Estamos aqui

[dropcap]E[/dropcap]ntretido a ler os discursos dos portas no recebimento do Nobel, leio que Saint-John Perse dizia: «quer se trate do científico ou do poeta, o que aqui se honra é o pensamento desinteressado». É verdade e mentira. Os homens são capazes de ser desinteressados, é o que faz a grandeza do afecto ou a da arte, nalguns. A palavra, pelo contrário é muitíssimo interessada.

Mas não somos nós quem as usamos? Nós somos os seus servos, como explicava caridosamente o Coelho à Alice, no País das Maravilhas: «o que interessa é perceber quem manda naquilo que dizemos». E há palavras que nos conduzem para a beleza e outras para o mal; palavras que nos despem, contra outras que nos dissimulam; as que nos serenam e as que contagiam com a ira. Para os antigos o Vento soprava onde o Espírito queria e só Deus subsumiria as suas intenções ajustando-o ao sulco do seu próprio Verbo. Certo é, demasiadas vezes não medimos o efeito das nossas palavras e elas ferem; se acaso nutrem igualmente a alegria, o mais das vezes o nosso rasto é negativo.

Será por isso que os homens ainda são reféns da imagem – no fundo, não confiam nas palavras!? O Trump sabe tudo sobre imagens quando se propõe sair do hospital vestido de Super-Homem. Impediram-no os assessores mas a intuição dele estava certa: seria um golpe de marketing tão intratável como genial e mostraria que ele, como Cristo, veio para dividir, para trazer a espada se o terreno é de combate, em vez de oferecer a amorfa normalidade dos homens comuns que estão condenados ao esquecimento.

Trump julga-se um homem providencial – nisto aproxima-se perigosamente da idolatria e resvala para a loucura. A desgraça é que tudo nele está calibrado para o mal, que é o que escorre quando a palavra ficou com o freio preso nos dentes e corre corre tomando a dianteira sobre o coração.

Se perder as eleições, Trump está de tal modo desvairado que tenho a certeza de que vai fundar uma religião. O espantoso é que vai ter aderentes.

Recordava o polaco Czeslaw Milosz, no seu discurso: «o exílio do poeta é hoje o exercício elementar de uma descoberta que nos revela como os detentores do poder têm as ferramentas necessárias para controlar a linguagem, e não só mediante a censura, mas sim especialmente alterando o significado das palavras.

Produz-se desta maneira um fenómeno singular, que leva a que a linguagem de uma comunidade cativa adquira certos “costumes” duradouros, pelos quais podem zonas inteiras da realidade deixar de existir simplesmente por carecerem de nome. Haveria que indagar se existem vínculos secretos, entre uma teorias literárias como a da Écriture (da linguagem que se alimenta a si mesmo) e a do desenvolvimento do estado rotalitário (…) é indiscutível que não há razão fundamental para que o Estado não tolere uma actividade que consiste em criar poesia e prosa experimentais, como sistemas de referência autónomos, emoldurados nas suas próprias fronteiras. Pois só se suposermos que o poeta é um ser infatigável no seu combate para libertar-se de estilos emprestados, na sua busca da realidade, é que a sua existência nos parecerá perigosa.

Numa habitação fechada e onde um grupo de pessoas instaura a conspiração do silêncio uma palavra verdadeira soa como um disparo de pistola.»

Terrível a suspeita que levanta o polaco sobre a ingenuidade política de certas manifestações de foro estético ao mesmo tempo que advoga uma questão essencial: o poema não é um efeito de um fraseado “mais poético” mas um tecido verbal que produz “mais real”. E é engraçado que seja Saint-John Perse, no seu fantástico discurso, a conjugar poema e realidade quando escreve: «o real no poema parece falar-se a si mesmo». Nem há outra meta para o poeta: desalienar.

Confesso, a minha imersão na sociedade moçambicana fez-me compreender de um modo inapelável o que são sociedades cativas, nas quais a semântica se vira do avesso porque os significados cabriolam em contorcionismos impensáveis; já fiz artigos em que mostrava que mesmo discursos sobre ou apelando à paz, nos jornais, estão eivados de uma retórica de guerra. Distorções que com uma descomunal fortuna se disseminam pela comunicação ou as redes sociais, às quais se associa uma crescente negação da memória.

Para entender como a corrupção da realidade começa pela distorção da linguagem, convém ler o ensaio de Milosz, A Mente Cativa, que já existe em português, ou o do iraniano Daryus Shayegan, Le Regard Mutilé/ Pays tradicionnels face à la modernité.

Entretanto, Armand Robin, o anarquista, poeta e tradutor, já escrevera isto em 1947: «A Fé será suprimida/ em nome da Luz, /então a luz será suprimida.//A Alma será suprimida/ em nome da Razão, / depois será a razão suprimida.//A Caridade será suprimida/ em nome da Justiça/ após o que se banirá a justiça.// O Amor será suprimido/ em nome da Irmandade,/ será aí suprimida a irmandade.// O espírito da Verdade/ será suprimido em nome da Mente Crítica,/ então a mente crítica conhecerá a supressão.// Excluiremos o significado da Palavra/ em nome do significado das palavras/ e, em seguida, baniremos o significado das palavras.//Vamos remover o Sublime/ em nome da Arte,/ para de imediato abolir a arte./ Seguir-se-ão os Escritos Livres, excluídos/ em nome dos Comentários/ e, sem tardar, excluiremos os comentários.// Vamos remover os Santos/ em nome do Génio, / para que, que no fundo, o seja génio removido.// Suprimiremos o Profeta/ em nome do Poeta,// então suprimiremos o poeta.// Arrasaremos os Homens com Brilho/ Em nome dos Iluminados/ então suprimiremos os iluminados.// Doravante, será o Espírito suprimido/ em nome da Matéria,/ sendo a matéria então suprimida.// Em nome de nada será o homem suprimido;/ o seu nome: ei-lo apagado;/ não haverá mais nome: AQUI ESTAMOS.» Tremendo.

14 Out 2020

Óbito | Morreu o Nobel da Literatura V.S. Naipaul

O Prémio Nóbel da Literatura, V.S. Naipaul morreu ontem com 85 anos. O aclamado escritor de ascendência indiana deixou a sua marca na literatura internacional, apesar das muitas posições polémicas que defendeu e que lhe valeram acusações de racismo e sexismo

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]escritor V.S. Naipaul, prémio Nobel da Literatura em 2001, morreu ontem com 85 anos na sua casa em Londres, anunciou a família.
A mulher de Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Nadira Naipaul, anunciou que o escritor “morreu rodeado por aqueles que amava, depois de ter vivido uma vida recheada de criatividade e propósito”.
Naipaul foi agraciado com o Nobel da Literatura em 2001 por ter “uma narrativa perceptiva unida e um escrutínio incorruptível em trabalhos que nos obrigam a reparar na presença de histórias reprimidas”.
Com uma carreira que abarcou meio século, o escritor viajou, numa descrição do próprio citada pela Associated Press (AP), como um “colonial descalço” da rural ilha de Trinidad (Trindade e Tobago) para a classe alta inglesa, conquistou os mais cobiçados prémios literários e um título de nobreza (foi ordenado cavaleiro), e foi elogiado como um dos maiores escritores ingleses do século XX.
Entre as suas obras mais aclamadas estão os romances, traduzidos em português, “A Curva do Rio” ou “Uma Casa para Mr. Biswas”, sendo ainda autor de “Uma Vida pela Metade”, “Num Estado Livre”, “A Máscara de África” ou “Para Além da Crença”, entre dezenas de outros.
A sua obra explorava o colonialismo e a descolonização, o exílio e as lutas do homem comum num mundo em desenvolvimento – temas que ecoam as suas origens e a sua trajectória.

Escritor polémico

Apesar de a sua escrita ser amplamente elogiada pela compaixão em relação aos mais pobres e aos deslocados, Naipaul ofendeu muitas pessoas com o seu comportamento arrogante e piadas sobre antigos súbditos do império britânico.
A AP recorda quando apelidou a Índia de “sociedade de escravos”, gracejou que África não tem futuro e explicou que as mulheres indianas usam um ponto vermelho na testa para dizer: “a minha cabeça é vazia”.
Em 1989 Naipaul riu-se da ‘fatwa’ (decreto religioso islâmico) contra Salman Rushdie, também escritor britânico, também de ascendência indiana, dizendo que era “uma forma extrema de crítica literária”.
Outro caribenho laureado com o Nobel da Literatura, Derek Walcott, criticou que a prosa de V. S. Naipaul ficava manchada pela sua “repulsão em relação aos negros”.
O escritor de Trinidad C.L.R. James disse-o de outra forma, escrevendo que os pontos de vista de Naipaul reflectiam simplesmente “o que os brancos queriam dizer, mas não se atreviam”.

Da Índia para o mundo

Vidiadhar Surajprasad Naipaul – Vidia, para os que o conheciam de perto – nasceu a 17 de Agosto de 1932, na ilha de Trinidad, descendente de indianos empobrecidos embarcados para as Índias Ocidentais como trabalhadores em regime de semi-escravatura.
O seu pai era um aspirante a romancista autodidacta cujas ambições foram destruídas por falta de oportunidades. O filho estava determinado a deixar a sua terra natal o mais cedo possível, e anos mais tarde referiu-se repetidamente ao lugar onde nasceu como pouco mais do que uma plantação.
Em 1950, Naipaul ganhou uma das poucas bolsas de estudo do Governo para estudar em Inglaterra e deixou para trás a sua família para iniciar estudos de Literatura Inglesa na University College, Oxford.
Foi lá que conheceu a sua primeira mulher, Patricia Hale, com quem casou em 1955.
Depois de se diplomar, Naipaul passou por um período de dificuldades financeiras e apesar da sua educação em Oxford, viu-se rodeado por um ambiente hostil e xenófobo em Londres, tendo escrito numa carta à sua mulher: “esta gente quer quebrar-me o espírito… querem que saiba qual é o meu lugar”.
A estreia literária aconteceu em 1957, com o livro “The Mystic Masseur”, um livro com humor sobre a vida das pessoas pobres de um gueto em Trinidad.
Em 1959 conquistou o Somerset Maugham Award com a colecção de contos “Miguel Street” e em 1961 publicou aquele que a crítica considerou uma obra-prima, “Uma Casa para Mr. Biswas”, e que prestou tributo ao seu pai, contando a história de um homem com uma vida restringida pelos limites de uma sociedade colonial.
Seguiram-se outros prémios, o título de nobreza de Cavaleiro em 1990 e o Prémio Nobel da Literatura em 2001.
A AP recorda que à medida que crescia o seu prestígio literário crescia também a sua reputação de homem difícil com personalidade irascível, sendo descrito como um homem reservado que não tinha muitos amigos.
Um dos poucos, o escritor norte-americano Paul Theroux, e de quem acabaria por se afastar, tendo o americano em 1998 descrito Naipaul numa biografia como “racista, sexista, que fazia birras terríveis e batia em mulheres”.
Apesar de ter ignorado o livro de Theroux, acabaria por autorizar em 2008 uma outra biografia onde admitia alguns dos factos relatados pelo americano e confessava que acreditava que a sua confissão de recorrer a prostitutas tinha contribuído para a morte da sua primeira mulher, que morreu de cancro de mama em 1996.
Dois meses depois da morte de Patricia Hale casou com a sua segunda mulher, Nadira Alvi, depois Nadira Naipaul, uma colunista paquistanesa.

13 Ago 2018

Nobel da Paz Aung San Suu Kyi em visita histórica

A líder da oposição da Birmânia e Nobel da Paz Aung San Suu Kyi chegou ontem à China, numa visita histórica que decorre num momento de alguma tensão entre ambos os países

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ung San Suu Kyi partiu ontem do aeroporto de Rangun com destino à China, para uma visita até domingo, durante a qual terá reuniões com o Presidente chinês, Xi Jinping, com o primeiro-ministro, Li Keqiang, e com um grupo de empresários do país.

Trata-se de uma visita histórica, a primeira de Suu Kyi à China, através da qual Pequim vai tentar reforçar a relação com o Governo reformista birmanês e com a oposição.

Segundo informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, esta é uma viagem de “intercâmbios” entre o Partido Comunista da China e a Liga Nacional para a Democracia, presidida por Suu Kyi, uma formação que se estima ter bons resultados nas próximas eleições birmanesas previstas para o final do ano.

Desconfianças

A chegada da Nobel da Paz, um prémio atribuído em 1991 pela sua luta pacífica a favor da liberdade no seu país, acontece num momento de alguma tensão entre ambas as nações.

Por um lado, a aproximação dos Estados Unidos à Birmânia, que durante os anos de governo da Junta Militar – entre o final da década de 1960 até 2011 – praticamente só teve a China como único aliado mundial, gerou desconfiança por parte de Pequim.

Além disso, refere a agência Efe, Pequim encontra-se numa situação delicada em relação à Birmânia, devido ao conflito entre a minoria kokang e o exército birmanês no norte do país, ao longo da fronteira com o sudoeste da China (província de Yunnan).

Em Abril, uma bomba lançada por um caça birmanês causou a morte de cinco chineses e uma dezena de feridos, o que motivou a condenação da China, que desde o início do conflito acolheu milhares de refugiados birmaneses.

A Birmânia denunciou em várias ocasiões que os kokang, dos quais cerca de 90% são da etnia han, tal como a maioria dos cidadãos na China, recebem ajuda da China, que dominou o território até o ceder ao Reino Unido no final do século XIX. Pequim tem, no entanto, negado estas denúncias.

Suu Kyi visita a China pouco tempo depois de ter sido alvo de críticas pelo seu aparente silêncio perante a crise dos migrantes da minoria muçulmana rohingya e numa altura em que outro Prémio Nobel da Paz, o escritor chinês Liu Xiaobo, continua na prisão.
 

11 Jun 2015