A Grande América (IV)

(Continuação da edição de 22 de Maio)

Porque é que Putin não há-de ter mão livre para a Ucrânia? E quando ameaça arrancar a Gronelândia, de uma forma ou de outra, à Dinamarca atlântica (ou a si próprio), em termos que, teoricamente, poderiam desencadear um alívio para os prejudicados através do artigo 5.º do Tratado de Washington, não estará a enterrar a OTAN, o objectivo existencial da Rússia? E, ao mesmo tempo, marcar a vacuidade do Quadrilátero anti-chinês e alinhamentos similares, sempre destinados a ser revogáveis? Partamos do princípio de que não dispomos de nenhum documento parafraseado por Trump, Putin ou outro. Pelo contrário, estamos certos de que nunca poderíamos fazer melhor do que o escritor Leonardo Sciascia, uma vez que entre cavalheiros os entendimentos paramilitares são protocolados com um aperto de mão mesmo virtual.

Mas e se o fizéssemos? Teríamos um relatório do grande confronto com o seguinte teor. Título: “Para uma nova ordem do caos”. Parênteses atribuíveis ao Minuteman. Primeiro. Partilhamos um interesse comum em perpetuar a existência dos impérios uns dos outros, bem como dos (al) nossos próprios. (Sorrisos cúmplices.) Segundo. Notamos que uma guerra entre nós não teria vencedores. Todos perdedores. (Felicitações mútuas.)

Terceiro. Em comum, teremos amanhã um inimigo oculto que é agora o nosso trunfo supremo, a IA. Tememos que ela se apodere do nosso comando e nos elimine a todos, juntamente com o resto da humanidade. (As últimas cinco palavras parecem irreflectidas.) Quarto. Estabelecemos uma linha vermelha comum a ser estendida ao resto dos Estados e imposta, se necessário, pela força (aqui Putin lembra a Trump as cinco políticas de Roosevelt, suavemente) como proibir o desenvolvimento da IA para além do limiar que não nos permitiria controlá-la. (evoca Fausto, lendo da caverna na adolescência desgraçada. Os dedos de Trump batem com impaciência). Quinto e último. Qualquer alteração ao grande confronto requer a unanimidade. (Os três maiores líderes mundiais cruzam as seis mãos em aprovação fervorosa.) Aparentemente a limpar a mesa de conferências, o sortudo escriba encontrou cartas de jogar espalhadas representando a Ucrânia, Canadá, Gronelândia, Panamá, a Lua e Marte. Entre outras.

Os cartéis do México não ficam esquecidos pois são organizações criminosas muito poderosas, não só no seu próprio território, mas também em muitas outras partes do mundo, incluindo a Europa. O termo “cartel” foi utilizado pela primeira vez pelos procuradores da Florida no início dos anos de 1980, durante um processo contra o grupo colombiano de tráfico de droga de Medellín liderado por Pablo Escobar. Esta palavra tem por objectivo traduzir, simplificando, as relações entre grupos criminosos frequentemente em conflito. Faz parte de uma convivência organizada entre clãs, polícias, militares e políticos. Nas malhas desta rede bem oleada, florescem interesses poderosos que vão muito para além de um comprimido de fentanil ou de metanfetamina. Actualmente, as duas organizações mais poderosas são o cartel de Sinaloa e o cartel Jalisco Nueva Generación, que, para abreviar, utiliza o acrónimo (CJNG).

Estas estruturas criminosas transnacionais estão envolvidas na produção e no tráfico de droga, na compra e venda de armas, no branqueamento de capitais, no contrabando de migrantes, na exploração da prostituição e da corrupção e na extorsão. Não menos importante, o mercado negro do petróleo e dos combustíveis e de minerais como o ouro e a prata. Nos primeiros nove meses de 2022, a empresa estatal mexicana de petróleo e gás Pemex perdeu setecentos e trinta milhões de dólares devido ao roubo de petróleo através da inserção de torneiras ilegais nos oleodutos. O futuro próximo também parece bastante sombrio devido ao impacto das novas e certamente mortíferas tarifas comerciais contra o México anunciadas por Trump.

No estado de Tabasco, a Pemex está a desenvolver um projecto de mil milhões de dólares para um novo campo de petróleo e gás, recentemente descoberto na zona de Bakté, que deverá estar operacional este ano. Não é por acaso que existem fortes tensões entre clãs criminosos em Tabasco. Em 2024, esse Estado ocupava o segundo lugar no México em termos de homicídios. A indústria mexicana de hidrocarbonetos está em crise devido ao esgotamento de importantes depósitos como Cantarell e Ku-Maloob-Zaap. As descobertas recentes são limitadas e o declínio da produção de petróleo e gás pode levar a graves desequilíbrios geopolíticos dentro e entre as fileiras do ilegal. O clã Sinaloa opera em quarenta e sete países. Há vinte e cinco anos que se dedica ao mercado das metanfetaminas e, desde há treze anos, também ao do fentanil.

O cartel importa da Ásia os precursores químicos para a produção de fentanil e fabrica os comprimidos nos seus próprios laboratórios, situados em locais onde é mais fácil controlar o território. Sinaloa vive actualmente uma fractura interna. As famílias Zambada e Guzmán (El Chapo) disputam a liderança de todo o cartel. Os conflitos e a guerrilha espalham-se por vários Estados mexicanos sob o controlo do mesmo grupo. Na cidade de Caborca, no meio do deserto de Sonora, tem-se travado uma guerra entre os Guzmán (Los Chapitos) e o cartel de Caborca pelo controlo desta zona chave na rota para o Arizona. Os mercados mais lucrativos para a metanfetamina estão na Ásia e na Oceânia, liderados pela Tailândia, Japão, Austrália e Nova Zelândia. Os lucros podem ser cem vezes superiores aos obtidos com as vendas nos Estados Unidos.

O comércio com a China é também importante, alargado pelos mexicanos a um peixe, a totoaba, pescado principalmente no Golfo do México, do qual se extrai a bexiga seca, muito importante na medicina tradicional chinesa. As ligações entre a China e o México são asseguradas por vários portos, entre os quais o de Mazatlán, inteiramente sob o controlo do cartel de Sinaloa, que também cede a utilização de porto de escala a outras organizações criminosas mediante pagamento. Igualmente importante é o porto de Manzanillo, no Estado de Colima, onde operam vários cartéis, incluindo o cartel de Sinaloa, embora o território circundante não esteja sob o seu controlo. No entanto, a maior parte do movimento de drogas e fentanil provenientes da Ásia é efectuada por via terrestre ou aérea. A fronteira com o Arizona está quase totalmente sob o controlo do cartel de Sinaloa. Os postos fronteiriços de San Luis, Rio Colorado e Nogales são funcionais para o tráfico de droga, mas também centros fundamentais para o contrabando de fentanil em comprimidos de marca destinados especialmente a pulverizar a zona de Los Angeles.

O movimentado posto fronteiriço de San Ysidro é um cruzamento aberto para o cartel de Sinaloa. Uma vasta rede de túneis facilita a travessia da fronteira entre os Estados Unidos e o México. Os túneis subterrâneos exploram os sistemas de esgotos e de água das cidades fronteiriças. Por vezes, são escavadas ligações entre casas no México e empresas americanas para que as mercadorias possam ser descarregadas e carregadas sem serem vistas. A utilização de drones ou o lançamento de catapultas são acontecimentos raros, mas realçados na imprensa por serem cénicos. O cartel CJNG expandiu-se como um negócio de franchising. Os seus líderes estão ligados entre si por casamento ou laços de sangue directos. Depois do cartel de Sinaloa, é o segundo maior distribuidor de droga nos Estados Unidos. Os principais mercados são o Japão e a Austrália.

A “Grande América” são os Estados Unidos prósperos e com poucas disparidades de rendimento e riqueza, onde a pobreza é mínima. As necessidades básicas essenciais, como os cuidados de saúde, são um direito e não um privilégio e estão universalmente disponíveis para todos. Uma nação com justiça e verdadeira como a proverbial senhora de olhos vendados segurando um conjunto de balanças, onde a rectidão é administrada de forma igual, e não apenas na aparência.

Uma nação que o mundo admira pela defesa da democracia universal e dos direitos humanos, respeitando os outros. Ao mesmo tempo, os infractores serão rapidamente tratados pela comunidade mundial, reforçada pelas suas capacidades militares muito eficazes. Uma nação que promove e desenvolve tecnologia de ponta para melhorar a vida em todo o lado. Uma nação que é universalmente respeitada pelos seus esforços para viver em condições ambientais óptimas e limpas, mas que não cede aos extremistas das alterações climáticas. E por último, mas não menos importante uma nação com capacidades militares com as quais nenhuma nação sonharia em querer envolver-se. Possível mas absolutamente inexequível com Trump.

29 Mai 2025

Cathay Pacific planeia voo mais longo do mundo para ligar Hong Kong a Nova Iorque

A companhia aérea Cathay Pacific planeia operar o voo de passageiros mais longo do mundo, numa rota que sobrevoará o oceano Atlântico em vez do Ártico para ligar Hong Kong a Nova Iorque e evitar a Rússia.

A ligação será de “pouco menos de nove mil milhas náuticas”, mais de 16 mil quilómetros, a percorrer em cerca de 17 horas e 50 minutos, disse a companhia aérea de Hong Kong à agência de notícias France-Presse (AFP), na terça-feira.

O voo será mais longo em distância, mas não em tempo, do que o voo da Singapore Airlines, entre a cidade-Estado asiática e Nova Iorque, num percurso de mais de 15 mil quilómetros em 18 horas.

Muitas companhias aéreas têm cancelado voos para cidades russas ou evitado o espaço aéreo russo desde a invasão da Ucrânia.

No mês passado, a Rússia também fechou o espaço aéreo a vários países europeus e a todos os voos ligados ao Reino Unido, em resposta a uma proibição semelhante imposta por estas nações.

A opção transatlântica é mais favorável do que a rota habitual devido aos “fortes ventos traseiros sazonais nesta altura do ano”, justificou a companhia.

Antes da pandemia da covid-19, a Cathay operava três viagens diárias de ida e volta entre as duas cidades.

Os voos para Hong Kong enfrentam agora cancelamentos frequentes devido às rigorosas medidas sanitárias da cidade e à falta de passageiros.

Os aviões provenientes dos Estados Unidos e de mais oito países vão poder aterrar novamente em Hong Kong, a partir de sexta-feira, graças a uma flexibilização das regras contra a covid-19.

Na terça-feira à noite, a Cathay anunciou um voo direto Nova Iorque-Hong Kong, em 03 de abril.

30 Mar 2022

Um dia perdido em Nova Iorque

Ficou um dia meu, perdido em Nova Iorque. A um ponto tal, que ficou por lá. Nunca mais o encontrei. A culpa é desta minha relação indefesa e nunca resolvida com a insónia. Deitada comigo na cama, a insónia, é como um amante na almofada ao lado e que dorme indiferente, enquanto desesperadamente me viro e lhe viro as costas.

Tentando ignorar aquele olhar esgazeado, a detectar a falta de imunidade pela noite fora, porta para todas as recordações, incómodos, monstros que se avizinham, como bactérias em organismo indefeso.

Numa dimensão muito própria, estas noites. Tão irreal como a daquele ringue gelado que só conheço de filmes.
O meu sono tem-me pregado dessas partidas. Nem me deixando acordar nem adormecer. Quedando-me numa meia lucidez somente acordada para a luz. A evolução crescente ou já inversa. Como se mais nada existisse, mesmo o corpo estranhamente inquieto e pesado como um fardo. Como se simplesmente o corpo de um relógio. Espectador do tempo. Obreiro indiferente. O frio, o calor do aquecimento central, o tempo, o sono, desregulados.

Estava em Nova Iorque numa Páscoa fria e isso poderia passar à frente de todas as coisas. O sonho de ir, de estar ali na cidade conhecida ao detalhe em planta, imaginário e resolução de ir. O maravilhamento de ter ido.

Sobrevoando o Alasca. Um esforço de adaptação das horas e das distâncias, demais. Mas não, talvez pela enormidade do percorrido por contraste com a imaginação, há circunstâncias em que tudo se revira sobre um foco incontornável de sobrevivência em que nos enovelamos sobre as nossas próprias pequenas limitações. O dia amanhecia no quarto do YMCA de aquecimento perturbador. O calor excessivo na noite que rondava uns zero graus, era um paradigma estranho a quem estava habituada a recolher-se debaixo de cobertores pesados em busca de calor. Não a revoltar-se contra um calor estranho e indesejado. Amanhecia esta espécie de luta e a luz nas vidraças dizia-o. Revolvia-me na cama em busca de um equilíbrio entre o conforto insuficiente do ar e o que era excessivo nas cobertas da cama. E o dia a amanhecer sempre. A luz a clarear lentamente e por lapsos difíceis de medir – sei, os do sono. Sempre aquela luz intermédia. Mais tarde, bem mais tarde, a luz, ainda intermédia era-o já de novo. Como se o dia continuasse a amanhecer quando um olhar lúcido, finalmente, para o relógio, demonstrou como a luz amanhecera e anoitecera já. Mesmo se, agora, com o mesmo ar distraído ou irresoluto de luz média. Passara um dia sobre a revolta das temperaturas, do sono, e dos cobertores. Sem que se percebesse a ascensão e queda. Nesse limbo de virar sobre o ombro direito e depois sobre o esquerdo, à espera do apaziguamento do sono, ou da definição do dia a estipular sentidos inerente às horas, se passou um dia do nascer ao morrer. Adormeci – deitei-me, digo – eventualmente, à noite, e levantei-me numa outra noite.

Por isso ficou um dia meu, perdido em Nova Iorque. Perdi-o, e nunca o encontrei.

Tinha dois encontros nesse dia. Com uma americana conhecida no verão anterior em Chiang Mai e um jovem chinês, com quem falara talvez em Hong Kong. Muito diferentes. Tinha a curiosidade de pelos olhos deles conhecer de Nova Iorque mais essas duas cidades em que cada um deles habitava. Nunca aconteceu. Mas não me parece que nada do que foi falhado naquele dia, pudesse ter fracturado substancialmente a minha vida. Teimosamente destinada a ser outra coisa qualquer.

Falta-nos tanto esse dia que ficou por viver, mesmo se registado no calendário. Mas talvez não necessariamente esse. Em que, assim, estando não estive. Mas ontem, como se por uma permuta mutuamente vantajosa, estive sem estar. Num outro lugar, é verdade. Mais a sul na Carolina do norte. Ficou por momentos e depois pelo dia fora, a sensação de que algo naquele meu dia se expandiu líquido e calmante. Como sair de casa e da vida.

Como ter estado lá, de facto. Estive. Mais realidade em estar, seria talvez demasiado nítido para aquilo que posso absorver antes do limiar de dor, de solidão, de infinitude ansiada.

De resto fica em forma de sonho para sempre. Aquela ilha estreita e alongada entre mar e oceano. Não importa se fui se não fui. Estive por aquelas praias e horizontes desoladoramente preenchidos de mar e nada. Sempre pasto de tempestades. A fazer apetecer perder-me ali para sempre mesmo se nuns dias. A temer o confronto com o real impacto da lonjura que dali se avista.

30 Nov 2021

Covid-19 | Mais de mil mortes no estado de Nova Iorque, há nove dias eram 35

[dropcap]O[/dropcap] estado norte-americano de Nova Iorque superou no domingo as mil mortes de infectados com a covid-19, um mês após se detetar o primeiro caso e quando há nove dias se registavam apenas 35 mortos. Só a cidade de Nova Iorque informou na noite de domingo que o número subira para os 776 mortos. O surto da covid-19 espalhou-se por Nova Iorque a uma velocidade assustadora.

O primeiro caso de infecção conhecido no estado foi descoberto a 1 de Março num profissional de saúde, que regressara recentemente do Irão. Dois dias depois, o estado anunciou o segundo caso, um advogado do subúrbio de New Rochelle.

A 10 de Março, o governador Andrew Cuomo declarou uma “área de contenção” em New Rochelle que obrigou ao fecho de escolas e espaços de culto. Nesse mesmo dia, a região metropolitana registou a sua primeira fatalidade: um homem que trabalhava em Yonkers e morava em Nova Jersey.

A 12 de Março, o estado proibiu todas as reuniões de mais de 500 pessoas e encerrou os teatros da Broadway e as arenas desportivas. O prefeito da cidade de Nova Iorque, Bill De Blasio, ordenou o fecho das escolas a 15 de Março.

Restrições mais severas ocorreram cinco dias depois, quando Cuomo ordenou que todos os trabalhadores não essenciais ficassem em casa, barrou reuniões de qualquer dimensão e instruiu qualquer pessoa no espaço público a ficar a pelo menos um metro de distância das outras pessoas.

Por essa altura, somente 35 nova-iorquinos infectados com a covid-19 tinham morrido. Ou seja, apenas nove dias antes destes últimos números.

O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infectou mais de 697 mil pessoas em todo o mundo, das quais morreram mais de 33.200. A Espanha é o segundo país com maior número de mortes, registando 6.528, entre 78.747 casos de infeção confirmados até hoje, enquanto os Estados Unidos são o que tem maior número de infectados (mais de 124 mil). Dos casos de infecção, pelo menos 137.900 são considerados curados.

30 Mar 2020

Elogio dos filmes longos

[dropcap]H[/dropcap]á um famigerado, sacramental e tácito postulado entre os “dealers” e leiloeiros de arte nova iorquinos segundo o qual qualquer quadro terá de caber nos elevadores dos edifícios de apartamentos de Park Avenue.

Também no cinema é princípio consuetudinário que a duração dos filmes se inscreva entre os 80 e os 120 minutos. Em ambos os casos o propósito é o mesmo: não afastar consumidores por motivos meramente logísticos. Tanto um filme demasiado curto como um desmedido desorganizam os horários das salas de cinema impedindo-as de realizar a habitual quantidade de sessões às horas do costume.

A extensão dos filmes foi o combustível de uma “cause celebre” que definiu de vez a relação de poderes da indústria cinematográfica. Em 1925 o realizador Erich von Stroheim das 85 horas que havia filmado insistiu numa versão final de “Greed” com cerca de 8 horas e o jovem Irving Thalberg, há pouco tempo posto à cabeça dos estúdios da MGM, tirou-lho das mãos, mandou-o remontar sob a sua supervisão e deu à luz uma cópia com 140 minutos. A queda em desgraça do primeiro e o prestígio do segundo consubstanciaram-se com tal desfecho, mas além desta consequência imediata o que definitivamente ficou estabelecido foi assegurar que o produtor é quem na verdade imprime a sua marca no resultado final de um filme.

De modo que os filmes longos, muito longos, passaram a ser uma raridade circunscrita a um cinema de distribuição marginal. Até porque, é uma evidência, ninguém tem vida para se enfiar numa sala durante mais de 5 horas – ou bastante mais…

Há porém outra e menos referida causa para tal raridade, que não se detém na paciência do espectador, sequer nas dificuldades de produção. Um filme de longa duração exige uma segurança e uma maestria invulgares na manipulação do elemento mais volátil, impertinente, indómito, implacável, unívoco e, no fundo, essencial do cinema – o tempo.

Na verdade o rabo é o grande sensor da capacidade de envolvência de um filme, ao qual produtores e realizadores costumam – ou deviam – dar atenção. Quando as sinapses trazem ao cérebro sinais de incómodo do rabo no contacto com a cadeira é porque o enfado está a tomar conta dos nossos sentidos. E o enfado, como se sabe, é irreversível.

Quer isto dizer que duração não é demora. Sobram por aí curtas-metragens ditas de autor que abrem num plano estático e por lá ficam. Vasculhamos com o olhar os quatro cantos do enquadramento, tornamos a dar a volta e aquilo ainda ali está sem nada mais para dizer mesmo quando tem árvores batidas ao vento. Ao cabo de um punhado de prolongadíssimos minutos percebe-se que tanta e tão pretensiosa solenidade comparece unicamente para remediar o vácuo, que a coisa tem bazófia de sinfónica, mas é composição de uma nota só. A sensação de morosidade de um filme depende, portanto, da sua redundância, não do comprimento.

Fomos acostumados a que os filmes nos exijam concentração e esperteza para seguir as subtilezas do enredo, palpitação emocional para viver as alegrias e tristezas das personagens, contemplação ou deslumbramento perante as vistas e panoramas que ele nos dá a ver. Em troca é suposto devolverem um troço de vida condensada; em 90 minutos podem passar lá dentro décadas de história ou uns intensos momentos de drama.

Um filme verdadeiramente longo obriga à disponibilidade de uma viagem de avião intercontinental, sem mais nada que fazer senão estar ali. Ora isto tem potencial para originar um enorme prazer, equivalente ao de uma imersão total num universo paralelo. Estou em condições de afirmar que me custou sair de “Satantango” (1992) de Bela Tarr com 7h30m ou do documentário “Near Death” (1989) de Federick Wiseman com 6h, porque em ambos já me havia integrado neles e acomodado a permanecer ali dentro.

Noutros casos são filmes oceânicos, nos quais mergulhamos e vamos nadando durante um tempo, sabendo que não poderemos ir até ao seu fundo nem atravessá-los com as nossas pequenas braçadas – são muito maiores do que nós. A experiência de assistir a “Hitler” (1977) de Syberberg com 7h22m ou de “Le Soulier de Satin” (1985) de Manoel de Oliveira com 6h50m é a de começar a sentir que “aquilo” subsistirá para sempre independentemente de mim.

Ver um filme longo, tal como a difícil arte de ficar um ínterim sem fazer nada, oferece-nos um benefício precioso e cabal, que é o de ganharmos uma percepção do tempo doutro modo inalcançável.

18 Jan 2019