótica de bom gosto que combata a pornografia barata que anda por aí a (infelizmente) formatar cabecinhas. Eu consigo imaginar corpos, muitos corpos que abraçam a pureza que a intimidade do sexo lhes traz. Posso imaginar também uma pessoa, ou um só sexo para reforçar a nossa individualidade sexual, as particularidades do que nos atrai e do que nos excita. Talvez uma máquina fotográfica não seja a ferramenta mais indicada para capturar tudo o que viaja na nossa imaginação. Talvez o sexo, o prazer e o tabu já não conseguem viver dissociados. Talvez o sexo tenha que ser assim mesmo.

16 Mai 2017

Os pronomes importam-se

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque é que os pronomes haveriam de se importar? Os pronomes, com a sua capacidade limitada de reflexão, ainda assim, importam-se com o género das pessoas. Na língua inglesa os pronomes estão em especial destaque porque é das poucas ocasiões em que reflectimos sobre a identidade de género da pessoa com quem comunicamos. Pois ora bem, os pronomes importam porque, se usados incorrectamente, podem ser entendidos como ofensivos. É claro que ninguém se chateia com a criatura que está a aprender uma língua nova e troca os géneros de tudo e todos. Mas para os proficientes que comunicam de forma adequada com o mundo, confundir um ele com uma ela, não é muito simpático. De uma forma silenciosa reforçam-se pré-concepções de sexo e de género, reforçam-se exigências que todos nós, de uma forma ou de outra, estamos constantemente a prescrever.

Começa logo desde muito cedo, com as roupas cor-de-rosa para as meninas e azul para os rapazes, ou com as histórias que lemos aos nossos filhos antes de dormir – estive no outro dia a ver um exercício onde mostravam a percentagem de livros infantis onde há meninas-guerreiras-fortes-heroínas: sem grandes surpresas, a quantidade era pequeníssima. As mulheres têm que vestir certas roupas, têm que entrar nas casas de banho com o bonequinho de saias, têm de uma data de coisas – tal como os rapazes. O que dificulta a criação de um espaço intermédio, que não seja ‘carne, nem peixe’, vá. As pessoas que não se identificam com um género ou outro (não quer dizer necessariamente que queiram ser do género oposto, podem simplesmente não se identificar com nenhum dos dois) vêm-se despojados de um apoio formal, e de um apoio linguístico.

Como vivemos num mundo ainda mais consciente da identidade trans e do espectro (flexível) de género, os pronomes começam a importar(-se) cada vez mais. E para as cabeças que julgam que a identidade trans é uma modernice, as provas não são poucas de que sempre existiu, desde o início dos tempos. Parece que estou a bater no ceguinho com estas coisas de género, sempre a repetir-me a mim própria, mas não me canso: o género não é determinado biologicamente.

Não vou apontar o dedo às pessoas que se confundem com as identidades de género, porque até os mais conscientes e sensíveis ao tópico podem enganar-se (os famosos viéses, já falei disso?). Contudo, temos que saber lidar com o engano e temos que aprender a escutar e a observar as necessidades identitárias dos outros. Se tens dúvidas, pergunta. Se te enganas, pedes desculpa e pedes que te expliquem. Simples. Difícil é viver num mundo que reconhece pouco esta diversidade. A complexificação para fora do binarismo sempre existiu, e foi reprimida durante demasiado tempo. Tabu? Sermos nós próprios pode algum dia ser considerado tabu?

Infelizmente, os pronomes (ou o género dos vocábulos) não têm acompanhado a nossa consciência libertária de que a biologia não explica tudo, muito menos o sexo. Por isso é que há movimentos que apoiam e divulgam formas de como lidar com os pronomes (esses diabinhos linguísticos). Há propostas para formas de escrita, para uma linguagem mais inclusiva – certamente já viram Car@s, Car*s, Carxs ou Cares. Há quem identifique à cabeça os pronomes pelos quais desejam ser tratados, seja feminino, masculino ou neutro. Em português ainda não temos um pronome oficialmente neutro, mas em inglês há tentativas de implementar o pronome they/them na forma singular para quem não se identifique com nenhuma das formas disponíveis – feminina ou masculina. A Suécia já foi um passo à frente e oficializou a existência do pronome pessoal neutro – usando o ‘e’. Agora disponível na nova edição do dicionário de Sueco, é correcto (e incentivado) usar o género neutro quando nos dirigimos a quem não se identifica com este mundo aborrecido do binarismo. Os pronomes importam-se, as pessoas que sentem os desafios da diferença diariamente, ainda mais.

21 Mar 2017

A marcha das mulheres

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]inguém sabe ao certo se se trata de um momento de catarse episódico ou de uma tendência ideológica em ascensão. No dia 21 de Janeiro convocaram-se as mulheres deste mundo para uma marcha que se pensava não ser mais necessária, mas ainda é. As senhoras com muitos anos de experiência andavam por lá com cartazes: ‘Não acredito que ainda tenho que manifestar-me por isto’. Porquê? Porque a maior potência mundial elegeu um Presidente que faz questionar certos valores contemporâneos. Tal como uma criança de 10 anos afirmou, ao ser entrevistada nas ruas de Washington DC, o Presidente eleito não dá o melhor exemplo de como as mulheres deverão ser tratadas.

É-me difícil ficar indiferente a estas questões. São anos de luta e de consciencialização para que a desigualdade de género seja esmiuçada ao tutano e que desapareça de uma vez por todas. Surpresa das surpresas: ainda constitui um dos maiores desafios da humanidade. Se nos últimos 200 anos tem-se lutado por maior respeito e mais direitos para as mulheres, estas causas continuam a fazer sentido hoje em dia. Esta marcha das mulheres mostrou-nos que o activismo ainda existe, e que nós ainda temos armas para mostrarmo-nos descontentes.

Fiquei muito comovida ao ver as imagens de gerações de mulheres acompanhadas pela família e amigos. Aviões e autocarros cheios de mulheres e homens com barretes cor-de-rosa de orelhinhas de gato em peregrinação para um espectáculo de descontentamento social. Acreditar que as mulheres merecem um papel social diferente ao que é proposto hoje em dia e que merecem oportunidades para alcançarem tudo aquilo que quiserem, não é conversa especial de feministas. É uma conversa para todos aqueles que acreditam numa sociedade mais justa, igualitária e capaz de ser solidária.

Ao mesmo tempo, foram expostas exigências que são praticamente universais. As mulheres têm direito a ser as senhoras donas do seu corpo, têm o direito a ter as mesmas oportunidades que todos, têm direito a serem tratadas com respeito. Mas se há temas que são claros como água, há outros que não são. Ser a favor da legalização do aborto é ser a favor da escolha de poder abortar: é ter o total controlo do nosso corpo, ter direito a informação reprodutiva e ao planeamento familiar. Penso que isso seja claro. Mas o que é que quer dizer ter as mesmas oportunidades? Em especial, o que significa respeitar as mulheres?

Pela minha experiência, cada vez mais me apercebo que as opiniões divergem grandemente, apesar da causa ser a mesma. O cliché é de que tudo é relativo: mas é preciso ouvir com atenção as definições e redefinições que as pessoas fazem sobre o que é respeito, por exemplo. Isto é só um exercício de reflexão do dia-a-dia feminino. Mas se para a maioria é óbvio que é extremamente ofensivo um sujeito gostar de se vangloriar por poder agarrar uma mulher pela sua genitália, do que é que pensamos sobre homens que mandam piropos na rua ou que ficam especados a olhar só porque alguém está a usar uma mini-saia, por exemplo? Será que podemos falar de uma má objectificação feminina e de uma ‘boa’?

Eu, por exemplo, mantenho uma posição muito clara de como gostava de ser respeitada, e isso passa por querer poder dançar numa discoteca em paz e não ser incomodada constantemente por homens, ou poder usar uma mini-saia porque está calor e porque me sinto bem assim, ‘boa’ objectificação feminina é coisa que para mim não existe. Contudo, quem sou eu para definir universalmente o que quer que seja? Há mulheres que gostam de sair à noite e de ser admiradas – pode ser bastante empoderador. Há quem goste de ser interpelada para que a sua beleza seja elogiada (com classe, não à construção civil). Há pessoas para todos os gostos.

O respeito passa muito mais por aí, o respeito passa por perceber que há tendências diferentes. O respeito é ouvir e escutar com atenção as necessidades e vivências não só de um grupo como um todo (neste caso, as mulheres), mas as necessidades individuais também. Porque não existe uma fórmula perfeita para como estas coisas são vividas, mas é especialmente importante reconhecer estas idiossincrasias. Apesar de uma marcha ter o poder unificador de um conceito, de uma causa, ter a capacidade de lutar, de mostrar a força colectiva, nunca se esqueçam de cada uma de nós. Nós temos cores diferentes, ideias diferentes, experiências diferentes. Nós temos as pussies de ferro e ninguém nos vai parar.

24 Jan 2017

Power Rangers da Fantasia

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]elhor ou pior, dependendo da vossa geração, o pessoal deve ter ouvido falar dos Power Rangers. Eles são uns super heróis de uma série de entretenimento juvenil onde há cinco jovens que vestem um fato (cada um de uma cor diferente) e salvam o mundo das desgraças que por aí andam. Lembro-me de ver os power rangers naquelas idades em que queremos ser os heróis do mundo também – lembro especificamente de brincar que tinha um relógio onde podia comunicar com os meus parceiros (já antecipava um smartwatch!) e lá íamos nós salvar donzelas e cavalheiros em desespero.

Ora, caiu-me nas mãos aquelas pérolas da literatura cor-de-rosa, que permite aconselhamento sexual e amoroso, o caso de um rapaz a queixar-se que só poderia fazer amor ao fim-de-semana, quando o genérico dos Power Rangers tocava na televisão. A música de entrada dos Power Rangers, para este rapaz, é um turn on instantâneo e exclusivo – daí a limitação temporal. Nunca ninguém saberá da veracidade destes casos tão particulares, nem é o meu objectivo descobri-lo. Para este rapaz o imaginário dos Power Rangers é tudo o que ele precisa para a satisfação sexual. À primeira vista parece-me um pouco limitativo, se considerarmos a panóplia de cenários sexualmente interessantes que existem por aí. Mas não deixa de ser uma reacção honesta ao sexo. O que é que tu gostas? Da música dos Power Rangers.

As fantasias sexuais são isso mesmo, o poder de expressar e reconhecer a nossa sexualidade de forma honesta, ainda que, por vezes, fique somente pelo mundo das ideias. A nossa imaginação é riquíssima em cenários, posições e possibilidades, ainda que o dia-a-dia rotineiro não permita uma fertilização desta nossa imaginação sexual. Mas é preciso cultivá-la, pela nossa saúde sexual, precisamos de cultivá-la e tentar entendê-la em todo o seu esplendor. Porque a fantasia pode caracterizar-se de várias formas. Pode ser íntima e privada, a ser imaginada em momentos de masturbação – que podem ser momentos importantes até quando se vive em casal. Não há mal nenhum em querermos a privacidade das nossas fantasias… Contribui para o mistério. Ninguém precisa de saber tudo sobre ti, sobre o teu sexo, os/as parceiros/as podem estar perpetuamente a tentar descobri-lo. Tal como a fantasia pode ser o completo oposto, pode ser partilhada pelos dois, as fantasias individuais podem tornar-se vossas, recriadas em conjunto.

Mas às vezes, porque as fantasias são tão íntimas, temos medo que não sejam bem vistas e que não sejam entendidas. No que toca ao sexo é muito fácil patologizar tudo e todos que parecem cair nos meandros da não-‘normalidade’. Como eu tenho vindo recorrentemente a escrever, o normal nunca é (nem deve ser) categoricamente definido. Caso assim seja, o sexo, que ainda por cima é pouco discutido, estaria limitado a casais heterossexuais em posição de missionário. Contudo, graças à nossa imaginação tão rica, e à nossa vontade de explorar os limites da sexualidade humana, o sexo normal é um espectro de possibilidades. Tal como com o nosso amigo que gosta muitíssimo da música do genérico dos Power Rangers.

Continuo a reforçar que não há fórmulas feitas para a realização das fantasias de cada um. Nós nunca saberemos onde a nossa imaginação pode ir – por isso não vale muita pena seguirmos listas de fantasias genéricas. Mas há quem julgue que sim, que consegue descobrir uma lista de fantasias prototípicas para a satisfação geral. Sexo não é uma checklist que temos que ir riscando à medida que envelhecemos. Um menage à trois não é a fantasia de todos! Apesar de ser bastante prevalente em rapazes (com a fórmula 1 boy + 2 girls, pergunto-me, porque será?).

A sexualidade é uma forma de expressão como o amor é uma forma de expressão, nem quero ser presunçosa ao dizer que é uma forma de expressão artística. Talvez o sexo seja a inspiração mais visceral – mais básica – que podemos ter. Julgo que a fome não produza grande coisa, talvez tratados político-sociais do que a fome é. Mas o sexo sente-se, fantasia-se e cria-se. Dá vontade de fotografar corpus nus, de entrar no mundo fantástico do desejo, de perceber a sexualidade humana nas formas mais puras de beleza e de estética. Ou o sexo pode ser tão simples como a música do genérico dos Power Rangers.

17 Jan 2017

Assexual

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a biologia, a assexualidade é um conceito que designa uma reprodução dependente de um único interveniente, cada indivíduo é capaz de se auto-reproduzir. Mas este conceito não se estende à sexualidade humana, como devem calcular. Não há grande biologia que permita a criação de vida sem o envolvimento de um óvulo e de um espermatozóide. Por isso, não é sobre essa assexualidade que resolvi escrever. Refiro-me à assexualidade única e exclusivamente humana, que tem características distintas. Como qualquer outro conceito sexual, a discussão sobre a assexualidade e a forma como se define é complexa, mas a maioria tende a concordar que se trata de uma orientação sexual. Há quem prefira homens, mulheres ou ambos, mas há quem também prefira nenhum dos anteriores. As pessoas que sentem atracção sexual por nada nem ninguém e, por isso, não têm vontade de ter sexo,  identificam-se como assexuais. Todos os outros serão definidos como sexuais, com preferências distintas, especialmente em relação ao género com quem se querem envolver.

Assexualidade tem ganho alguma atenção social, académica e legal pela forte aposta na divulgação de uma orientação sexual que tem sido silenciada ao longo dos anos, por várias razões. Talvez passasse despercebida porque em tempos era desejável não mostrar/praticar o que o desejo sexual de cada um ditava. Mas hoje em dia, em certas sociedades hipersexualizadas, uma orientação que evita o sexo pode soar estranho. Por isso muitas questões ficam a pairar: qual será a diferença entre assexualidade ou alguma disfunção sexual? Será que a assexualidade é uma orientação sexual? Será uma escolha? De que forma assexualidade se relaciona com amor? Como sabemos quem é assexual ou não?

Entender a assexualidade de forma a não cair no erro de a julgar uma disfunção ou uma forma de celibato tem sido a temática de muitos ensaios. Celibato exige uma escolha de não querer envolver-se no acto sexual, enquanto que uma disfunção afecta o desejo e performance, mas não a atracção sexual per se. Em ambos os casos há espaço para fantasias, e são situações que podem ser provisórias – bem tratas caso seja uma disfunção, ou decididas em contrário, caso seja celibato. A assexualidade não é uma condição que possa mudar ao longo do tempo, tal como ninguém ‘deixa’ de ser heterossexual ou homossexual só porque sim. A etiologia desta orientação não é clara (tal como nenhuma orientação sexual o é), que dificulta a entender as nuances destas diferenças. A verdade é que indivíduos assexuais até podem envolver-se em relações sexuais, podem sentir amor e querer investir num relacionamento a longo prazo, e podem masturbar-se, apesar de o fazerem numa regularidade mínima. Como poderiamos esperar, existe uma grande diversidade de vivências que se encaixam no ‘guarda-chuva’ da assexualidade. Há ainda classificações como demisexual ou gray-assexual que incluem um espectro de experiências entre assexualidade e sexualidade. Demisexual são aqueles que só conseguem sentir atracção sexual por quem sentem grande intimidade, e definem-se pelo sentimento e não pela acção (por vezes não se chega a vias de facto) enquanto que gray-assexuais poderão sentir esporadicamente atracção, apesar de ser comum não o identificarem de forma clara.

As comunidades e movimentos que se comprometem a educar todos os interessados sobre o que a assexualidade é, como por exemplo The Asexual Visibility & Education Network (www.asexuality.org/), ajudaram a definir uma identidade para os que não se sentiam dentro dos padrões ditos ‘normais’ e, assim, contribuiram à necessidade de reconhecer (em  todas as áreas da nossa vida) uma forma de identificação sexual entre outras minorias sexuais. Facilmente nos deparamos com um largo espectro que não depende de uma definição estanque (e isto acontece em todas as direcções, sexual ou assexual), e que exige complexos processos identitários. Estes termos/conceitos/categorias são importantes, não porque estão a explorar  as biologias ou fisiologias da ausência de atracção, mas diferentes sexualidades que necessitam de ser entendidas. Precisamos de nos entender a nós próprios e aos outros, e isto é especialmente necessário quando as expectativas heteronormativas relacionais, sexuais e familiares tentam (estupidamente) ser prescritivas da normalidade. O normal é o que nos faz bem, é o que nos faz feliz, é o que é fiel aos nossos desejos e vivências. Assexual é normal, tal como sexual o é.

3 Jan 2017

2016 chegou ao fim

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais um ano que passou. Acho que a maioria irá concordar que o ano não correu muito bem. Para o espírito português tendencialmente pessimista e trágico, tudo o que aconteceu neste querido 2016 deixou os nossos corações de sobressalto, a esperar sempre o pior. A expectativa é de que o ano de 2017 não venha a piorar estas ansiedades, mas que tranquilize… Nós queremos histórias felizes. Nós queremos conquistas justas e inclusivas.

O ano passado de 2015 acabei o ano com um artigo que revia as grandes vitórias legais de inclusão e de desenvolvimento do domínio sexual e de género. Houve alguns desenvolvimentos interessantes, não houve? Foram aprovadas leis (por todo o mundo), e popularizaram-se trends, que suscitaram saudáveis discussões sobre o tema do sexo e do género. Este ano não consigo estar tão satisfeita. A verdade é que, a meu ver, houve um retrocesso severo na forma como certas temáticas sexuais foram abordadas. Podem olhar de perto para o que está acontecer na Polónia sobre o aborto, ou para os Estados Unidos com a nova presidência e a assuntos relacionados com homossexualidade, educação sexual e outros temas que são considerados polémicos. Talvez o 2017 nos traga mais coisinhas boas, mais abertura para falar daquilo que temos vergonha e pouco à vontade – mas que deve ser discutido. Mas claro que nem tudo foi assim tão mau:

– Fu Yuanhui foi a rainha dos Jogos Olímpicos porque falou sobre a m-e-n-s-t-r-u-a-ç-ã-o, o período, o Benfica, o sangue entre as pernas, aquela altura do mês. Não falou assim tanto quanto isso, mas referiu-o de boca cheia! Sem vergonhas;

– Sun Wenlin e o seu parceiro Hu Mingliang tentaram pedir recurso a uma tentativa de legalizar o casamento homossexual, foi recusado, mas foi considerado um dos maiores momentos pelo movimento LGBTQ+ na China;

– Houve a oportunidade de fazer sexo com o planeta, colectivamente, numa instalação artística em Novembro em Sydney, uma oportunidade de divulgar formas de amor pelo planeta e a eco-sexualidade.

– Na Turquia, depois de muita manifestação e indignação nas ruas, foi possível parar uma proposta lei que iria absolver violadores se estes casassem com as suas vítimas. Uma vitória para a voz popular feminina.

– Houve uma maior preocupação (e.g. graças a um jornal britânico e à sua rubrica vaginal dispatches) com as questões vulvares e vaginais. Tentou-se perceber como se parece, como cheira, como reage. O mistério feminino desvenda-se no entendimento anatómico e fisiológico das partes femininas que precisa de uma atenção contínua e que irá continuar para o ano 2017.

Nem tudo foi mau, mas muita coisa foi má, e para não alimentar o pessimismo não irei listar essas coisas tristes. Queremos pensar no futuro, no optimismo e na esperança que servem de combustível para todos movimentos de luta e justiça em todos os campos da nossa vida, incluindo no sexual.

Depois de um Natal cheio de comida, e já que andamos a rebolar de doces e coisas boas, desejo a todos uma passagem de ano cheia de amor e, quiçá, cheia de sexo se assim vos aprazer, para queimarem essas calorias extra. O ano 2017 que vos traga marotices de todos os tipos, inspiradas pela imaginação, sabedoria e educação do que é uma sexualidade livre, consentida e bem informada. Porque já chega 2016! Não podemos mais contigo. 2017: chega bem rápido.

28 Dez 2016

Língua suja

FACEBOOK, LISBOA, 13 DEZEMBRO

[dropcap]N[/dropcap]os terrenos da minha infância cresciam unas ervas esguias com tons de primavera e sabores invernosos. Depois das corridas e outras ocupações suadas, espremíamos o seu suco entre dentes. A sabedoria científica do bairro chamava-lhe azedas, mas a palavra não contém o arco-íris de sabores agridoces. Este poema-raio da Rita Taborda Duarte, que espremi, entre afazeres, soube-me a azeda. E fez chorar um gajo que nunca será mãe, e dificilmente será mulher, também pela razão simples de que tem saudades de filhos que não chegou a parir.

«QUANDO A MULHER SE TRANSFORMOU MÃE // As mães,/ azedas,/ transformam em leite/ tudo aquilo em que tocaram e/ aflitas / escavam uma cova funda no coração do útero.// Todos os meses têm mênstruos férteis/ e povoam o mundo com as saudades / dos lhos/ que não chegaram/ a parir// Só depois/ puxam como Arianes loucas/ o cordão dos lhos entrançado/ na meada da infância/ – dobam-no até à raiz do tempo –/ e guardam no ventre desabitado/ o novelo de uma imensa solidão»

EL CORTE INGLÉS, LISBOA, 13 DEZEMBRO

Mais uma sala cheia para ouvir Helder Macedo lançar preciosas pistas de navegação no alteroso oceano que é a obra de Shakespeare. Outro espectáculo subtil da inteligência, não apenas na análise das quatro obras, centrada em um conceito (culpa, em Hamlet; nada, para Rei Lear; traição, em Otelo; bond, i.e., vínculo, título de dívida, e mais…, para O Mercador de Veneza), mas nas múltiplas articulações com os nossos dias.

Interessa-me, aqui e para já, cometer a inconfidência da conversa ajantarada e avantajada. O Helder foi Secretário de Estado da Cultura de uma breve e exaltante experiência de governação, capitaneada pela carismática e saudosa Maria de Lurdes Pintasilgo, nos finais de 1970. Isso, de par com a sua posterior candidatura à Presidência da República, marcou o fim da minha infância, de complexa e azeda maneira. Tê-lo, à mesa, a testemunhar de um tempo que fez um nó no tempo, derrubou as paredes da sala e colocou-nos, também ao José Anjos e à Susana Santos, no meio de um filme, misto de Buñuel com Pasolini e pitada de Fellini. Muito do que agora se dá por adquirido na cultura de Estado, apesar das ameaças constantes, teve então gestos primordiais, que valia a pena revisitar. Como esse estranho episódio de interrupção da democracia por razões técnicas à maneira do canal único de televisão, cometido pelo governo que se lhe seguiu, liderado por Sá Carneiro, com Vasco Pulido Valente no lugar de SEC e onde surge – nas Finanças, claro! – a sombria figura de Cavaco: cada uma das medidas tomadas pelo governo Pintassilgo foram suspensas, nalguns casos até ao nível do despacho. Um deles autorizava a resolução de problema eléctrico no Museu de Arte Popular, que acabou por estar na origem do célebre incêndio que destruiu preciosa obra colectiva (Vieira da Silva, Pomar, João Vieira, entre muitos outros), na qual se celebrava o primeiro aniversário da revolução. Shakespeare, sempre tão próximo.

PASSEVITE, LISBOA, 17 DEZEMBRO

A polémica que por aqui lavra confirma o peso das palavras. O Ricardo Araújo Pereira disse que hoje seria difícil hoje fazer uma velha rábula com «anões, coxos e mariconços», que incluía também vesgos, fanhosos e atrasados mentais. A provar que tinha razão, explodiu uma troca de argumentos muito interessante. Ou quase. Eduardo Pitta, no seu blogue armou que «Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço.» Paulo Corte-Real, da Ilga, fez o curto-circuito aos crimes de ódio. “Conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos.” Hoje, no Expresso, a deputada Isabel Moreira acrescenta uma aula de ciência política. «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?». A liberdade, diz ela, embora com nuances, é valor de direita. A esquerda é mais igualdade.

Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

A pele das palavras muda e é divertido imaginar que as conseguiremos limpar até ficarem brilhantes de tão puras. Velho tornou-se depreciativo? Chamemos-lhe sénior. Demos-lhe mais anos de vida? Anão passou a magoar? Tratemo-lo por indivíduo desproporcional ou de baixíssima estatura. Com isso cresceu?

Uma amiga contou-me da dificuldade que teve, ao longo de meses, em passar a tratar por clientes os deficientes com quem trabalha. A bem do rigor, foi banido o uso de utente, paciente, etc. Hesitei na palavra deficiente, mas melhora se a substituir por pessoa portadora de deficiência? Não creio que o combate vital à descriminação se resolva assim. E perigosa me parece esta deriva, em gente tão atenta aos detalhes da língua, que lê insulto no humor. Obviamente, o humorista não está livre de crítica e pode ignorá-la, mas também desaparecer por falta de graça. Ora uma das grandes conquistas da civilização, a duras expensas, foi a liberdade de expressão e do grito, por exemplo, no espaço polémico do desenho de humor, da caricatura. Como em inumeráveis atitudes e leis censórias, o argumento de defesa dos assassinos dos desenhadores do Charlie Hebdo foi a defesa da honra perante terrível ofensa, no caso, religiosa. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

André Carrilho, que inaugurou ex- posição de brutais serigrafias (Uppercut, na Passevite, até 5 de Janeiro) feitas a partir dos seus cartoons (o que ilustra a crónica foi capa do DN na sequência do Charlie Hebdo), que se acautele: vai ter que emagrecer muito gordo, revestir muita careca e corrigir narinas. Ele tem histórias para contar.

HORTA SECA, LISBOA, 18 DEZEMBRO

Acabo de saber que, segundo um colega editor, as edições da abysmo são «apanascadas». Deu-me uma alegria redentora que nem vos conto.

21 Dez 2016

Sexualidade na deficiência | Hong Kong quer debater assunto com Macau

 

A sexualidade vivida pelas pessoas com deficiência é ainda um assunto tabu e é preciso debater o assunto com a sociedade, até para prevenir casos de abusos sexuais. A ideia é defendida pelo Hong Kong Women Christian Council, que pretende trazer a discussão para Macau

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um assunto tabu em quase todo o mundo, e mesmo na Europa, em Portugal, só recentemente começou a ser abordado. Os portadores de deficiência também vivem a sua sexualidade, mas continua a persistir a ideia de que a intimidade é uma área que eles não vivenciam.

Foi a pensar nisso que o Hong Kong Women Christian Council promoveu um debate sobre o assunto na região vizinha, mas a ideia é que possam ser estabelecidas ligações com entidades de Macau para discutir este tema no território. “Estamos a planear partilhar a nossa conferência com alguns grupos que tenham interesse na questão ou com organizações de apoio à deficiência em Macau. Também estamos a planear fazer alguma peça de teatro educacional para os portadores de deficiência em Macau”, disse ao HM Little Wing Yick, uma das responsáveis pela organização.

A discussão em torno da sexualidade na deficiência começou em 2012, quando o Hong Kong Women Christian Council publicou 12 histórias no livro “O amor não tem deficiência”. Desde então que tem feito também investigação sobre o assunto e sobre casos noutros países.

“A sexualidade na deficiência é ainda um grande tabu na sociedade de Hong Kong. Encontrámos alguns casos de deficientes que, no seu dia-a-dia, sofrem abusos sexuais e existe falta de educação sexual para eles. Os subsídios que são concedidos permitem aos portadores de deficiência manterem os seus empregos, viagens, manterem uma casa e serviços médicos, mas não existe nada para as suas necessidades sexuais ou íntimas. Há uma ideia de que o portador de deficiência não deveria ter sexo. Por isso esperamos alertar o público para esta questão dos direitos dos deficientes em relação ao sexo e prevenir os abusos contra estas pessoas”, adiantou Little Wing Yick.

Para a responsável, “tudo está relacionado com o problema da indústria em Hong Kong”. “Acreditamos que, quando abordamos a prática de serviços sexuais em relação aos portadores de deficiência, deveríamos aprofundar questões que têm que ver com a lei, direitos humanos e medicação”, disse ainda.

Abusos sexuais são realidade

Hetzer Siu, presidente da Macau Special Olympics, uma das entidades que representa os portadores de deficiência, fala da existência de casos de abuso sexual que nunca chegam a constituir processos judiciais, por falta de provas.

“No passado aconteceu e mesmo hoje em dia há vários casos de abusos sexuais em Macau, porque as pessoas com deficiência mental estão mais vulneráveis, porque mesmo que sejam alvo de abusos não conseguem falar do que se passou. Mesmo que os casos vão parar à polícia, não conseguem encontrar provas porque a vítima não consegue expressar o que aconteceu. Ainda assim não há muitos casos porque Macau é uma sociedade pequena e comunidade irá saber quem abusou de um portador de deficiência. Nesse sentido é vantajoso vivermos numa sociedade pequena”, explicou.

Ainda assim, existe o lado bom da medalha: os deficientes que conseguem ter uma vida normal e constituir família.

“Há um ponto interessante na sociedade de Macau, porque segundo a tradição chinesa os filhos homens têm de ter filhos e casar, então há muitos pais que tentam encontrar uma esposa para os seus filhos. Tentam arranjar um casamento tradicional para eles. Em relação às mulheres, alguns pais também procuram que as suas filhas encontrem um parceiro, porque pensam que é muito importante constituir uma família.”

Hetzer Siu considera que é importante debater o assunto em parceria com Hong Kong, mas alerta para as dificuldades em abordar a realidade dos abusos sexuais.

“É necessário apostar na educação sexual para os pais destas pessoas, porque a sexualidade é uma necessidade básica de qualquer ser humano. É preciso que haja mais informação sobre o controlo de doenças sexualmente transmissíveis e também sobre relações sexuais protegidas. Todas as pessoas têm essa necessidade, sobretudo de intimidade, e não me refiro apenas ao sexo. As pessoas com deficiência têm necessidade de estabelecer relações íntimas e não apenas relações sexuais”, rematou o presidente da Macau Special Olympics.

12 Dez 2016

Sexualidade Ecológica

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e não andamos a pensar no perigo iminente das alterações climáticas, devíamos. Ainda há pessoal descrente que acha que as alterações climáticas são uma invenção chinesa. Os ‘indiferentes’ não fazem nada em relação a isso e andam a desrespeitar todas as recomendações mundiais. E finalmente temos os ambientalistas, mais ou menos radicais, com ideias que obrigam as pessoas a pensarem o planeta e a protegê-lo. Os ecossexuais, a sexualidade ecológica, o eco-sex faz parte deste último grupo.

Existem perto de 100.000 pessoas neste mundo que se auto-proclamam de ecossexuais. Alguns fazem desta categoria a real-definidora da sua identidade sexual e, sendo assim, preferem ter os seus orgasmos em interacção com os elementos do nosso querido planeta Terra. Um dos objectivos é mudar a metáfora da Mãe Terra para a Amante Terra. A explicação é de que se tratarmos a Terra como amante, faremos de tudo para não a trair, ofender ou magoar. A metáfora da Mãe Terra não é tão eficaz – como filhos achamo-nos no direito de fazer tudo o que nos apetecer, na esperança de que seremos sempre perdoados. Pois a Terra já não tem como nos perdoar, já não há grandes sistemas de regeneração que nos possam auxiliar. Por isso, se tratarmos a Terra como uma parceira romântica, espera-se que o cuidado seja maior. Nós como grandes poluentes e destruidores que somos, merecíamos ser ‘deixados’. Se a Terra tivesse juízo e se estivesse a ser acompanhada por uma terapeuta casal, já se tinha livrado de nós. Os humanos são nocivos. Os ecossexuais tentam quebrar este ciclo. Eles amam o planeta e os seus constituintes e tentam reparar o ódio que já lhe foi lançado – e um futuro cenário apocalíptico de inundações, secas e desastres ecológicos poderá ser evitado.

As grandes impulsionadoras deste movimento são Annie Sprinkle e Elizabeth Stephens que o têm divulgado com os mais variados tipos de eventos – e até escreveram um manifesto. Eco-sexualidade é identidade, comunidade, crença, estilo de vida, prática e activismo. Envolve muito amor, sem dúvida. Há abraços a árvores, massagens à Terra com os pés e conversas eróticas com as plantas. Há carícias a pedras, masturbação em cascatas e admiração das suas ‘curvas’. Estas duas artistas/activistas ainda organizam casamentos com a Terra, e nós podemos escolher com que elemento desejamos casar. Com o mar, com o ar ou com as estrelas, o importante é que seja para sempre ou, como elas dizem, ‘até que a eterna morte nos torne ainda mais próximos’.

Para os que ainda acham a ideia de fazer amor com a Terra um pouco esquisita, não esquecer que a questão ecológica deve ser incluída nas nossas preocupações sexuais e amorosas de qualquer forma. Tem que haver consciência do nosso possível impacto ambiental, até na cama. Por mais cuidadosos e ecologicamente preocupados que sejamos não nos podemos esquecer dos contraceptivos e dos nossos brinquedos sexuais que contribuem para a dependência de combustíveis fósseis. Há um livro todo dedicado a estas questões ‘Eco-sex’ onde são discutidas questões de como ser verdadeiramente verde na cama e na vida amorosa. Já pensaram como um preservativo é poluente? Como não se degrada com facilidade? Talvez da próxima vez não o atirem pela sanita abaixo para não poluir outros ecossistemas. Querem oferecer uma prendinha? Façam decisões ecológicas e pensem duas vezes antes de comprar aquele ramo de flores que foi tratado com pesticidas cancerígenos em países onde se aproveitam de mão-de-obra barata.

Tudo bem, fazer amor com o planeta é uma ideia difícil de conceber (para os curiosos – houve um encontro de ecossexuais em Sidney há bem pouco tempo) mas não se esqueçam que o amor – Respeito! – pelo ambiente natural que nos rodeia é absolutamente necessário. Vivemos tempos onde a biodiversidade está em risco e onde os nossos filhos irão assistir em primeira mão ao dizimar da magia natural que nos criou e nos protegeu. Os ecossexuais acreditam que todo este amor pode ser usado para salvar-nos das catástrofes que nos esperam. E tu? O que já fizeste hoje para amar um pouco mais a tua Terra?

22 Nov 2016