Isabel Castro VozesOs cobardes [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]erdi a conta aos textos que já escrevi sobre o assunto, mas aqui vai mais um, apesar de saber que a expressão da minha indignação é um exercício completamente inútil. Ainda assim. Há coisas que são difíceis de aceitar. O desprezo pelos mais fracos, por aqueles que não têm sequer a possibilidade de se defenderem, é uma delas. Ng Kuok Cheong sugeriu esta semana, na Assembleia Legislativa, a criação de mecanismos de caça aos ilegais. O deputado teve uma ideia: vamos lá fazer, todos juntos, cercos aos locais onde trabalha gente sem os papéis que a lei manda. De acordo com o esquema do auto-intitulado democrata, quando houvesse a suspeita de um trabalhador ilegal em determinado sítio, convocavam-se os residentes para cercar o espaço em questão. Só depois de se garantir que dali ninguém saía ou entrava é que se comunicava o facto às autoridades. Tudo isto em nome da defesa do operariado de Macau, o grupo de pessoas que tem a sorte – a sorte grande – de ter um BIR na mão. Não vale a pena sequer discutir a legalidade da proposta. A um ano das eleições legislativas, não espanta que comecem a surgir ideias peregrinas e, sobretudo, perigosas. Quem acompanha a retórica de alguns deputados à Assembleia Legislativa já se habituou aos disparates que por ali se dizem; daqui para a frente, há que aguentar, em dose dupla ou tripla, o registo da parvoíce. Sabemos bem que há um certo eleitorado que alinha neste tipo de pensamento porque, infelizmente, há uma certa Macau que continua com palas nos olhos que toldam a visão e outros sentidos. Ng Kuok Cheong está a fazer pela vida. Da pior maneira. O ilustre tribuno, com anos de Assembleia Legislativa suficientes para ter decorado, várias vezes, de cima para baixo e de baixo para cima, a Lei Básica de Macau, não é um homem valente. Não propôs cercos para outros tipos de crime. Não vai encabeçar um grupo de bons e legais homens que suspeitam que, num certo quarto de hotel, vivem duas ou três miúdas obrigadas a prostituírem-se. Não vai andar atrás do alegado agiota para descobrir se, no quarto de hotel ao lado do das miúdas, está um apostador caído em desgraça que dava tudo para voltar para casa, mas perdeu tudo numa mesa de um casino. Não, Ng Kuok Cheong não é um homem valente. Ou então há certos tipos de crimes que não o incomodam, porque não vendem. Afinal, os crimes relacionados com prostituição ou com dívidas de jogo raramente têm como vítimas residentes de Macau, com a sorte grande do BIR na mão. São crimes que não contam para efeitos eleitorais. Ng Kuok Cheong dispara, assim, sobre quem não tem modo de se defender: aqueles que não conseguem sequer obter autorização de trabalho. São tão miseráveis que nem sequer sabem que Ng Kuok Cheong fala deles na Assembleia, porque nem sequer sabem quem é Ng Kuok Cheong. Não vieram para Macau para roubar, explorar, matar. Andam por aí nas obras, às vezes caem de andaimes e partem pernas e o coração, a hipótese de uma vida menos miserável sai cara às viúvas e aos filhos e ao resto da família que deixaram para trás. Os trabalhadores ilegais são só trabalhadores – e ilegais porque o destino não teve mais para lhes dar. Acho muito bem que se combata o trabalho ilegal, porque resulta, a maioria das vezes, em situações de exploração. Mas o trabalho ilegal combate-se de outra forma, pelo castigo de quem, para pagar menos, emprega sem garantir as condições exigidas pela lei. O combate deve ser contra os mais fortes e não através do cerco aos mais fracos. Escrevi há uns anos que falta a pró-democratas e Operários – os dois grupos que perdem horas de sono com a mão-de-obra importada, ilegal e legal também – a capacidade de perceber que os trabalhadores que vêm de fora só deixarão de ser uma ameaça no dia em que se garantir que têm as mesmas condições que são dadas aos locais. Só quando estes dois grupos estiverem em pé de igualdade é que um empregador deixará de despedir um residente para dar trabalho a um não-residente que, neste momento, lhe sai mais barato. Inocência a minha. Pró-democratas e Operários sabem bem que é melhor continuar a disparar no alvo errado, naquele que não se mexe porque nem sequer sabe que está na mira. É um alvo fácil. O exercício não requer perícia e vai dando votos. Muitos votos.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesPERSPECTIVAS |A vida sem violência é um direito humano fundamental [drocap style=’circle’]A[/dropcap] ONU define a violência contra as mulheres como qualquer acto de violência de género que resulte, ou possa ter como resultado um dano físico, sexual ou psicológico para a mulher, incluindo as ameaças de tais actos, a coacção ou a privação arbitrária da liberdade, ocorrida em público ou em privado. A violência familiar refere-se ao comportamento do parceiro ou ex-parceiro íntimo, que causa dano físico, sexual ou psicológico, incluídas a agressão física, coacção sexual, abuso psicológico e os comportamentos de controlo. A violência sexual é qualquer acto sexual, a tentativa de consumar um acto sexual, ou outro acto dirigido contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coacção de outra pessoa, independente da sua relação com a vítima. A violência contra as mulheres é um problema grave de saúde pública, bem como uma violação flagrante dos direitos humanos da mulher. A nível mundial, uma em cada três mulheres, em todo o mundo, foram vítimas de violência física e/ou sexual do seu companheiro, ou violência sexual por pessoas diferentes do seu parceiro íntimo, em algum momento da sua vida. Ainda que, as mulheres possam ser expostas a muitas outras formas de violência, consta-se que uma elevada percentagem da população feminina mundial, senão na sua maior parte é vítima de violência doméstica. A maioria dos casos é violência infligida pelo seu parceiro íntimo. É de considerar que, em todo o mundo, quase um terço de todas as mulheres que tiveram um relacionamento de casal, referem ter sido vítimas de violência física e/ou sexual por parte do seu companheiro, e em algumas regiões, este valor pode ser muito superior. A nível mundial, cerca de 40 por cento do número total de homicídios femininos são cometidos pelo seu parceiro íntimo, o que mostra ser um cenário alarmante. As mulheres que têm sido vítimas de abuso físico ou sexual pelos seus parceiros íntimos, correm um maior risco de sofrer uma série de graves problemas de saúde. Assim, por exemplo, têm mais 16 por cento de probabilidades de dar à luz crianças com baixo peso, e mais do dobro de sofrer um aborto, ou quase o dobro de padecer uma depressão e, em algumas regiões, são uma vez e meia mais propensas a contrair o vírus do HIV, por comparação com as mulheres que não tenham sido vítimas de violência doméstica. A nível mundial, 7 por cento das mulheres foram agredidas sexualmente, por uma pessoa distinta do seu parceiro íntimo. Ainda que, exista menos informação sobre os efeitos da violência sexual não conjugal na saúde, da informação existente depreende-se que as mulheres que sofreram esta forma de violência, são 2,3 vezes mais propícias a desenvolver distúrbios relacionados com o consumo de álcool, e 2,6 vezes mais inclinadas, a sofrer de depressões ou ansiedade. Assim, existe a necessidade de redobrar os esforços em várias áreas, de forma a prevenir esta forma de violência, e oferecer os serviços necessários às mulheres que sofrem. A mudança assinalada na prevalência da violência dentro das comunidades, países e regiões, ou entre estes, põe em evidência que a violência não é inevitável, e que pode ser prevenida. Existem programas de prevenção promissores, que terão de ser testados e alargados, e há cada vez mais informação sobre os factores que explicam a modificação observada em todo o mundo. Tal informação, mostra a necessidade de abordar os factores económicos e socioculturais, que fomentam uma cultura de violência contra a mulher, incluindo a importância de interrogar as normas sociais que reforçam a autoridade, e a dominação do homem sobre a mulher, e aprovam ou toleram a violência contra as mulheres. É necessário reduzir o grau de exposição à violência na infância, reformar o direito da família, promover os direitos económicos, sociais e culturais da mulher, e acabar com as desigualdades de género no acesso ao emprego na economia formal e ao ensino secundário. É necessário também, prestar serviços às vítimas de violência. O sector da saúde deve desempenhar um papel mais importante, quando tenha de dar resposta à violência por parceiro íntimo e sexual contra a mulher. As novas directrizes clínicas e normativas sobre a resposta do sector da saúde à violência contra a mulher, revelam a necessidade urgente de integrar estas questões na educação clínica. É importante que todos os prestadores de cuidados saúde entendam que a exposição à violência e má saúde das mulheres estão intimamente relacionadas, e que podem dar respostas adequadas, sendo um aspecto fundamental, o de encontrar oportunidades para oferecer apoio e encaminhar as mulheres a outros serviços que carecem, como por exemplo, quando as mulheres procuram acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, como o cuidado pré-natal, planeamento familiar, pós-aborto, serviços de rastreio do vírus HIV, saúde mental ou de urgência. A disponibilidade de serviços complementares de cuidado às vítimas de violações, deve ser assegurado, e o acesso aos mesmos numa escala maior que a existente na maior parte dos países. A violência contra a mulher, especialmente a exercida pelo seu parceiro íntimo e a violência sexual, são um grave problema de saúde pública e uma violação dos direitos humanos das mulheres. É de notar que o baixo nível de instrução, abuso infantil, exposição a cenas de violência na família, uso nocivo do álcool, atitudes de aceitação da violência e as desigualdades de género, são factores associados a um maior risco de serem cometidos actos violentos. Os factores associados ao aumento da possibilidade de ser uma vítima do parceiro íntimo ou de violência sexual, incluem um baixo nível de educação, a exposição a cenas de violência entre os pais, abuso durante a infância, atitudes de aceitação da violência e desigualdades de género, e em famílias de altos rendimentos, existe informação que permite mostrar que os programas escolares de prevenção da violência por parceiro íntimo, ou violência na fase de namoro entre os jovens podem ser eficazes. As estratégias de prevenção primária nas famílias de baixos rendimentos, parecem ser prometedoras, como sejam, o microfinanciamento conjuntamente, com a formação em igualdade de género e as iniciativas comunitárias direccionadas contra a desigualdade de género, ou inclinadas a melhorar a comunicação e aptidões para as relações interpessoais. As situações de conflito, pós-conflito e deslocamento podem agravar a violência, como a violência por parte do parceiro íntimo, e originar formas adicionais de violência contra as mulheres. A violência do parceiro íntimo e a violência sexual são cometidas na sua maioria por homens, contra mulheres e crianças do sexo feminino, ainda que o oposto tenha vindo a aumentar. O abuso sexual infantil afecta crianças do sexo feminino e masculino. Os estudos realizados demonstram que aproximadamente 20 por cento das mulheres e 5 a 10 por cento dos homens, referem ter sido vítimas de violência sexual na infância. A violência entre os jovens, que inclui também a violência doméstica é outro sério problema. As crianças que crescem em famílias, em que existe violência, podem sofrer diversos transtornos de comportamento e emocionais. Estes transtornos, podem associar-se também, à acção ou ao sofrimento de actos de violência, em fases posteriores da sua vida. A violência doméstica também está associada a maiores taxas de mortalidade e morbilidade em menores de cinco anos. Os custos sociais e económicos deste problema são enormes, e repercutem-se por toda a sociedade. As mulheres podem ficar numa situação de isolamento e impossibilitadas de trabalhar, perder o seu emprego ou salário, deixar de participar nas actividades diárias, e ver diminuídas as suas forças físicas e anímicas para cuidar de si e dos seus filhos. Existem poucas intervenções actualmente, em muitos países, cuja eficácia tenha sido demonstrada por meio de estudos bem delineados e revelados à sociedade. É necessidade urgente a existência de mais recursos para reforçar a prevenção da violência pelo parceiro íntimo e a violência sexual, sobretudo no campo da prevenção primária, para impedir que se produza o primeiro episódio. Quanto à prevenção primária, existe alguma informação correspondente a países de altos rendimentos, que sugerem que os programas escolares de prevenção da violência nas relações de namoro são eficazes. Todavia, não foi avaliado a sua possível eficácia em meios de recursos escassos. A fim de propiciar mudanças duradouras, é importante que se façam leis e se formulem políticas que protejam a mulher, combatam a discriminação da mulher, fomentem a igualdade de género e ajudem a adoptar normas culturais mais pacíficas. A resposta adequada do sector da saúde pode ser de grande ajuda para a prevenção da violência contra a mulher. A sensibilização e a formação dos prestadores de serviços de saúde e de assistência social constituem outra estratégia importante. Abordar de forma integral as consequências da violência e as necessidades das vítimas supervenientes requer uma resposta multissectorial. Estas considerações são defendidas com maior veemência no relatório da Organização Mundial de Saúde “Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence” de 2013. O relatório apresenta a primeira revisão sistemática e resumo de todas as informações científicas sobre o predomínio de duas formas de violência contra as mulheres, nomeadamente a violência pelo parceiro íntimo ou violência doméstica e a violência sexual infligida por outra pessoa, que não seja o parceiro íntimo, e denominada por violência sexual não conjugal. As previsões agregadas a nível mundial e regionais do predomínio destas formas de violência, obtidas a partir de informações demográficas mundiais recolhidas de forma sistemática foram apresentadas no relatório, pela primeira vez. As conclusões do relatório são impressionantes e devem ser tidas em conta na feitura das leis sobre a matéria. O relatório salienta que a violência contra a mulher é um fenómeno omnipresente em todo o mundo e transmite a forte mensagem que não se trata de um pequeno problema que afecta apenas alguns sectores da sociedade, mas também, de um problema de saúde pública mundial de proporções epidémicas, que requer a adopção de medidas urgentes. A “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, denominada de “Carta Internacional dos Direitos da Mulher”, foi adoptada pela ONU, a 18 de Dezembro de 1979, e entrou em vigor 3 de Setembro de 1981, sendo seguida da “Declaração Sobre A Eliminação Da Violência Contra As Mulheres” da ONU, de 20 de Dezembro de 1993. A “Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica” foi adoptada, em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e entrou em vigor a 1 de Agosto de 2014. O seu principal objectivo é o de prevenir e averiguar os actos de violência sobre as mulheres em geral, e a violência doméstica, em particular. É de realçar que a “Lei da Violência Doméstica” da China, entrou em vigor, a 1 de Março de 2016. É necessária uma intervenção a nível mundial, pois uma vida sem violência é um direito humano fundamental inerente a todos os homens, mulheres e crianças. Jorge Rodrigues Simão
André Ritchie Sorrindo Sempre VozesO português em Macau [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]i com algum interesse o artigo neste jornal sobre a tese da doutoranda Vanessa Amaro que se debruçou sobre os padrões de comportamento dos portugueses em Macau. (*) Naturalmente, quando se faz um estudo dessa natureza não é de todo inesperado que os resultados obtidos desencadeiem discussões agrestes, conforme se constata no próprio website do Hoje Macau onde o dito artigo pode ser lido. Generalizar é sempre perigoso – mais ainda quando (1) o universo de inquiridos se limita a um pequeno grupo de 60 portugueses e (2) o público é incapaz de interpretar de forma devida os resultados do estudo. Não se pretende com esse comentário tirar mérito ao trabalho feito o qual, conforme acima referido, me despoletou curiosidade por se tratar de um tema bastante interessante. O importante, parece-me, é ter-se consciência de que se trata de um estudo assim talhado e que, por isso, não querendo colocar em causa os resultados obtidos e as conclusões tiradas pela autora, há que aceitar que logo ao virar da esquina poderemos encontrar um português aqui em Macau com um comportamento diametralmente oposto. Dito isso, vou deixar aqui algumas considerações sobre o que me pareceu mais intrigante, esclarecendo-se desde já que o faço apenas com base no artigo do jornal, cujas passagens vou transcrever. O carácter temporário “Uma coisa comum é que todos pensam Macau como uma coisa muito temporária (…), nunca compraram casa, não aprenderam chinês porque sempre tiveram a intenção de um dia ir embora.” Já estivemos pior – se é que se possa considerar o “carácter temporário” uma coisa má. O que é certo é que antes da transferência de soberania esse “carácter temporário” era muito mais forte pois o português vivia Macau num cenário de contagem decrescente. Contudo, as coisas estão a mudar. Frequentemente assisto a conversas entre pais portugueses sobre a educação dos filhos e preocupações com a língua chinesa, não descartando a possibilidade de um futuro em Macau. Não significa que se tenha descartado o “carácter temporário”. Quando muito, abandonou-se a ideia do regresso já agendado. É claro que existem sempre uns ilustres que assumidamente não gostam de cá estar, mas que aqui estão porque, enfim, não têm outra alternativa. Mas há também outros recém-chegados que gostam genuinamente de cá estar e não sentem necessidade de planear uma eventual saída. E isto para não falar daqueles que já aqui estão há uma data de anos, já se multiplicaram, e que não se conseguem imaginar a viver noutro sítio tão cedo. Alguns, mesmo já reformados, são incapazes de deixar Macau para sempre: passam umas temporadas cá e outros lá, vêm e vão conforme a saudade lhes aperta – seja ela em que sentido for. Rejeição do termo emigrante “Outro denominador comum é a recusa do termo emigrante para definir um português que vive em Macau, por ser pejorativo.” Esse comportamento não se restringe apenas aos portugueses. Em geral, muitos que aqui estão, portugueses ou não, preferem a expressão “expatriado”, precisamente para evitar o cunho negativo que a expressão “emigrante” traz consigo. No entanto, já me parece mais grave quando se lê no artigo que os portugueses em Macau poderão considerar “(…) uma ofensa colocá-los em pé de igualdade como outras comunidades, como os filipinos (…)” e que terá a ver com “(…) a necessidade de a comunidade se tentar posicionar como elite.” É um facto que alguns têm essa mentalidade da elite, talvez fruto de um certo orgulho ferido. Contudo, e curiosamente, é também após a transferência de poderes que se observa em Macau a presença de portugueses com condições de trabalho e formas de vida não muito diferentes das dos nossos amigos da comunidade filipina. Portanto, ainda que existam os tais com a mania da elite – e felizmente não serão muitos, seguramente uma minoria – há também outros que têm uma postura admiravelmente humilde. E finalmente: a bolha “(…) a bolha em que vivem alguns portugueses, que adoptaram a ideia de que podem fazer a sua vida sem ter de aprender chinês (…), fecham-se nos seus grupos e fazem toda a sua vida no circuito português.” A bolha existe sim. E a língua é o factor principal. Questionou-me um dia um amigo meu da faculdade, que já aqui esteve por duas vezes, por que razão não falam chinês os portugueses em Macau. Dizia ele – com razão – que o português que fixe residência em qualquer outro país que seja aprende sempre a falar a língua local. A minha resposta? Este é um assunto para ser tratado com pinças e não quero (voltar) a ser mal interpretado e, como tal, limito-me a dizer o seguinte: tive o privilégio de ser educado desde muito cedo a aceitar de forma objectiva a transferência de soberania. Por essa razão hoje, na qualidade de português de Macau e em Macau, vivo harmoniosamente na RAEM sem complexos. Há coisas que levam tempo a mudar – estamos a falar de uma alteração profunda de mentalidade. E, analisando bem as coisas, a RAEM existe há apenas 16 anos. É preciso dar tempo ao tempo. Sorrindo Sempre Voltou à carga o nosso amigo Roy Eric Xavier. Como se não bastasse a birra que fez no passado quando instituições locais lhe recusaram o apoio para um projecto pessoal, agora, por alguma razão, decidiu acusar os líderes da comunidade macaense de miopia cultural. (**) As bombas que o senhor doutor lança sazonalmente já se tornaram habituais e a malta até já encolhe os ombros. Tal como o cão do vizinho que ladra sempre que alguém passa por perto – era preferível que não ladrasse, mas como está fechado dentro de casa e atrás da porta, também já pouco nos importamos. Melhor de tudo continua a ser a sua definição de Macaense – o tal International Macanese – que, confesso, ainda hoje fui incapaz de compreender. E mais baralhado fiquei depois de ler as suas últimas declarações: os Macaenses são “(…) os portugueses euroasiáticos (…) nascidos em Macau ou os descendentes de portugueses euroasiáticos nascidos ou com ligações familiares a Portugal, Goa, Índia Ocidental, sul da China (…) Japão, Malásia, Indonésia ou Timor”. (***) Com definições assim, não admira o senhor doutor considerar os líderes da comunidade Macaense uns míopes culturais. Porque afinal o mundo está cheio de Macaenses – de Portugal a Timor e até mesmo no Japão, os porutugaru kei nihonjin são também Macaenses, a Tina Yuzuki é também Macaense – mas por alguma razão ninguém os reconhece como tal, ninguém os consegue ver. Mas, tal como os extra-terrestres que a pouco e pouco vão colonizando o planeta Terra sem nos apercebemos – they are out there. (*) Hoje Macau, edição de 29 de Fevereiro de 2016 (**) JTM, edição de 25 de Fevereiro de 2016 (***) JTM, edição de 1 de Março de 2016
André Ritchie Sorrindo Sempre VozesRebeldes do Yu Tan [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]ambém fui rebelde na minha juventude. Participei em manifestações estudantis. Gritei slogans de protesto e dei murros no ar. Defendi os meus ideais com firmeza e nunca fugi das discussões que, sabia de antemão, acabavam em confronto e luta. Para marcar a minha posição utilizava consciente e propositadamente argumentos desmesurados. Fazia-me de desentendido quando os meus adversários esclareciam os seus pontos de vista. Extrapolava do discurso deles o que verdadeiramente não tinham dito, mas tomava como palavras suas que utilizava depois para pôr em causa o que diziam. Explorava as contradições por mais irrelevantes que fossem para o assunto em discussão. Era agressivo e aguerrido. Tinha sangue na guelra. Mas a minha agressividade limitava-se às palavras. Nunca bati em ninguém. * * * Na minha juventude tinha amigos que eram contra o capitalismo, o corporativismo, as empresas multinacionais, os governos, enfim, todas as grandes organizações que, no entendimento deles, exploram os mais fracos, controlam as massas para atingir fins ilegítimos e, em geral, praticam o mal e contribuem para a injustiça no mundo. Em casa dos meus amigos ouvia-se Bob Marley, Ben Harper e Rage Against the Machine. Tinham também uma cassette com baladas do tempo da revolução cubana e temas que homenageavam Che Guevara. Um dos meus amigos enveredou-se pela política e de vez em quando vejo-o na televisão. É inteligente e eloquente, tem um discurso fluido. Mas na sequência das últimas eleições sou capaz de o ver menos. Um outro amigo decidiu adoptar um modo de vida alternativo. De vez em quando falamos pela internet e não compreende como é que fui capaz de trabalhar os anos que trabalhei para o governo, ocupando a posição que ocupei. E diz que muito menos me compreende agora, uma vez que trabalho na empresa onde trabalho. Diz-me que chegou a recusar boas ofertas de trabalho porque os empregadores eram grandes organizações que lhe metem nojo. Não deve ser mentira porque se trata de um sujeito com boa formação, bases sólidas e muito boa cabeça. Aliás, sempre o tive como um indivíduo acima da média. E admiro-o por conseguir viver pacificamente e coerentemente à sua maneira, sem ter de trair nem impor os seus ideais. * * * Gosto muito de yu tan (*). No mercado existem, essencialmente, três tipos de yu tan: o branco, o amarelo e o dourado. Não tenho nenhuma preferência porque para mim são todos bons. O yu tan faz parte da minha infância. Quando era miúdo, ia frequentemente com a minha empregada ao mercado do Há Van Kai (Manduco). Os vendilhões de lá tinham o que, para mim, eram os melhores yu tan de Macau. Nesses tempos era também vulgar em Hong Kong a utilização da expressão yu tan mui (**) para designar uma categoria particular de prostitutas. Não vou explicar a razão de ser dessa expressão por ser aqui inapropriado. Mas o que é certo é que essa expressão – e a yu tan mui também – caiu entretanto em desuso. Mas o yu tan em si sobreviveu aos tempos e ainda hoje é popular. Prova disso é que esse petisco pode ser saboreado não apenas nos vendilhões de rua, mas também em inúmeras lojecas que foram surgindo em diversos cantos da cidade e ainda nas lojas de conveniência: o Circle K e o 7 Eleven desde cedo se aperceberam do seu potencial, incluindo-o nas suas ementas de fast food. Portanto, ninguém duvida que o yu tan faz parte da cultura popular de Macau e Hong Kong e que, por isso, deve ser protegido. * * * O que se passou em Mong Kok foi um perfeito disparate. Um grupo de anarquistas pseudo-defensores da democracia que pegam no yu tan como pretexto para criar um motim orquestrado via redes sociais. E com a agravante de ser em pleno Ano Novo Chinês – que laia de gente é essa? Inicialmente era em defesa dos vendilhões ambulantes. Mas esses esclareceram desde logo que nada tinham a ver com a confusão e que não se faziam representar pelos anarquistas. Estavam apenas interessados em vender yu tan e fazer algum dinheiro extra nos dias do Ano Novo Chinês. E mais nada. Depois já eram as questões políticas, económicas e sociais de Hong Kong. O problema da habitação, a distância cada vez maior entre os ricos e os pobres, a falta de democracia, o sufrágio universal… Essas coisas. Dias a seguir as justificações passaram a ser ainda mais indeterminadas: a incompetência do CY, as interferências de Pequim nos assuntos internos de Hong Kong, a frustração acumulada da população, a marginalização da geração mais jovem. Finalmente a cereja no topo do bolo: a incapacidade do governo em ouvir a voz da população na sequência do Occupy Central. Tudo isto é dito por sábios com ar filosófico e a olhar de lado para a câmara. Devo ser tosco e obtuso pois nada disso para mim faz sentido. Quem me dera ser um pensador profundo como muitos desses sábios que andam por aí para conseguir compreender essas explicações todas. Confesso que tive alguma dificuldade em alcançar o Occupy Central. Pelo que essa Revolução do Yu Tan custa-me ainda mais compreender. Muito mais. Porquê? Porque o que vejo é uma cambada de ignorantes e sujeitos deficientemente formados que nem falar direito sabem e que procuram justificar os seus actos de puro vandalismo e cobardia com discursos incoerentes e raciocínios desarticulados, minados de contradições. Uma cambada de imbecis que se aproveitaram da contínua atitude submissa das autoridades. Atitude essa que, progressivamente, levou a que se permitisse atirar bananas dentro da Legco, bem como outros excessos e atropelos que passaram a ser vulgares. Com medo de serem condenados pela população, antes de actuar contra multidões irracionalmente agressivas a polícia até precisa de exibir um cartaz onde se lê “Stop Charging or We Use Force”. Uma luta desigual porque os anarquistas podem fazer e dizer tudo o que lhes apetece e lhes vem à cabeça. No entanto a polícia é prontamente condenada pelo uso excessivo da força por causa de um inofensivo gás pimenta ou por ter dado uma ou outra bastonada a mais. (Tal como nas minhas consultas públicas do passado em que se tolerava que fosse insultado pelo povão, mas que tinha ainda assim de mostrar um sorriso e dizer “muito obrigado pela sua valiosa opinião”, pois seria imediatamente crucificado se me atrevesse a responder à letra ou a humilhar alguém à frente das câmaras pela idiotice técnica da opinião que o Zé da esquina me dava). Ao que já chegámos. Portanto, caríssimo leitor, ainda que não seja do meu estilo colocar as coisas em termos absolutos e redutores, e mesmo não negando que Hong Kong tem de facto problemas profundos que afectam a população e sobre os quais o governo parece não ter soluções, tenho a dizer que para mim esses “Scholaristas” e “Localistas” não são mais que um bando de oportunistas políticos sem qualquer solidez intelectual e que, só por isso, não me convencem e não merecem o meu mínimo respeito – à semelhança de uns quantos pseudo-políticos aqui do nosso Macau. Contudo, pior que isso tudo é aperceber-me que, em geral, as pessoas são incapazes de analisar esses acontecimentos de forma objectiva, sem a interferência de preconceitos – actualmente parece que só se pode ser integralmente e fervorosamente a favor ou contra. Com isso tudo, posso apenas concluir que existe algo de fundamentalmente errado em Hong Kong nos dias que correm. E, até certo ponto, em Macau também. Sorrindo Sempre O anarquista Ray Wong Toi-yeung, representante do movimento “Localists” de Hong Kong, afirmou numa entrevista que atirar calhaus contra a polícia não é um acto violento. Sorrindo sempre. (*) 魚蛋 : bola de peixe ou fishball, petisco de rua típico do Sul da China. (**) 魚蛋妹 : menina do yu tan, em tradução directa.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO direito fundamental dos idosos à saúde [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] “Pesquisa Económica e Social Mundial 2007”, sobre o “Desenvolvimento do Envelhecimento da População Mundial”, elaborado pela ONU, menciona que o aumento da esperança de vida e a redução das taxas de fertilidade, são os principais factores que determinam a “transição demográfica”. À escala mundial, a esperança de vida passou de 47 anos, entre 1950 e 1965 para 65 anos, entre 2000 e 2005, e deverá atingir os 75 anos, entre 2045 e 2050. Assim, as pessoas podem pela primeira vez, esperar viver mais que os 65 anos. A maior esperança de vida, adicionada às importantes quedas das taxas de fecundidade é a causa do rápido envelhecimento das populações de todo o mundo. As mudanças são grandiosas e as implicações enormes, pois uma criança nascida em diferentes latitudes quer seja no Brasil ou em Myanmar, em 2015, pode esperar viver mais vinte anos, que uma criança nascida há cinquenta anos. É notável que na República Islâmica do Irão, em 2015, uma pessoa, em cada dez, tenha sessenta anos. Esta taxa terá aumentado para um em cada três, em apenas trinta e cinco anos, sendo o ritmo de envelhecimento da população muito mais rápido que no passado, pois uma vida mais longa é um recurso extremamente valioso, permitindo a oportunidade de repensar, não apenas, como viver a velhice, mas também como poderia desenvolver-se toda a nossa vida. O curso da vida, em muitas partes do mundo, por exemplo, circunscreve-se a um conjunto rígido de fases, como a primeira infância, os anos escolares, um período definido de anos de trabalho e a reforma. A partir desta perspectiva, é costume dar como aceite que os anos adicionais, simplesmente são acrescentados ao final da vida, permitindo uma reforma mais prolongada. Todavia, existem estudos que demonstram que muitas pessoas reconsideram este enquadramento das suas vidas, à medida que cada vez mais pessoas vivem até uma idade avançada. Pensam em mudança, e passar os anos adicionais de outra forma, talvez em continuar os estudos, iniciar uma nova actividade ou dedicar-se a um passatempo abandonado há muito tempo. É de considerar que as pessoas mais jovens esperam viver mais tempo, podendo planear as suas vidas de forma diferente, como por exemplo, em primeiro lugar, dedicar mais tempo à constituição de uma família e depois, pensar na melhoria da sua carreira profissional. Alcançar uma maior longevidade dependerá, em grande medida, de um factor chave que é a saúde. Se as pessoas vivem esses anos adicionais, com um bom estado de saúde, a sua capacidade para realizar o que valorizam, será apenas diferente de uma pessoa mais jovem. Porém, se os anos adicionais se caracterizarem por uma diminuição da capacidade física e mental, as consequências para os idosos e para a sociedade serão muito mais negativas, pese o facto, que por vezes, faz julgar que o aumento da longevidade, vem acompanhado de um período prolongado de boa saúde, mas lamentavelmente existem poucas provas de que os idosos, actualmente, gozem de melhor saúde que os seus pais quando tinham a mesma idade. A falta de saúde não tem de ser uma característica predominante da idade avançada. A maioria dos problemas que enfrentam os idosos está associada a doenças crónicas, em particular, doenças não transmissíveis que se podem prevenir ou retardar, com a adopção de hábitos saudáveis, e outros problemas de saúde podem ser tratados se forem detectados a tempo. As pessoas que sofrem de incapacidade física podem ter uma vida digna e de permanente crescimento pessoal em condições favoráveis e adequadas. O mundo infelizmente, está muito afastado desses ideais paradigmáticos. O envelhecimento da população exige uma resposta integral de saúde pública, e não se tem discutido o suficiente para encontrar as respostas adequadas, acrescentado do facto de existirem poucos dados empíricos do que se poderia fazer, o que não significa nada fazer de imediato, pelo que é urgente passar à acção. As mudanças que constituem e influenciam o envelhecimento são complexas, e no plano biológico, o envelhecimento está associado com a acumulação de uma grande variedade de danos moleculares e celulares, e com o tempo reduzem gradualmente as reservas fisiológicas, aumentando o risco de muitas doenças e diminuindo, em geral, a capacidade intrínseca do indivíduo. A longo prazo sobrevêm a morte, pelo que tais alterações não são nem lineares, nem uniformes e só se associam vagamente com a idade de uma pessoa, após decorridos alguns anos. A idade avançada com frequência trás alterações consideráveis, para além das perdas biológicas. Trata-se de alterações nas funções e atitudes sociais e na necessidade de enfrentar a perda das relações mais estreitas. Os idosos, perante esta situação, concentram-se em atingir menos objectivos e actividades, mas dedicam-se aos que sejam mais significativos, além de optimizar as suas capacidades, através da prática e recurso a novas tecnologias, compensando a perda de algumas aptidões, com outras formas de realizar tarefas. Assim, os objectivos, prioridades e preferências, também parecem mudar. Ainda que, algumas dessas alterações possam ser o resultado da adaptação à perda, outros reflectem o desenvolvimento psicológico, permanente em idade avançada, que pode estar associado com o desenvolvimento de novos papéis, ponto de vista e vários contextos sociais interligados. As alterações psicológicas podem explicar o motivo porque em muitas sociedades a velhice, pode ser um período de bem-estar subjectivo agudo. É importante que ao elaborar uma resposta de saúde pública ao envelhecimento, não apenas sejam consideradas estratégias que contrariem as perdas associadas com a idade avançada, e que reforcem a resiliência e o crescimento psicossocial. A sociedade, apesar de não existir um idoso típico, muitas das vezes encara-os de forma estereotipada que pode induzir à discriminação de pessoas ou grupos, apenas pela sua idade, denominada de discriminação por motivos de idade, e é possível que actualmente, seja uma forma mais generalizada de discriminação que o sexismo ou o racismo. O conceito generalizado e relacionado com a velhice, é o de que as pessoas idosas são dependentes ou representam uma carga, fazendo que, aquando da formulação das políticas sociais, se entenda que a despesa com os idosos seja apenas uma sangria para as economias e se dê ênfase à contenção de custos. As conjecturas acerca da dependência devido à idade ignoram as numerosas contribuições que os idosos fazem para a economia. O Reino Unido realizou uma investigação, em 2011, e calculou que depois de compensar os gastos das pensões, bem-estar social e saúde com as contribuições realizadas através de impostos, despesas de consumo e outras actividades de valor económico, os idosos faziam uma contribuição líquida à sociedade de quase quarenta mil milhões de libras, e que atingirá setenta e sete mil milhões de libras em 2030. Ainda que, não existam muitos dados disponíveis dos países com baixo e médio rendimento, a contribuição dos idosos é significativa. A idade média dos pequenos agricultores do Quénia, por exemplo, ultrapassa os 60 anos. As pessoas idosas podem ser fundamentais para manter a segurança alimentar no Quénia e em outros locais da África Subsariana, realizando também, uma função crucial de apoio a outras gerações. A Zâmbia calcula que um terço das idosas, são as que provêem e cuidam das crianças, cujos pais faleceram devido à epidemia do VIH, ou emigraram para trabalhar. Assim, em todos os meios, sem contar o nível dos recursos, os idosos contribuem de diversas formas que são menos tangíveis economicamente, ao prestar apoio emocional em momentos de ansiedade ou aconselhar sobre problemas de difícil resolução. As políticas sociais devem ser desenhadas de forma a fomentar a capacidade dos idosos, para que realizem estas múltiplas contribuições. O envelhecimento da população aumentará a despesa na saúde, mas não tanto como se pensava, existindo a ideia de que as necessidades crescentes do envelhecimento das populações darão lugar a um aumento insustentável das despesas na saúde. O panorama, não é tão claro, porque ainda que a idade avançada seja associada, em geral, com maiores necessidades de assistência sanitária, a relação entre a utilização do sistema de saúde e a despesa na saúde é variável. A despesa na saúde por pessoa, em alguns países de altos rendimentos, reduz-se de forma considerável depois dos 75 anos, enquanto aumenta o custo em cuidados a longo prazo, dado que cada vez mais pessoas chegam a idades avançadas, permitindo que tenham uma vida longa e saudável, podendo aliviar as pressões inflacionárias com os gastos na saúde. O sistema de saúde influi em grande medida na relação entre a idade e a despesa na saúde. É muito provável que essa influência reflicta as diferenças nos sistemas, incentivos e abordagens das intervenções dos prestadores no que diz respeito aos idosos com saúde débil e normas culturais, sobretudo acerca do momento da morte. O período de vida relacionado com os maiores gastos na saúde, sem importar a idade que se tenha, corresponde ao último ano, ou dois últimos anos de vida, sendo que esta relação varia consideravelmente, entre os países, sendo por exemplo, de 10 por cento do total de gastos na saúde na Austrália e Holanda, e de 22 por cento nos Estados Unidos, devido aos cuidados de pessoas no último ano da sua vida. O aumento dos custos associados aos últimos anos de vida, parece ser menor nos grupos de idade mais avançada, que nos grupos de menor idade. Prever os gastos futuros na saúde a partir da idade da população tem um valor questionável. É de ter em conta que algumas investigações históricas, somam-se a estas interrogações, ao indicar que o envelhecimento tem muito menos influência nos gastos da saúde que outros factores. Os Estados Unido, viveram um período, entre 1940 e 1990, em que se deu o envelhecimento da população mais rápido de sempre, contribuindo em 2 por cento para o aumento dos gastos na saúde, enquanto as mudanças relacionadas com a tecnologia, foram responsáveis entre 38 por cento e 65 por cento. As despesas nos sistemas de saúde, os cuidados a longo prazo e maiores condições favoráveis são usuais serem apresentados como custos. A visão deve ser diferente. Estas despesas devem ser consideradas como investimentos que desenvolvem a capacidade, e portanto, o bem-estar e a contribuição dos idosos e ajudam as sociedades a cumprir as suas obrigações no que diz respeito aos direitos fundamentais dessas pessoas. O retorno desses investimentos, em alguns casos é directo, pois melhores sistemas de saúde permitem melhores condições de saúde, que por sua vez favorece a participação e o bem-estar; em outros casos, o retorno pode ser menos óbvio, porque requer a mesma atenção. O investimento nos cuidados de saúde, por exemplo, a longo prazo ajudará as pessoas idosas, com perda significativa da capacidade a manter uma vida digna, podendo permitir também, que as mulheres possam trabalhar, além de incentivar a coesão social, ao partilhar os riscos dentro da comunidade. O repensar da justificação económica para esta forma de agir, desloca a discussão da visão típica de minimizar os ditos custos, que violam os direitos fundamentais não apenas dos idosos, mas de toda a população, para uma análise que tem em conta os benefícios que se podem perder, se as sociedades não conseguirem fazer as adaptações e os investimentos adequados. Quantificar e considerar rigorosamente a magnitude dos investimentos e dividendos que produzem, será crucial para que os responsáveis pela tomada de decisões, concebam políticas bem fundadas, que são também, uma das preocupações e recomendações da Organização Mundial de Saúde, reiteradamente efectuada, e de novo consubstanciado no relatório “Health in 2015: from MDGs, Millennium Development Goals to SDGs, Sustainable Development Goals”, de 8 de Dezembro de 2015 aos Estados-membros, e que muitos paradoxalmente, continuam a fazer ouvidos de mercados, não apenas nesta matéria, como em todas as outras.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesUma palavra aos mais jovens [dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m certo jovem regressou a Macau depois de ter terminado os estudos em Taiwan. Como pretendia iniciar actividades de cariz social, pediu-me que o recebesse para escutar a minha opinião sobre o assunto. Fico sempre feliz por poder aconselhar e apoiar jovens estudiosos e empenhados em intervir socialmente. Numa pequena cidade como Macau, com mais de 500.000 habitantes, as relações interpessoais são de certo modo complexas, especialmente quando se trata de falar sobre os interesses de cada um, pode haver lugar a mal-entendidos. É por isso necessário que nos preparemos mentalmente, caso contrário podemos provocar o efeito contrário do desejado. Quando recebi este jovem, a primeira pergunta que lhe coloquei foi “o que é que o leva a desejar envolver-se socialmente?” Respondeu-me que desejava alargar os seus conhecimentos para estar mais bem preparado para o futuro. Penso que esta é a resposta correcta, basta recordarmos a palavras do Dr. Sun Yat-sen, quando aconselhava os jovens a “envolverem-se em projectos grandiosos em vez de apenas ambicionarem a cargos oficiais”. Era uma forma de admoestação, ao alertar os jovens para não se deixarem fascinar por cargos superiores, muito bem pagos, esquecendo as intenções originais, que seriam servir o povo. A este jovem lembrei a quatro metas ontológicas definidas por Zhang Zai, um estudioso chinês da Dinastia Song, a serem alcançadas por todos os intelectuais. A formação superior deverá “levar as pessoas a agirem de forma benevolente, para mostrar ao cidadão comum um caminho a seguir e provocar a sua admiração, respeitar e desenvolver os ensinamentos dos mestres ancestrais (ex. Confúcio e Mêncio), e lançar as bases para que as gerações seguintes desfrutem de uma paz duradoura”. Em Setembro de 2006, quando o ex-Primeiro Ministro Wen Jiabao visitou a Europa, durante uma entrevista citou estas palavras de Zhang. É sempre mais fácil falar sobre ideais do que realizá-los. As dificuldades que se encontram neste percurso não serão tanto motivadas por razões de ordem externa, mas mais por razões de ordem interna, trata-se sobretudo de vontade pessoal e perseverança. Quando alguém decide participar socialmente, quer seja a nível do serviço público quer seja a nível de uma organização privada, quanto maior for o seu envolvimento, mais elevada a sua posição e mais importante a natureza do seu trabalho, tanto maior será a pressão com que terá de lidar e, igualmente, maiores serão as tentações com que se irá deparar. Se não possuir grande fé nas suas convicções, pode facilmente deixar-se ir ao sabor da corrente e os seus ideais verem-se consumidos pela “feira das vaidades” do dia-a-dia. Mesmo a faca mais afiada acabará por ficar romba se “pensar” que não precisa dos cuidados do amolador. Quem quiser envolver-se social e politicamente terá de estar em alerta constante. É importantíssimo que se atenha à sua fé e às suas virtudes. Quando pessoas talentosas, mas sem qualidades morais, sobem ao Poder provocam mais danos que benefícios. Assim, as virtudes são um pré-requisito para o trabalho social e político. São sem dúvida de louvar todos os jovens que pretendam dedicar-se a um trabalho em prol do bem comum. Mas antes de se envolverem, devem estar muito bem preparados, para saberem lidar eficazmente com desafios e adversidades futuras. As palavras de Zhang têm servido de orientação aos intelectuais chineses ao longo de milhares de anos. Sob estes ensinamentos, dispõem-se a sacrificar-se pelo bem comum. Não procuram ganhos pessoais, colocam sempre o bem-estar do povo em primeiro lugar. Esta atitude incorpora os princípios de lealdade e tolerância da doutrina de Confúcio, e os princípios do amor universal e do “caminho” defendidos por Mêncio. Como nos últimos tempos a cena política macaense tem estado confrontada com diversas questões problemáticas, os jovens devem tentar ser observadores destas situações, analisá-las e aprender com elas, já que depois de “entrarmos na montanha” deixamos de conseguir ver a montanha como ela é.
Sérgio de Almeida Correia VozesAinda faltava a cereja no topo do bolo [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] final do mandato do Prof. Cavaco Silva coincide, grosso modo, com a passagem do 16.º aniversário da transferência de administração de Macau para a R. P. da China, que se celebrará em 20 de Dezembro. Entendeu o Presidente da República (PR) aproveitar a ocasião para oito anos depois da saída de Jorge Sampaio, em jeito de despedida e ajuste de contas com o antecessor, atribuir ao último governador de Macau a mais elevada condecoração nacional. Contra o que o bom senso recomendaria. O PR, como os portugueses estarão recordados, tem condecorado, na esteira dos que o precederam, toda a gente e mais alguma. Muitos por méritos mais do que duvidosos, mas que têm em comum serem da sua cor política, terem trabalhado ou colaborado com ele, porventura terem-se com ele cruzado à entrada de uma estação de metro num dia de nevoeiro ou num café de Boliqueime. Não admira por isso que quisesse também condecorar Rocha Vieira, militar que para o bem e para o mal ficará eternamente ligado ao que de pior Portugal fez em Macau em matéria de nepotismo, favorecimento e alimentação de clientelas. Para banalização da Torre e Espada, ordem honorífica cuja atribuição deveria ser consensual e compreendida por toda a Nação, é o ideal. Quem desconhecer o passado e apenas conheça a propaganda da máquina que Rocha Vieira colocou ao serviço da sua promoção poderá pesquisar alguns livros que se publicaram, ver quem os pagou, e os milhares de páginas da imprensa local, incluindo do então Boletim Oficial, para perceber o que o senhor andou a fazer pelo Oriente rodeado pela sua gente, entre a qual se contavam alguns tipos pouco recomendáveis à luz de qualquer padrão de decência, dos que se orgulhavam de ter “andado a matar pretos em África” aos que assinavam contratos “por conveniência de serviço” em nome do Governo com as empresas de que eles próprios eram administradores. O próprio Fernando Lima, assessor do PR famoso no célebre caso das escutas do Público, foi um dos que por Macau se passeou, aproveitando para pernoitar em hotéis de cinco estrelas enquanto compilava, escrevia e publicava uns livros à custa dos patrocínios que directa ou indirectamente saíram dos cofres de Macau. Creio que o Conselheiro Macedo de Almeida, que foi Secretário-Adjunto para a Justiça de Rocha Vieira e é hoje assessor do PR, não contou nada disto ao Prof. Cavaco Silva para evitar que este se arrependesse a tempo. Depois de um final penoso mas bem encenado e melhor coreografado, onde o descontrolo da segurança se misturava com os milhões, os caixotes e os salamaleques a Stanley Ho e aos poderosos das suas relações, enquanto se condecoravam os amigos e se sugeriam medalhas a Lisboa, criavam-se as instituições onde seriam colocados os seus – não a Portugal – leais servidores, muitos deles ainda hoje vivendo à grande do que então se retirou dos fundos locais. Em matéria de favores nada ficou por pagar fosse em medalhas, contratos, prebendas várias ou viagens e passeatas. E do trabalho que por Macau deixou aos mais diversos níveis, seria bom que os portugueses soubessem que década e meia volvida não há quem não se queixe do que se fez da justiça e dos tribunais, a começar pelo presidente da Associação dos Advogados, e até o português já perdeu, na prática, o estatuto de língua oficial, havendo tribunais a notificarem em língua chinesa destinatários falantes do português e recusando-se a fornecer traduções de despachos e sentenças a esses destinatários, em clara violação da Declaração Conjunta e do estatuto de igualdade das línguas, como que numa antecipação do final do período de transição de 50 anos. Tivesse sido o trabalho bem feito e nada disto estaria agora a acontecer. O Presidente Jorge Sampaio, através de um gesto que teve tanto de ingénuo como de temerário, já tinha condecorado Rocha Vieira, embora nunca o devesse ter feito. A prova disso é que Rocha Vieira acedeu para logo depois fazer de conta que não tinha dado o seu aval à condecoração. O jornalista João Paulo Menezesrecordou-o recentemente: “Depois de ter aceitado a condecoração proposta por Jorge Sampaio (primeiro verbalmente, depois ao estar presente na cerimónia), Rocha Vieira protagonizou um dos episódios mais insólitos da história recente das condecorações em Portugal. Como é regra, depois da cerimónia pública é enviado para casa dos distinguidos um documento designado “compromisso de honra de observância da Constituição e da lei e de respeito pela disciplina das ordens”. Só depois dessa assinatura e da devolução do documento é que a condecoração passa a ser oficial. Mas Rocha Vieira não só não assinou como não devolveu o “compromisso de honra”. Resultado: o Anuário das Ordens Honoríficas – online, no site da Presidência da República – omite essa condecoração e no seu próprio currículo Rocha Vieira também não refere que recebeu em 2001 o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique”. O general Rocha Vieira apresenta uma justificação no livro que o seu fiel e abnegado colaborador e editor publicou, dizendo que tal condecoração é “como se não existisse”, mas para dizer isto mais valia que tivesse logo recusado a oferta de Sampaio e esperasse que a história, ou quem àquele sucedesse, um dia reparasse a “injustiça”. Homens de valor e com feitos excepcionais não fazem o que ele fez a um Presidente da República por muito que não gostasse dele. Sobre os méritos do futuro titular da Ordem Militar da Torre e Espada, nada mais há a acrescentar, sabendo-se que a sua acção em Macau – e a dos portugueses, por tabela – valeu o gozo dos cartoonistas da imprensa internacional, da americana ao South China, pela forma como foi constituída a Fundação Jorge Álvares, onde estão acantonados os seus homens. E dos quadros dos ex-governadores retirados pela calada, como ainda há dias foi recordado por um ex-assessor de Sampaio, nem vale a pena falar. O que se estranha é ver o general Ramalho Eanes, um modelo de militar e cidadão, a quem os portugueses muito devem pela consolidação da sua democracia, associado a esta farsa que a Presidência montou para homenagear Rocha Vieira. Só vejo o general Eanes na cerimónia por ser um homem educado e bem formado. É que é difícil encontrar um paralelo, para além da farda, entre a acção de Ramalho Eanes e a de Rocha Vieira. Não consta que o general Eanes no exercício das suas funções públicas ou na sua vida de militar fosse cínico, falso, prepotente, que usasse o posto e a função para oferecer o que do seu bolso não pudesse pagar, distribuindo benesses, encaixando os amigalhaços, fazendo museus, fundações e institutos para sua glória, editando livros ilustrados com as suas próprias fotografias, dando o seu aval a indecorosas campanhas de promoção pessoal, esperando sempre ser devidamente bajulado em todas as esquinas. Ainda recentemente o general Eanes foi às Filipinas receber um prestigiado prémio internacional, fazendo-o com a maior discrição, como se a distinção que lhe foi concedida não fosse motivo de orgulho para todos os portugueses. A diferença entre os dois homenageados não está apenas no facto do general Ramalho Eanes ter dado o seu nome a um largo de Macau e sobre o outro haver hoje quem em Macau não saiba quem foi, tal a irrelevância do seu papel. A atribuição da Ordem da Liberdade ao general Ramalho Eanes, militar e homem de Estado a quem em matéria de ética e intenções não haverá um acto que suscite dúvida, é inteiramente merecida e não devia acontecer desta forma, à socapa, em final de mandato, sem brilho. Quanto à do outro cavalheiro a quem o PR resolveu agraciar com a Torre e Espada, a única coisa que se pode dizer é que não será pelo general Ramalho Eanes lá estar que deixará de ser um ultraje. Porque o homenageado será muito seu amigo, simpático e educado, mas faltará tudo o que a Torre e Espada pretende significar. Faltam os “feitos excepcionalmente distintos” à frente de órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha, faltam os “feitos excepcionais de heroísmo militar oucívico” e faltam os “actos ou serviços excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade”.