Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPalavra contra palavra (continuação) [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra escrita tem a primazia, não porque seja mais educada ou mais limpa, mas porque tem uma relação especial com “aquilo que não é”, como no poema à página 38, “Poema com muito vago erotismo ao fundo”: “Não é a mesma a língua com que te falo a língua com que te beijo ou esta língua outra em que te escrevo, a tinta espessa, vagamente húmida. É preferível escrever-te que beijar-te: a folha rasa limpa é corpo liso acolhendo quente o contorno da letra e com essa língua sinceramente falo e digo quase sinto o beijo que te escrevo e não te dou.” A narradora do poema diz ser preferível escrever a beijar o amante, e quase sente o beijo que escreve e não lhe dá. Não é a escrita que está aqui em causa, evidentemente, mas aquilo que não é, aquilo que poderia ser ou não, mas que não é e passa a ser daquele modo poderoso sobre nós “como seria” ou “poderia ter sido tão bom”… A palavra escrita tem o poder do invisível, o poder da liberdade infernal. Se é verdade que a poeta assenta os seus poemas num forte chão parmenidiano, ela mesma escreve “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” (p. 40), numa identificação entre ser e pensar (e pensa-se com palavras), também não é menos verdade que há um outro lado mais obscuro de entender a relação entre a palavra e o ser. Rita Taborda Duarte começa o seu poema “Quando muito é um cachimbo” – do qual também fazem parte os últimos versos citados – com este verso: “A palavra nunca é uma palavra, quando muito é um cachimbo (…)” (Ibidem) No mesmo poema em que inscreve a sua herança de Parménides, começa por dizer que a palavra está além ou aquém de si mesma. Sem dúvida, é uma tese metafísica, mas de carga contrária à do filósofo eleata. É então talvez chegado o momento de abordarmos o poema “Lá fiz o poema”, onde a poeta escreve aquilo que poderá ser o modo como ela se relaciona com o fazer do poema. Pode ser ou não, verdade é que, neste poema, é assim que o narrador se mostra na sua relação como o fazer do poema, dos poemas. Podemos estar certos de uma coisa: não é nada fácil encontrar um verbo que defina o “fazer do poema” que a poeta aqui nos traz. Leia-se primeiro o poema, para depois podermos entender melhor as dificuldades que a poeta nos arranjou, e algumas alegrias também, evidentemente: “Lá fiz o poema hoje sequer o escutei, primeiro, pois que nem estava dito ainda; os meus poemas não andam sumidos em silenciosinhos cúmplices, à espera de que eu chegue e venha resgatá-los. Nada me sussurra voz nenhuma de deus nenhum. E o meu silêncio sequer é um silêncio-metafórico a murmurar flores escondidas. É um silêncio silencioso silêncio oco: sem nada a declarar por dentro. E esse silêncio, é curioso, nunca me dita poemas. Mantém-se calado, tal lhe convém. Pura e simplesmente, o meu poema não estava em parte alguma, nem agasalhado em sossegos nem em qualquer sítio que se percebesse. Ou se lá estava tanto pior; que se havia um poema omnipresente embrulhado em silêncios em todo lado e em qualquer parte, outro o escutou o mostrou o fingiu o disse, outro, não eu, que a haver poema passou-me distraidamente ao lado. Portanto, resumindo, este poema que eu fiz nem sequer se encontrava inscrito no mundo por aí para que eu fosse lá e ao menos partisse as unhas escavando as pedras. Em lado nenhum. O poema que eu fiz não estava em parte nenhuma em nenhum lugar E tive de ser eu, com certeza, a massacrá-lo letra branca em tecla preta, a confiscá-lo ao teclado, sem a musa do outro arrastada pelo cachaço, e, em mangas de camisa, diria, não fora eu mulher e não usasse nunca nem a camisa nem as mangas nem o casaco. Sequer um cigarro onde pudesse ir fumando rimas por dentro das palavras. O meu poema tive de ser eu a escrevê-lo sozinha. E eu não escrevo como se tocasse piano, que o portátil não traz uma partitura, nem ninguém havia, lá, presente ausente para mo trautear. As teclas fazem barulho, sujam os dedos e nada tem mais micróbios do que um teclado, dizem. Foi, portanto, um mau poema: fiquei cansada e nem uma folha, ao menos, para amarfanhar.” (pp. 14-5) Para além da estrofe final do poema – do mau e do bom poema, de hoje nem podermos esmagar com as nossas mãos o mal que fizemos -, que seria um outro texto, interessa seguir a pista do que aqui temos seguido. O poema não foi escutado; o poema não veio do silêncio, nem de uma musa; o poema não foi escavado; não foi construído (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); e também não foi inventado (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); o poema não chega como uma composição e também não é a execução de uma partitura. O que sabemos do poema é: não estava em parte alguma antes, e teve de ser a poeta a escrevê-lo sozinha, num teclado, que tem mais micróbios do que qualquer coisa do mundo. Com este poema a poeta parece querer destruir a metafísica, que tanto acarinha ao longo dos seus poemas. Pois tudo em Rita Taborda Duarte excede a própria coisa: os corpos, as partes dos corpos (“qualquer coisa dos corpos fica ainda / ainda quando os corpos se levantam”), as palavras (“O desperdício sobrevindo da palavra”), as próprias coisas (“Só as rugas desta cama enxovalhada / nos perseguem as manhãs, pelo rosto dentro / como a teima de um poema por escrever.”). Tudo, não. Nem tudo excede o si mesmo que é. O fazer do poema é, ou parece ser, a parte não metafísica do mundo. Talvez se entenda melhor se pensarmos que para Rita Taborda Duarte tudo é metafísica, tudo é sempre mais do que é, tudo é o que é e o seu excesso, e a palavra é o lugar onde nós e o excesso nos encontramos. Pois mesmo em silêncio, a palavra arde. Ou dito muito melhor, com versos da poeta: “(…) E no quarto / entranhado na fibra dos lençóis, o cheiro forte e acre, / de uma palavra ardida.” E o fazer do poema é a única coisa concreta que há no mundo (não sabemos se pode ou não ser estendido a outras artes). Fazer um poema é tentar limpar a sujidade da palavra, mantendo nela a centelha ancestral e a vontade do que se quer dizer. Fazer um poema, aqui, neste livro sui generis, é como tudo o que o humano faz, isto é, aquilo que é mais concreto neste planeta: as acções. Só a acção não é metafísica, pois são todas elas éticas, de resto o planeta (adivinha-se o universo) é todo ele, na sua unidade e na multiplicidade dos seus elementos, um excesso de sentido, que a palavra mostra de um modo privilegiado. “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” Mesmo aquilo que vive apenas e só nos interstícios da palavra. É também um livro cheio de ironia, como se deve ter entendido pelos versos citados e, principalmente, pelos títulos dos poemas. Resta-me dizer uma ou duas coisas, antes de terminarmos com a voz da Rita Taborda Duarte: sublinhar que se trata de um livro precioso, onde a palavra é simultaneamente sujeito e objecto (por conseguinte para guardar onde se guardam os vinhos mais preciosos), e deixar um conselho ao leitor: se está a tentar deixar de fumar, não leia este livro. Excerto de “Alfabeto”: “Faço, então, a cama, aliso os vincos, bato a almofada entalo um gemido breve de palavra, o sinal da pulga, a pata da borboleta (ou era o veio esgarçado de uma asa ?), entalo o lençol puído no colchão e sacudo para o chão uma sílaba do teu corpo. Tua, sim. Não será minha: As minhas palavras são mais louras e compridas… Nunca saio à rua, sem esticar os lençóis à cama com a precisão de quem faz as manhãs todos os dias, de quem dá um jeito à vida, antes de se pôr a trabalhar. Uma cama bem feita vale bem um verso terminado, sem o desperdício das palavras que não rimam. Há que resgatar o gesto repetido, dia a dia, como quem cumpre a métrica precisa do poema; uma cama desfeita e ao desalinho é um sítio perigoso para deitar o corpo a descansar, lugar de roturas, ligamentos um passo em falso, tropeçado sem cuidado, e podemos dar um mau jeito ao coração.”