O deslumbramento

[dropcap]S[/dropcap]amuel Barber foi um compositor interessado em levar a música culta a franjas mais amplas da população. Ao contrário dos seus contemporâneos, não se preocupou demasiado com as técnicas musicais de vanguarda da época. A sua linguagem é expressiva e lírica e baseia-se no sistema tonal de finais do século XIX, embora tenha incorporado alguns elementos como o cromatismo e a ambiguidade tonal a partir da década de 1940. Tão-pouco prestou especial atenção a elementos da cultura musical norte-americana como o folk ou o jazz, tão empregues por outros compositores norte-americanos como Aaron Copland ou Marc Blitzstein. Apenas em algumas das suas obras, como Excursions ou Knoxville: Summer of 1915, encontramos ritmos populares americanos como o blues.

A produção de Barber abarca praticamente todos os géneros, embora o seu grande interesse pela voz humana o tenha levado a escrever numerosas obras vocais baseadas em textos de escritores como James Joyce, James Stephens, Emily Dickinson ou Rainer Maaria Rilke. O seu ciclo de canções Despite and Still, op. 41, dedicado à magnífica soprano Leontyne Price, caracteriza-se pelas suas frequentes alusões à solidão e à nostalgia do amor perdido, através de harmonias ricas em cromatismos e dissonâncias. Uma das principais características da música de Barber é o uso de grandes linhas melódicas, patente na perfeição do seu célebre Adagio for Strings, composto em 1936. Nas suas obras orquestrais costuma atribuir as partes solistas aos instrumentos de sopro de madeira, para além de utilizar frequentemente uma linguagem contrapontística de grande fluidez e uma orquestração de grande colorido, como é o caso do seu concerto para piano. Este é o trabalho que melhor transmite o brilho, o carisma, a energia, a invenção, o grande coração e o deslumbramento de Barber. É uma peça extraordinária, fogosa, dramática, às vezes requintadamente adorável e completamente emocionante. Também é incrivelmente difícil de tocar, tendo sido gravada apenas algumas vezes, mais impressionantemente (duas vezes) pelo pianista a quem foi dedicada, John Browning.

O Concerto para Piano e Orquestra, Op. 38, de Samuel Barber foi encomendado pela editora musical G. Schirmer Inc., de Nova Iorque, em honra do centenário da sua fundação. A estreia teve lugar no dia 24 de Setembro de 1962, nas festividades de inauguração do Philharmonic Hall, actualmente David Geffen Hall, a primeira sala construída no Lincoln Center for the Performing Arts em Manhattan, com John Browning como solista com a Boston Symphony Orchestra dirigida por Erich Leinsdorf.

Barber começou a trabalhar no concerto em Março de 1960. John Browning foi o solista pretendido desde o início e o concerto foi escrito com a sua técnica de teclado específica em mente. Os dois primeiros andamentos foram concluídos antes do final de 1960, mas o último andamento não seria terminado senão 15 dias antes da estreia mundial. De acordo com Browning (nas notas principais da sua gravação do Concerto para a RCA Victor em 1991 com a St. Louis Symphony), a versão inicial da parte do piano do terceiro andamento era impossível de executar; Barber resistiu em refazer a parte do piano até o pianista Vladimir Horowitz a rever e considerá-la também impossível de tocar at full tempo. O trabalho foi recebido com grande aclamação da crítica, com Barber a ganhar o seu segundo Prémio Pulitzer em 1963 e o Music Critics Circle Award em 1964.

O primeiro andamento do concerto, Allegro appassionato, é puro Barber, ou seja, romântico americano. Inicia-se com uma grande cadência para piano que apresenta três temas – “o primeiro declamatório, o segundo e o terceiro rítmicos”, foi como Barber os descreveu, antes da orquestra entrar com a melodia principal do concerto, inquiridora e melancólica, que leva tudo à sua frente. Através deste andamento, piano e orquestra são essencialmente antagonistas, vangloriando-se à vez e raramente partilhando materiais. Através de inversão, retroversão e variações em contraponto destas melodias (que irão aparecer nos andamentos subsequentes) Barber desenrola todo o andamento. O segundo andamento, Canzone: Moderato, baseia-se principalmente numa melodia doce mas triste e é muito mais suave que o primeiro. Este andamento foi transcrito e expandido de uma Elegia para flauta e piano, composta em 1959 pelo flautista Manfred Ibel. Foi publicada em 1962, como Canzone (Elegy), Op. 38a. O terceiro andamento, Allegro molto, é composto num compasso furioso de 5/8, com um esmagador ostinato que confere à peça um som um tanto diabólico. Faz uso abundante dos metais, e é movido pela recapitulação de um breve tema motívico, dando ao andamento uma forma de rondo modificada.

 


Sugestão de audição:
Samuel Barber: Piano Concerto, Op. 38
John Borwning, piano, The Cleveland Orchestra, George Szell – Columbia, 1964

14 Abr 2020

Uma obra diabólica quase esquecida

[dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1945, ainda antes do final da II Guerra Mundial, Samuel Barber, que desde 1942 servia na força aérea norte-americana, foi contratado por John Nicholas Brown, violoncelista amador e administrador da Boston Symphony Orchestra. para escrever um concerto para violoncelo para Raya Garbousova, uma violoncelista russa expatriada. Serge Koussevitzky, o grande maestro da Boston Symphony, arquitectou o projecto e providenciou que o compositor fosse dispensado do serviço militar para escrever o trabalho para a sua 20ª temporada como director musical da orquestra. A partitura é dedicada a John e Anne Brown. Barber, antes de começar o trabalho, pediu a Garbousova que tocasse o seu repertório e poder entender o seu estilo de execução e os recursos do seu instrumento, o Stradivarius Davidov (que seria mais tarde propriedade de Jacqueline du Pré e actualmente de Yo-Yo Ma). O Concerto para Violoncelo e Orquestra em Lá menor, Op. 22, concluído nos finais de 1945, foi o segundo dos seus três concertos (sendo o primeiro o Concerto para Violino e o terceiro o Concerto para Piano) e é possivelmente um dos trabalhos mais exigentes tecnicamente no repertório do instrumento. Garbousova estreou-o com a Boston Symphony Orchestra no Boston Symphony Hall, no dia 5 de Abril de 1946, a que se seguiram apresentações em Nova Iorque na Academia de Música de Brooklyn, em 12 e 13 de Abril, sem grande êxito, obtendo finalmente a obra grande sucesso no Carnegie Hall em 1946, recebendo o 5th New York Music Critics’ Circle Award em 1947 como “excepcional entre as composições orquestrais executadas pela primeira vez [no Carnegie Hall] durante a temporada de concertos” .

Raya Garbousova, que estava no auge da sua carreira quando a peça foi escrita, tocou o concerto extensivamente, mas depois de se aposentar, a obra caiu em desuso devido às suas exigências técnicas extremas. Barber, que havia feito várias alterações ao trabalho entre 1947 até à sua publicação em 1950, a maior parte no Allegro de abertura, pretendia, mais tarde na sua vida, modificar a parte do violoncelo, esperando incentivar mais violoncelistas a executar a peça, mas a sua doença prolongada impediu-o.

Várias gravações recentes aumentaram o interesse pela obra, incluindo a de Yo-Yo Ma, do violoncelista suíço Christian Poltéra e a de Christine Lamprea, vencedora recente do Sphinx Prize 2018, nos EUA.

Lírico e expressivo, o concerto é escrito tradicionalmente em três andamentos – Allegro moderato, Andante sostenuto, e Molto allegro e appassionato (rápido, lento, rápido), com cordas duplas extremamente difíceis e várias cadências eloquentes. A peça requer uma técnica segura e um autodomínio dramático. O concerto para violoncelo foi o último dos trabalhos instrumentais de Barber a conter aquele brilho entusiasmado de confiança e serenidade do compositor; a sonata para piano e o concerto para piano são obras muito boas, mas o seu apelo depende mais do virtuosismo vistoso – apropriado para as suas formas, é claro, mas não exactamente o verdadeiro Samuel Barber, que reapareceu na ópera, onde o seu lirismo inato correspondia melhor às expectativas do público, e em outros trabalhos vocais como Knoxville: Summer of 1915 e Andromache’s Farewell.

 

Sugestão de audição:
Samuel Barber: Cello Concerto, Op. 22
Victor Simon, cello, Moscow Radio Symphony Orchestra, Gennady Rozhdestvensky – Cascade, 2007

7 Abr 2020

A obra mais íntima

[dropcap]A[/dropcap]ssociar Samuel Barber exclusivamente ao seu famoso Adagio for Strings, Op. 11 é ignorar tantas outras composições suas. Em The Lovers, Op. 43, o grande compositor americano musica tão magistralmente excertos do ciclo poético Vinte Poemas de Amor e uma Canção de Desespero do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), que eleva a sensualidade e a poesia do texto a novas alturas. A poesia de Neruda é amplamente considerada como alguma da poesia mais romântica alguma vez escrita, embora o seu erotismo permaneça controverso.

Em 1971, no auge do período serialista da música clássica norte-americana, Barber aceitou uma encomenda do Girard Bank of Philadelphia de uma grande composição. Essa instituição financeira adoptou um programa pelo qual esperava contribuir “construtivamente para aspectos socialmente orientados e culturais da comunidade e da nação”. Parece que Barber se havia recuperado da sua depressão anterior após o fracasso que foi a estreia da sua ópera Antony and Cleopatra. O compositor tinha recusado uma encomenda monumental de Eugene Ormandy apenas dois anos antes. No entanto, criou uma peça maravilhosa para a comissão do Girard Bank, a sua última grande obra, composta por um prelúdio e nove andamentos que traçam a progressão de um caso de amor desde o começo alegre até ao fim doloroso. A oratória The Lovers, Op. 43 foi escrita para barítono solo, coro misto de 200 vozes e orquestra completa. A facto do texto ser considerado bastante erótico, juntamente com a associação de Neruda com o Partido Comunista, fez com que a obra fosse criticada pelos funcionários do Girard Bank. Barber respondeu da seguinte forma: “Meu Deus! Não há love affairs em Filadélfia?”

O compositor trabalhou diligentemente em meados de 1971 na composição de The Lovers, certamente o seu trabalho mais íntimo. A maior parte da peça foi composta em Capricorn, local onde vivia na época. De facto, um canto de pássaro ouvido aí inspirou o motivo de abertura do Prelúdio, que atravessa todo o trabalho. O compositor levou dois meses para compor a música e dois meses para orquestrar a peça. The Lovers foi estreada em 22 de Setembro de 1971 pela Philadelphia Orchestra, o barítono finlandês Tom Krause e o Temple University Chorus, dirigidos por Robert Page. Barber, sempre duvidando, enviou um amigo para a plateia no intervalo para julgar as suas reacções. Mas o público, juntamente com a crítica musical, apreciou muito o trabalho.

Barber compôs The Lovers no seu estilo mais pessoal e lírico. Devido ao erotismo sem rodeios das letras assim como à extrema dificuldade das partes corais e orquestrais, a obra raramente é executada. A escrita vocal é baseada nos ideais do Lied Romântico Alemão. O Prelude, apenas para orquestra, abre com o motivo de três notas da chamada de pássaro na flauta. De seguida, um tema sensual é apresentado. A música cada vez mais dramática, leva ao primeiro andamento, “Body of a Woman” (Corpo de uma mulher). O solo de barítono entra no início desta música apressada. Essa emoção reflecte a antecipação presente no início de um caso de amor. “Lithe Girl, Brown Girl” é o título do segundo andamento, principalmente para vozes masculinas e orquestra. O próximo andamento, “In the Hot Depth of this Summer” (Na profundidade quente deste Verão), é para vozes femininas e orquestra. O coro e a orquestra completos são usados ​​em “Close your Eyes” (Fecha os olhos), o quarto andamento. O caso de amor cresce através desses andamentos e atinge o seu auge no quinto andamento, “The Fortunate Isles” (As Ilhas Afortunadas). O relacionamento começa a desfaz-se no sexto andamento, “Sometimes” (Às vezes), no qual o solo de barítono retorna e, no oitavo andamento, “Tonite I Can Write” (Hoje à Noite Eu Posso Escrever), os amantes são separados.

Sugestão de audição:
Samuel Barber: The Lovers, for baritone, chorus and orchestra, Op. 43
Dale Duesing, baritone, The Chicago Symphony Orchestra & Chorus, Andrew Schenck (World Premiere Recording) – Koch International Classics, 1991

31 Mar 2020

O poderosamente espiritual Adagio de Barber

[dropcap]S[/dropcap]amuel Barber, que tinha frequentado o reputado Curtis Institute of Music de Filadélfia entre 1924 e 1932, sabia que o Curtis String Quartet, formado em 1932, estava a planear uma digressão europeia nos últimos meses de 1936, e projectou escrever um quarteto para o agrupamento tocar em Itália. O compositor tinha passado um ano a estudar na Academia Americana em Roma, depois de receber o cobiçado “Prix de Rome” na Primavera de 1935. Graças a uma extensão do seu Pulitzer Fellowship, pôde permanecer na Europa durante o Verão e Outono de 1936, instalando-se numa pequena casa de campo em St. Wolfgang, na Áustria, com o seu companheiro, o também compositor Gian Carlo Menotti. Foi aqui que a maior parte do quarteto foi composto, durante a sua reclusão de cinco meses na pequena localidade suíça. Barber, no entanto, não concluiria a peça a tempo da digressão do Curtis Quartet. Assim, após ter terminado o quarteto, este foi estreado, numa versão provisória, pelo Pro Arte Quartet, no dia 14 de Dezembro de 1936, na Academia Americana sediada na Villa Aurelia em Roma. A versão final só seria estreada no dia 28 de Maio de 1943, pelo Budapest Quartet, na Library of Congress em Washington, D.C.

O Quarteto de Cordas em Si menor, Op. 11, o primeiro e único quarteto de cordas de Barber, não terminou da forma que o compositor pretendia, pois o segundo andamento eventualmente ofuscou toda a obra quando o transcreveu para orquestra de cordas com o título Adagio for Strings, por sugestão do famigerado maestro Arturo Toscanini, com quem tinha travado conhecimento em 1936, em Roma. Além disso, o projecto do último andamento nunca se concretizou realmente, e a peça como um todo ficou marcada como um veículo para dar vida ao Adagio. O primeiro andamento tem mérito, no entanto, na medida em que mostra Barber a experimentar um estilo um pouco afastado do seu idioma hiper-melódico habitual. O trabalho final tem dois andamentos. O primeiro, Molto allegro e appassionato, está estruturado na forma-sonata livre. Reminiscente de Beethoven e diferente, em termos de retórica, da maioria das obras de Barber, é estruturado em torno de motivos rítmicos, em lugar de se basear numa melodia central carregada de emoções. O segundo andamento, Molto adagio; molto allegro, começa com uma das melodias mais famosas da história, a lenta e sensível cantilena que se tornou, na versão para orquestra de cordas, o Adagio for Strings. A segunda metade do andamento, Molto allegro (originalmente destinado a ser o último) é uma recapitulação bastante desinteressante e superficial do material do primeiro andamento.

O poderosamente espiritual Adagio for Strings é familiar à maior parte dos ouvintes, mesmo que não sejam capazes de o identificar. A obra, que incorpora sentimentos de profunda perda e dor, nasceu no caos de um continente à beira do apocalipse. O Adagio, estreado no dia 5 de Novembro de 1938 pela NBC Symphony Orchestra sob a batuta de Arturo Toscanini no Studio 8H no Rockefeller Center em Nova Iorque, perante uma audiência seleccionada, estabeleceu uma posição firme na consciência americana como a personificação musical do luto colectivo. Foi tocado nos funerais de Franklin Roosevelt, Albert Einstein e Grace Kelly. Três dias após o assassinato de John F. Kennedy, Jackie Kennedy organizou a sua execução numa sala vazia pela National Symphony Orchestra em sua homenagem; uma gravação desta actuação foi lançada nas estações de rádio e televisão, que a adoptaram como um hino não oficial de luto durante as semanas subsequentes. A obra foi também tocada por orquestras em todo o mundo na sequência das tragédias do 11 de Setembro . Oliver Stone usou-o como tema de seu filme de referência, “Platoon”. O seu poder reside na sua simplicidade e profundidade de sentimento e há poucas obras que tenham um acesso tão directo às emoções das pessoas.

Sugestão de audição:
Samuel Barber: Adagio for Strings
Los Angeles Philharmonic Orchestra, Leonard Bernstein – Deutsche Grammophon, 1993

17 Mar 2020