Moçambique | Ciclone Idai poderá ter provocado mais de mil mortos

Um dos piores ciclones tropicais que assolaram o continente africano deixou um rasto de destruição no Malaui, África do Sul, mas, em particular, Moçambique. A cidade da Beira ficou completamente arrasada, deixando em perigo a vida de mais de 100 mil pessoas. Além dos salvamentos imediatos, Moçambique terá de lidar com a abertura das comportas de barragens, o perigo de epidemias e a falta de capacidade de resposta. Em Macau preparam-se campanhas de solidariedade

[dropcap]”[/dropcap]São momentos de dor. Tenho acompanhado as imagens e o drama que as pessoas estão a passar. São aldeias inteiras isoladas, sem comunicação com o resto do país, uma aflição. Neste momento, ainda nem é possível contabilizar as mortes devido ao isolamento”. É assim que Rafael Custódio Marques, cônsul-geral de Moçambique em Macau, descreveu ao HM a forma como tem vivido a tragédia que assola o seu país, que está em luto nacional até amanhã.

Em declarações à nação, o Presidente da República Filipe Nyusi apontou para uma contabilidade trágica de mais de mil mortos na sequência da devastação provocada pelo ciclone Idai. Ainda assim, entende-se que o número pode ser uma estimativa conservadora. A partir de Macau prepara-se uma resposta conjunta do Consulado-Geral de Moçambique em Macau e da Associação dos Amigos de Moçambique. Entre hoje e amanhã, está prevista a abertura de uma conta bancária para receber donativos e vão ser estabelecidos contactos institucionais para contribuições solidárias.

As províncias mais afectadas são Sofala, em particular a zona da cidade da Beira e Manica.

“Foram três dias e noites que ficámos em cima de uma árvore”, relatou à Rádio Moçambique um residente de Dombe, povoação a cerca de 30 quilómetros do Zimbabué, na província de Manica. A comunidade rural fica a cerca de 150 quilómetros em linha recta da cidade da Beira, a mais afectada pelo ciclone.

A distância ilustra o caminho percorrido pela tempestade, que semeou destruição de uma ponta à outra do centro de Moçambique. Entre domingo e terça-feira, a policial fluvial de Dombe recolheu 11 corpos do rio Lucite e estimou ter salvo mais de 100 das cheias naquelas margens e nas de outros cursos de água da região, muitas amparadas pela vegetação.

Os residentes que se salvaram contaram ter enfrentado fome e frio, depois de uma fuga à subida dos caudais que não lhes deixou outro caminho senão procurar o sítio mais alto. “Fomos e subimos à árvore, durante dois dias”, referiu outro residente de um grupo que inclui famílias inteiras e que relatou o que passou. “Muitas pessoas morreram”, uns levados pela corrente, “outros com frio”, por não conseguirem sair totalmente da água enquanto esperavam por socorro, fosse em cima de árvores ou do tecto de escolas junto ao rio Lucite.

A subida de nível dos rios continua a ser uma ameaça às comunidades rurais das províncias de Manica e Sofala, à chuva forte que caiu até ontem, aliadas às descargas de barragens que se encontram no limite da capacidade.

Abraço de Macau

Por cá, está em curso uma campanha de solidariedade para atenuar o sofrimento vivido em Moçambique. “Vamos abrir uma conta bancária para que as pessoas que queiram apoiar os amigos de Moçambique possam dar a sua contribuição”, revela Helena Brandão, presidente da Associação dos Amigos de Moçambique. Para já, estão a ser feitos contactos com organizações a trabalhar no terreno e com instituições de Macau para reunir apoios, em coordenação com a representação consular.

Por seu lado, o cônsul-geral de Moçambique em Macau, Rafael Custódio Marques garante que vai solicitar apoio a instituições locais. “Está nos nossos planos fazer esse apelo massivo aqui em Macau”, revela o cônsul-geral adiantando que primeiro é preciso criar uma base organizada para que quem queira ajudar saiba para onde dirigir os seus apoios.

Helena Brandão tem acompanhado de longe a tragédia provocada pelo Idai, mas com o coração perto da cidade da Beira. “Foi lá que fiz os meus estudos secundários, foi lá que casei e nasceu a minha filha. Tenho na Beira familiares e amigos.” A dirigente associativa recorda que “apesar das lindíssimas praias e paisagens, a Beira está situada abaixo do nível médio da água do mar. Portanto, qualquer tempestade, mesmo que seja uma chuva de algumas horas é suficiente para alagar tudo”.

Um total de 40 toneladas de alimentos estão a caminho do aeroporto da cidade da Beira para serem distribuídos pela região, disse ontem à Lusa a representante do Programa Alimentar Mundial (PAM) no país. Um avião com 22 toneladas aterrou no domingo “e há outro a caminho com mais 40 toneladas”, referiu Karin Manente, que aguarda pelo descarregamento dentro de “dois a três dias”.

Um dos objectivos é alimentar a população que continua isolada nas zonas alagadas pelas cheias, bem como atender a carências na província de Manica, onde a Lusa visitou um centro de abrigo no qual os beneficiários, entre os quais muitas crianças, se queixaram de falta de comida.

O PAM distribuiu ontem 4,2 toneladas de biscoitos enriquecidos, por via aérea, a quem aguarda salvamento para zonas seguras. “Ainda há populações isoladas”, em número indeterminado, referiu Karin Manente, apesar das acções de salvamento em curso diariamente com helicópteros e embarcações.

Autoridades sul-africanas que apoiam as operações salvaram ontem, só com as suas viagens de helicóptero, 40 pessoas da zona de Buzi, sobretudo mulheres e crianças. Muitas tiveram de deixar outros membros da família para trás, enquanto os helicópteros tentam dar prioridade aos casos mais urgentes.

Há mais pessoas a serem salvas graças a várias organizações envolvidas nas operações, mas o número total de resgates ainda não está consolidado, acrescentou. Pelo menos seis helicópteros estão ao serviço na região (quatro da África do Sul, um do PAM e outro das autoridades moçambicanas) e há expectativa de mais se juntarem às operações.

Resposta à natureza

“A prioridade neste momento é salvar vidas, porque há populações isoladas. Depois é preciso mobilizar alimentação. Há quem tenha perdido tudo, porque as águas carregaram tudo e só ficaram elas próprias”, aponta Rafael Custódio Marques. O representante consular chama a atenção para o facto de as chuvas não estarem a cair com intensidade apenas em Moçambique, mas também no vizinho Zimbábue, o que levará à abertura das comportas de barragens. “Nós estamos a jusante, deve imaginar os cursos de água cá para baixo. É outra catástrofe eminente. Por outro lado, os efeitos pós-cheias podem levar a epidemias.”

A força dos ventos na cidade da Beira foi de tal ordem que os aviões estacionados nos hangares do Aeroporto Internacional da Beira capotaram. Outro perigo vindo dos céus foram as incontáveis chapas de zinco que voaram das construções precárias que constituíam parte significativa da cidade.

Face a uma calamidade de proporções bíblicas como o ciclone Idai, agigantam-se as dificuldades para responder com eficácia, principalmente num país como Moçambique. “Nada é tratado de forma estrutural, sopesando os estragos anteriores e pensando na prevenção do futuro. Disseram-me na terça-feira que o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades não tem sequer um Hospital de Campanha. Este ciclone foi anunciado com vários dias de antecedência e o Governo fez “um alerta vermelho”, mas limitou-se a declarar a coisa. Porquê, não sei, julgo que por inércia e inconsciência”, conta António Cabrita, escritor e residente em Maputo. O autor conta ter almoçado com um governante natural da Beira, e que tem família na cidade, que lhe disse que “a coisa estava mal, mas sem acusar uma excessiva apreensão.”

Depois da visita do Presidente da República à região, o Conselho de Ministros mudou-se para a Beira.

“Quanto mais me informo mais percebo que é um daqueles desastres que ultrapassa a capacidade de qualquer Governo, ainda para mais de um país pobre e já mergulhado numa crise profunda”, remata António Cabrita.

Arregaçar mangas

Noventa por cento da área em torno da cidade da Beira foi destruída, as estradas principais de acesso à cidade foram cortadas, muitos edifícios ficaram submersos, não há electricidade em toda a região e praticamente todas as linhas de comunicação foram destruídas, o que torna muito difícil aceder à dimensão correcta do desastre, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras. Na região da Beira, o número de portugueses residentes registados no consulado de Portugal na capital da província de Sofala aproxima-se dos 2500.

O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, é esperado na cidade moçambicana da Beira, onde dezenas de portugueses perderam casas e bens, para acompanhar o levantamento das necessidades e o primeiro apoio.

No grupo que partiu de Lisboa, além do governante, estão elementos da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e do Instituto Camões. “O objectivo da missão é realizar um diagnóstico tão rigoroso quanto possível sobre as condições da comunidade portuguesa em Moçambique, nomeadamente na região da Beira. Estamos a falar de uma região e de uma jurisdição consular que corresponde a toda a Península Ibérica, que se encontra sem comunicações nesta altura”, disse José Luís Carneiro, em declarações à agência Lusa.

O secretário de Estado explicou que, entre amanhã e sábado, se vão juntar à equipa elementos do Ministério do Ambiente, responsáveis com “possibilidade de agilizar mecanismos na área da saúde” e também uma “equipa reforçada da Direcção-Geral dos Assuntos Consulares, com funções consulares e diplomáticas”. Em relação aos portugueses, o secretário de Estado reafirmou que não tem informações de vítimas mortais ou desaparecidos, mas frisou que ainda é cedo para dar garantias.

Para já, a mobilização para ajudar Moçambique a reerguer-se e evitar mais mortes é a prioridade máxima, de forma a mostrar que há vida depois do ciclone Idai.

Carta de Mia Couto

“Meu caro, obrigado pela mensagem. Na verdade, estou eu quase tão destruído quanto a minha cidade. Estava determinado a ir para a Beira para mergulhar no espírito do lugar e agora, segundo me dizem, quase não há lugar. É como se me tivessem arrancado parte da infância. O Zeferino, logo na sua primeira avaliação, me tinha alertado que a Beira era a personagem central do livro. Confesso que estou meio perdido. Esta manhã recebi fotografias da igreja do Macuti que está em ruínas. Aquele edifício está profundamente dentro da minha história. É como se estivesse a escrever a história de um amigo que, entretanto, morresse. E o problema é bem maior que a Beira. Todo o centro de Moçambique está por baixo de água: estradas, casas, torres de energia e de telecomunicações estão destruídas. Não consigo saber dos meus amigos que vivem na Beira. Enfim, sabe bem esse seu abraço.” Mia

Contas solidárias

O BNU Macau abriu três contas “em solidariedade com a população de Moçambique afectada pelo ciclone tropical Idai” para ajudar as vítimas do desastre natural. O número da conta em patacas é 9015805031. A conta em euros é 9015805048. A conta em dólares norte-americanos é 9015805065.

21 Mar 2019

Reportagem | Bugigangas chinesas motivam queixas nas feiras rurais do interior de Moçambique

Por André Catueira, da agência Lusa

 

[dropcap]O[/dropcap]s produtos chineses ocupam cada vez mais espaços nos mercados rurais do interior de Moçambique, competindo com artigos tradicionais o que motiva a queixa de muitos vendedores. Antes, “destas feiras, podia levar peças de artesanato e bons produtos agrícolas”, recordou Stephan Mwere, um camionista malauiano, cliente num dos mercados de beira de estrada.

Molhos de hortícolas, tubérculos e raízes para cura de males de amor estão colocados lado a lado com coloridas vestes e sapatos, “made in China”. Agora, as bancas “são mais coloridas”, mas o que mais se vê são “roupas chinesas, pouco resistentes”.

Estes produtos importados da Ásia invadiram nos últimos anos as tradicionais feiras rurais em distritos da província de Manica, centro de Moçambique, que eram conhecidas pelos produtos agrícolas e artesanato.

Minúsculas barracas de pau, camadas de plástico e capim juntam camponeses, comerciantes e clientes, duas vezes por semana, em feiras agrícolas junto das principais estradas da província. São lugares de trocas comerciais, numa iniciativa estatal para impulsionar a economia rural e gerar competitividade nos preços dos produtos locais.

“Eu trago cereais e galinhas que vendo na feira. Com o dinheiro compro outros produtos como sal, óleo, sabão e roupas”, disse à Lusa, Frigénio Vunzanasse, um camponês de 43 anos, que se queixa da invasão de bugigangas na feira de Nhampassa, no distrito de Barué.

Num relato semelhante ao de outros camponeses, Frigénio defende que estes “produtos chineses que os comerciantes trazem para a feira não são resistentes”, o que se traduz num “negócio injusto” para a maioria dos produtores – que veem nas feiras locais ideais para comercializar a sua produção agrícola, mas onde agora têm que disputar a atenção dos clientes.

Geralmente, os produtos chineses são adquiridos em numerosas lojas abertas na cidade de Chimoio, a capital de Manica, a preços acessíveis. São sobretudo roupa e calçado que depois são revendidos por comerciantes ambulantes, que agora se juntam às feiras tradicionais.

Muitos levam sapatilhas e sapatos que os produtores apelidam de “descartáveis”, por não resistirem a uma segunda volta numa viagem de vários quilómetros a pé, muito comum entre os camponeses. Chinelos plásticos, localmente conhecidos por “papa não me gosta”, também surgem em abundância, embora sejam altamente quentes no verão e frios no inverno, mas eficientes para zonas acidentadas, como a maior parte de Manica.

“Agora há muitas bancas com produtos chineses na feira”, descreve à Lusa, Januário Malissane, camponês de Nhassacara, que também faz compras numa feira rural perto de si. Sustenta que aquilo que compra dos comerciantes de Chimoio são produtos “frágeis e de pouca duração”.

Entre lágrimas e prantos, Olívia Malissane, nove anos, viu recusado o seu desejo de estrear, na terceira classe do ensino básico, uma nova pasta com o símbolo da Apple. “Vai estragar-se antes do final do primeiro trimestre”, justifica o pai, dizendo que o mesmo aconteceu com outras pastas ali compradas para o primeiro e segundo ano.

As duas feiras, que se localizam junto à estrada nacional número sete (EN7), são largamente frequentadas por camionistas de longo curso, que ligam o porto da Beira aos países africanos do interior, como Maláui e Zâmbia, e que também lamentam a invasão dos produtos chineses.

28 Jan 2019

China prevê apoiar construção de um novo hospital central em Maputo

[dropcap]O[/dropcap] Governo da China prevê apoiar Moçambique na construção de um novo hospital central em Maputo, em substituição do actual com mais de 100 anos, anunciou a unidade de saúde no seu último boletim informativo.

O investimento foi discutido durante uma visita do embaixador da China em Moçambique, Su Jian, àquela unidade de saúde, no mês de Novembro. “Estamos interessados em apoiar na construção de um novo hospital”, referiu na altura o diplomata, citado pelo boletim, consultado hoje pela Lusa.

Segundo o diplomata, a China já tem prestado apoio ao sector da saúde em Moçambique, através da construção e melhoria de infra-estruturas sanitárias no país. Há um ano, um novo bloco pediátrico, construído e equipado com apoio da China, entrou em funcionamento no Hospital Central da Beira, Moçambique.

Saúde, educação e agricultura são “as áreas prioritárias de cooperação internacional da China com o continente africano para os próximos anos”, realçou. A situação do atendimento na principal unidade de saúde da capital moçambicana “não é boa e gostaríamos de ter um hospital moderno aqui em Moçambique que também tivesse a componente da medicina chinesa”, referiu, na ocasião, Hussen Ice, director nacional de Assistência Médica do Ministério da Saúde.

As partes acordaram em “iniciar imediatamente a preparação das condições necessárias” para que “nos próximos tempos” sejam assinados memorandos de entendimento com vista a materialização do projecto, concluiu.

A China tem sido parceira de Moçambique na construção e financiamento de alguns dos principais empreendimentos públicos mais recentes no país, tais como a ponte sobre a baía de Maputo e respectiva rede de estradas ou o aeroporto internacional de Xai-Xai, em construção. Entidades de Moçambique e da China assinaram em Setembro, em Pequim, oito memorandos de entendimento, nas áreas das infra-estruturas, indústria, telecomunicações, agricultura e serviços financeiros, durante um fórum de negócios que decorreu em paralelo com o terceiro edição do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC).

11 Dez 2018

O regresso a casa de três mil refugiados moçambicanos

Por André Catueira, da agência Lusa

 

[dropcap]E[/dropcap]ntre memórias de guerra e de três anos como refugiados no Maláui, cerca de três mil pessoas refazem as suas vidas na província de Tete, centro de Moçambique.

Eram os últimos residentes no campo de Luwani, coordenado pela Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e pelas autoridades do Maláui, junto à fronteira com Moçambique, e que no pico de ocupação terá albergado 11 mil pessoas.

Uma antiga estrada de pó vermelho, distante do asfalto, conduz a um conglomerado de novas palhotas de pau e argila, erguidas no meio de uma mata.

É ali que hoje renasce a aldeia de Ndande, atingida pelo conflito militar entre Governo e o braço armado da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), principal partido da oposição. Foi um dos locais de onde milhares de pessoas fugiram em 2014 e 2015.

“Regressei, encontrei a minha casa destruída e tive de construir uma nova para acomodar a família”, disse à Lusa, Fátima Niquisse, que deixou o campo de refugiados para recomeçar a vida na terra natal, com onze membros da família.

“Reencontrei muitos irmãos e amigos que tinham se deslocado para Macanga, Tete. A guerra tinha-nos separado e o reencontro foi muito emocionante”, disse à Lusa, Tomás Luís, 35 anos, regressado do campo de refugiados com mais dois filhos, perfazendo agora uma família de sete membros.

Enquanto espera pela chuva para semear as quintas recém-cultivadas, Tomás, à semelhança de outros, emociona-se com coisas aparentemente simples. Comove-se com a esperança de poder voltar a ter uma vida normal, porque a opção de viver num campo de refugiados só se deveu “ao sofrimento provocado pelo conflito” que existia na sua terra.

Sebastião Roque e Maria Mirione formam o casal mais recente regressado a Ndande, em Outubro, com mais um filho, nascido no campo de refugiados do Maláui. Agora, o que querem é “liberdade para fazer machambas (hortas)”. “Queremos paz (…), que as autoridades nos reparem como filhos”, apelou Teacher José, um outro regressado, que lembra as perseguições que estiveram na origem do êxodo para o Maláui.

Está há dois meses em Ndande e ainda tem casa coberta com lonas do ACNUR. Teacher José pede uma intervenção das autoridades moçambicanas na reintegração das numerosas famílias, muitas desmembradas pelo conflito.

“Precisamos de apoio local para nos reerguer completamente” referiu à Lusa, indicando que há dramas em muitas famílias, sobretudo com viúvas, que enfrentam sozinhas a reconstrução de habitações e a falta de sementes para a agricultura, sua única base de sobrevivência.

Em Ndande, falta quase tudo e a fome está a deixar algumas famílias desesperadas. “Os produtos alimentares estão muito caros e temos que ir a Ncondezi comprá-los”, disse à Lusa, Lúcia José, uma viúva que sobrevive do negócio de venda de maheu – uma bebida tradicional, sem álcool, a base de farinha de milho –, que também usa como moeda de troca para desbravar seu campo de cultivo.

Para quem não fugiu para o Maláui, o regresso de milhares de moçambicanos dos campos de refugiados é sinónimo de paz e estabilização.

“Quando os refugiados do Luwani começaram a regressar, nós viemos das montanhas para nos reencontrarmos, com a garantia de que o conflito terminou”, disse à Lusa, Lazaro Mirion, 22 anos, que recorreu as montanhas ao invés de se refugiar no país vizinho.

Vários regressados usam os materiais doados no campo de refugiados no Maláui, como mantas, baldes e pratos, não só para as tarefas do quotidiano, mas também como moeda de troca para a abertura de quintas para cultivo de alimentos, como forma de subsistência.

3 Dez 2018

A paz chegou, mas faltam os clientes em hotéis de Manica, Moçambique

Por André Catueira, da agência Lusa

 

[dropcap]A[/dropcap]o fim de dois anos de tréguas e com a paz a consolidar-se, o movimento nos hotéis de Manica, centro de Moçambique, continua abaixo das expectativas dos empresários ouvidos pela Lusa.

Quartos vazios, ausência de reuniões empresariais, de investidores e fraca presença de turistas nacionais e estrangeiros em vários hotéis da capital provincial, Chimoio, são o cenário comum.

“Esta semana temos apenas três clientes”, disse à Lusa um funcionário do Inter Chimoio, um dos maiores hotéis da cidade, descrevendo uma diminuição da ocupação naquele estabelecimento nos últimos anos.

“Está tudo silencioso”, precisou à Lusa uma funcionária do Pink Papaya, uma casa de hóspedes numa zona de elite, sustentando que o movimento de clientes nos últimos tempos é o mais baixo de que têm registo.

“Até perguntámos aos [hotéis] de Vilankulos”, junto às praias da província de Inhambane, “se há movimento, mas é a mesma coisa”, disse.

Neste período do ano, referiu, geralmente cresce o número de reservas, algo “que não se nota. Há uma variação difícil de descrever”.

Ana Meireles, operadora de hotelaria em Chimoio, disse que o sector tem atravessado momentos difíceis pela queda nos números de ocupação, vaticinando que a situação pode estar relacionada com a crise financeira ou a falta de consolidação da paz.

A circulação até Chimoio foi largamente limitada entre 2014 e 2016, devido a confrontos militares entre o Governo moçambicano e o braço armado do principal partido da oposição, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo).

Circular na Estrada Nacional 6 (EN6), principal via de ligação de Chimoio ao resto do país, significa ser um potencial alvo de ataques, ou implicava conduzir integrado numa coluna militar – e até os comboios foram alvo.

A situação mudou desde final de 2016: a Renamo anunciou tréguas sem prazo, as negociações de paz ganharam novo fôlego e não tornou a haver registo de confrontos – aliás, a EN6 voltou a ser um movimentado corredor entre a cidade da Beira, no litoral, e o Zimbabué.

“A circulação de pessoas tem sido boa nestes dois anos da paz”, afirmou à Lusa Ana Meireles, salientando, no entanto, que “isso não mudou o ambiente de negócios”, havendo várias iniciativas de investimento paralisadas.

“A hotelaria cresceu muito em infra-estruturas e qualidade nos últimos cinco a sete anos, em Chimoio, com novos investimentos e muito boa oferta”, frisou, adiantando que, ao contrário do que se esperava, “há um recuo indisfarçável nas taxas de ocupação”.

Um outro responsável hoteleiro, Ricardino Baptista, nota que há sempre oscilações ao longo do ano.

“Há sempre oscilações na taxa de ocupação dos hotéis e residenciais, é um ritmo ao qual estamos habituados”, disse Baptista, reconhecendo, contudo, que a variação dos últimos anos “é desconfortável para o sector”.

Em declarações à Lusa, Samuel Guizado, presidente do Conselho Provincial empresarial de Manica, disse que o ambiente de negócio e as perspectivas de investimento na província são encorajadoras. Vários programas “estão em curso” para incentivar novos investimentos, sublinhou.

“Pensamos que estamos num ritmo aceitável”, no que respeita à melhoria do ambiente de negócios, disse aquele responsável, insistindo em que há várias intenções de investimento, mas reconhecendo que estão por se concretizar em vários sectores empresariais na província de Manica.

18 Nov 2018

Instituto Politécnico de Macau estreita cooperação com universidade moçambicana

[dropcap]O[/dropcap] Politécnico de Macau e a universidade moçambicana Zambeze vão desenvolver uma parceria na formação de docentes, intercâmbio de alunos e cooperação nos cursos de pós-graduação, disse hoje à Lusa uma responsável daquele instituto.

Um dos projetos destacados é a possibilidade de cooperação na área da investigação científica, sublinhou à Lusa a diretora da Escola Superior de Línguas e Tradução (ESLT) do Instituto Politécnico de Macau (IPM), Han Lili.

Em relação à formação de docentes, Han Lili argumentou que “a troca de professores durante um período interessa aos docentes das duas instituições de ensino superior, especialmente aos professores dedicados aos estudos africanos ou asiáticos”.

Em Moçambique existem atualmente cerca de 1.000 doutorados, “pelo que o esforço de desenvolvimento da qualificação é uma prioridade nacional”, segundo o IPM.

No que diz respeito às áreas nas quais o IPM dará formação aos professores moçambicanos, a diretora do ESLT sublinhou a indicação dada pelo reitor da Universidade Zambeze, Nobre Roque, ao apontar como prioridade “a qualificação do docente nas áreas da língua, cultura, literatura e eventualmente informática”.

O intercâmbio de alunos terá ainda de ser estudado para se encaixar “melhor a situação real e a sua viabilidade”, disse Han Lili.

Para já o IPM tem programas de intercâmbio de alunos com o Instituto Politécnico de Leiria, Universidade de Pequim e Universidade de Língua e Cultura da China.

6 Nov 2018

Há limites nocivos para o patriotismo?

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om certeza e vemo-los, à escala global, na “tentação” de Trump para destruir o multilateralismo, a qual ameaça a manutenção da própria ONU.

Segundo Angela Merkel “O actual Presidente dos Estados Unidos pensa que o multilateralismo não é a resposta aos problemas, e julga que apenas pode haver um vencedor, não acreditando em situações em que ambas as partes possam vencer. Ora, destruir um sistema de consenso internacional é perigosíssimo”, concluiu.

Tem inteira razão e todo o patriotismo doentio surge por se acreditar que só pode haver um vencedor. É uma mentalidade desastrosa, ditada ora pela pecha da insegurança, ou, o outro polo do problema, por camuflados interesses económicos que escavam a vantagem na debilidade do outro.

Ora o homem é sobretudo o único animal que sabe antecipadamente que vai perder. Em nenhum cemitério se ouvem proclamar vitórias. É inapelavelmente democrática a terra que acolhe e transforma em estrume todas as caganças. As patrióticas, as da patranha económica, as de casta. E constata-se: nenhum crânio tem os olhos em bico, ou os lábios grossos, ou um nariz caucasiano. Face à morte somos todos igualmente perdedores.

Por isso sustentamos que o homem é por natureza um refugiado. E que o seu valor moral não está tanto nos traços da sua identidade como na dimensão da sua hospitalidade. A identidade é aliás inúmeras vezes um princípio de inconsistência que pode fazer germinar o Mal, ao esquecer que todos os seres humanos são criaturas transfronteiriças e pertencem a uma comunidade de diálogo. Porque somos mais semelhantes do que pensaríamos ou desejaríamos. Vou mostrar quanto.

Observo com espanto a mania dos moçambicanos para se julgarem originais. O que decorre de “falta de mundo” e da carência de estudo das “culturas comparadas”; pois até aquilo que antropologicamente consideram irredutível é afinal uma variante de tendências universais.

Por exemplo, a cerimónia do Mapiko é uma Catábase (uma descida ao inferno e volta) invertida (é a figura tectónica que é convocada a visitar os humanos), deslocada da sua função, e fixada por simetria aos ritos da catábase mediterrânea, ou vice-versa – a técnica de inverter especularmente o que recebemos da “vizinhança” é, demonstrou-o Levi-Strauss, o mecanismo comum para a criação das narrativas identitárias e uma das características que estrutura os mitos.

Por exemplo, as relação dos intelectuais com o poder e a “tradição”, o primado do colectivo sobre o individual, o evitamento da crítica e de qualquer pauta de mérito preteridos pela fidelidade política, os processos de ostracismo e os não-ditos, que se verificam em Moçambique, são afinal práticas comuns a todos os países que tiveram revoluções ou abraçaram o socialismo – tão similares nos seus processos que arrepiam, posto julgarmos que as supostas diferenças geográficas e culturais as diferiria. Não.

O primeiro livro que me ajudou a compreender a sociedade moçambicano é de um iraniano, Daryush Shayegan, exilado em Paris por causa dos Ayatollas. Intitula-se O Olhar Mutilado/Esquizofrenia Cultural: países tradicionais face à modernidade e o exame que faz sobre o comportamento dos intelectuais, das classes médias e da burocracia no seu país na década da revolução decalca o que se observa em Moçambique. Fica-se estarrecido, é só mudar os nomes, os comportamentos são idênticos.

Depois li o Pensamento Cativo, do poeta polaco Czeslaw Milosz, que radiografa os “intelectuais orgânicos” na Polónia durante o fechamento do regime. Quem imaginaria que seria outro livro vital para quem quiser conhecer, a partir de uma aparente e absoluta exterioridade, esse tecido social moçambicano?

Também o livro de José Gil, Portugal – o Medo a Existir, elucida aspectos da “alma” moçambicana. Vários conceitos que José Gil ali explana, entre os quais o da «falta de inscrição» como um fatídico corte entre a especulação e a prática, o vínculo e a realidade, conhecem uma clara correspondência na clivada paisagem moçambicana.

Li agora Itinerário de Octavio Paz, e o que ele diz sobre o México permite fazer uma autorreflexão mediatizada em Moçambique, sem estar inquinado pela emocionalidade. E foi neste livro que encontrei esmiuçado um hábito que se aplica como uma luva ao chão moçambicano: a suspicácia, a marca de carácter de quem vive corroído pela suspeita. Define Paz: «o fundo psicológico desta propensão a suspeitar é a suspicácia», a qual é, evidentemente, a expressão de um sentimento de insegurança.

Quando cheguei ouvia dizer, «Ah, esse gajo é muito desconfiado, é da Zambézia!». Em Moçambique vive-se rodeado de gente da Zambézia! Depois reparamos que tudo se justifica com a «mão externa», e que a acusação chega de gente de todas as províncias contra todos os outros, portanto ou inferimos que afinal macuas, macondes ou rongas são zambezianos disfarçados ou então concluímos que a suspicácia está espalhada.

Refere Paz, a suspicácia é uma irmã da malícia e ambas são servidoras da inveja. Não quero chegar tão longe. Todavia, já me preocupa o que diz a seguir: «todas estas más paixões tornam-se cúmplices das inquisições e das repressões.»

Tenho dificuldade em achar a utilidade para a persistência da suspicácia num país novo, se afinal o sentido da história somos nós quem o produzimos e se o fazemos podemos desfazê-lo. Desconfiar da própria sombra, se ganharíamos mais em conviver com ela? Todavia, é um facto que, em todos esses países que os livros retratam, a suspicácia é um instrumento patológico para a manutenção do poder e a mania de “cadastrar” os outros é um seu (d)efeito.

Sendo a equação a mesma: quanto mais patriótico mais paranóico.

Pode, entretanto, a falência do “multilateralismo” ser igualmente interna, se desconseguimos de aceitar o outro como um enriquecimento nosso. Cresce aí a idiotice e violência étnicas. Porque, repito, na verdade não há estrangeiros no mundo, somos todos refugiados.

E mais do que ser nacional ou não, o que interessa é avaliar o que cada um faz para melhorar o sítio em que vive.

4 Out 2018

Cônsul de Moçambique defende aposta dos países lusófonos

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] cônsul de Moçambique em Macau defendeu ontem que os países lusófonos devem apostar na certificação e formação de quadros qualificados na área da medicina tradicional chinesa para complementar a medicina convencional.

“Moçambique tem vindo a apostar na área da medicina tradicional, tendo já criado um centro (…) em Moçambique e pensamos que é importante para complementar a medicina convencional”, defendeu Rafael Custódio Marques à margem do encerramento do colóquio sobre a cooperação no domínio de medicina tradicional para os países de língua portuguesa, em Macau.

O cônsul reforçou que o país está a desenvolver esforços para a certificação desta área, aproveitando o facto de o centro de medicina tradicional estar no Ministério da Saúde, o que “facilita de certa maneira os aspectos legais, os aspectos técnicos em termos de certificação”.

Nos dias 13 e 26 de Setembro 23 funcionários técnicos provenientes de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste participaram na acção de formação organizada pelo Fórum Macau.

A secretária-geral do Fórum Macau, Xu Yingzhen, ambiciona que a “cooperação com a medicina tradicional venha a desempenhar um papel relevante na vertente cultural entre a China e os países de língua portuguesa”.

Durante o discurso de encerramento do colóquio, Xu Yingzhen reiterou esperar que Pequim e os lusófonos “possam vir a aproveitar plenamente a plataforma de Macau, reforçando a tecnologia médica, estudos científicos, formação de quadros qualificados” e protecção da legislação.

27 Set 2018

China/África | Presidente de Moçambique almoça com empresários chineses

 

O presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, participou na segunda-feira num almoço com mais de duas dezenas de directores de empresas chinesas, num clube privado de Pequim, à margem do Fórum de Cooperação China/África

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]evento reuniu 24 empresários chineses, incluindo o conglomerado Tiens Group, que opera nas áreas biotecnologia, logística, finanças e comércio internacional, no Beijing Capital Club, segundo imagens difundidas na rede social Wechat de um dos participantes. Situado no norte de Pequim, junto ao estádio olímpico, e fundado em 1994, o Beijing Capital Club é o “mais antigo” clube privado de negócios da capital chinesa, segundo o seu portal oficial.

Este fim-de-semana, o líder moçambicano revelou que o fluxo de transacções comerciais entre Moçambique e China atingiu os 4,6 mil milhões de dólares, entre 2013 e 2017.
Entre os produtos exportados por Moçambique, Nyusi destacou os bens agrícolas, minérios e matérias-primas, enquanto as importações oriundas da China foram sobretudo compostas por automóveis, cereais, gasóleo, maquinaria e cimento. “No que toca aos investimentos, a China tornou-se também um dos maiores investidores no nosso país: entre 2013 e o primeiro semestre de 2018, foram aprovados 148 projectos, num valor total de 751 milhões de dólares, em investimento directo chinês, susceptíveis de criar 20.000 postos de trabalho para os cidadãos moçambicanos”, acrescentou.

Nyusi destacou a presença da China nos sectores do turismo, agricultura e agro-indústria, e lembrou o potencial do seu país na mineração, produção de energia e infra-estruturas. “É na agricultura, em toda a sua cadeia de valor, onde vemos uma vasta, rápida e imediata participação do empresariado chinês, através da construção de infra-estruturas agrícolas, introdução de novas tecnologias, mecanização e investigação”, disse.

Recursos apetecíveis

O líder moçambicano lembrou ainda que “a República Popular da China é um dos maiores investidores na indústria hoteleira de Moçambique, com grandes empreendimentos turísticos nas principais cidades do país, com destaque para as que pertencem ao grupo AFECC Gloria, donos do maior hotel de Maputo”.

Nyusi destacou “o potencial, ainda enorme, por explorar” no sector da pesca, “sobretudo na pescaria do atum e no cultivo de peixes crustáceos e moluscos”, e na produção de energia hidroeléctrica, solar, eólica, notando que o país detém reservas de 180 biliões de pés cúbicos de gás natural e 20.000 milhões de toneladas de carvão.

“A existência de um grande potencial energético, aliado à localização geoestratégica do nosso país, coloca-nos numa posição privilegiada em relação aos outros países da África Austral, no que concerne à produção de energia, cuja procura situa-se 40 por cento acima das actuais necessidades”, disse.

Na área das infra-estruturas, o líder moçambicano afirmou que é “imperativa a construção de mais portos e a reabilitação das estradas”, enquanto na componente habitacional, “existe um enorme potencial para um mercado que abrange um universo de 350 mil funcionários públicos e jovens em início de carreira”. Nyusi revelou que esteve reunido, em Pequim, com empresários da área farmacêutica, apontando a produção de vacinas, pesticidas, drogas e medicamentos agrários como uma oportunidade de investimento.
O evento contou ainda com a participação do ministro moçambicano dos Recursos Minerais e Energia, Max Tonela, o director-geral da Agência para a Promoção de Investimento e Exportações (APIEX), Lourenço Sambo, e do presidente da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH), Omar Mithá.

Trinta e nove empresários moçambicanos, do sector público e privado, marcaram também presença.

5 Set 2018

Um tremendo fotógrafo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”.

Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho.

À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”.

Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”.  

Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto.

Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava.

Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se.

O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone.

Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína.

Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.

24 Mai 2018

Raquel Dias, coordenadora na área cultural | Uma casa chamada Macau

[dropcap style=’circlr’]N[/dropcap]asceu em Moçambique, estudou em Portugal e em Inglaterra, mas a maior parte da vida passou-a em Macau. Uma terra que, apesar de não ser a sua, a faz sentir-se em casa. “Independentemente do que decidir para o meu futuro, vai ser sempre o meu poiso”, diz Raquel Dias.

“Foi só há pouco tempo que deixei de olhar Macau como um sítio de passagem”, uma visão que “marca também um pouco a maneira como nós nos relacionamos com a terra”, observa a jovem de 31 anos. “É um lugar onde investimos pouco – tanto financeira como emocionalmente – porque achamos sempre que vamos ficar por pouco tempo e depois acabamos por ficar uma quantidade de anos e não construímos nada”, realça Raquel Dias, que chegou a Macau em 1991.

Essa viragem teve os primeiros sintomas quando saiu de Macau: “Aos 16 anos decidi que queria ir para Portugal e chateei tanto a cabeça dos meus pais que fui para um colégio interno. Foi um momento marcante na minha vida, porque nunca me tinha questionado sobre a minha identidade e foi aí que começaram as minhas grandes dúvidas existenciais, porque percebi que era ‘mais ou menos portuguesa’ ou pelo menos não era portuguesa de Portugal”. “Foi a primeira vez que tive essa sensação de não ter terra”, embora, “às vezes, seja bom, porque ao sermos de lado nenhum podemos ser de qualquer lado”. “Foi um momento marcante, mas exacerbado também, claro, pelas hormonas da adolescência”, brinca.

Depois de Portugal, Raquel Dias foi estudar História e Antropologia para Inglaterra. Quando terminou o curso, regressou a Macau. A ideia era ficar um ano e voltar a Inglaterra, mas acabaria por deixar-se estar na terra onde cresceu até hoje.

Arregaçar as mangas

O primeiro emprego surgiu, pouco depois do retorno a casa, na Delta Edições, empresa que produz e distribui a Revista Macau. Foi a primeira experiência de várias do mesmo tipo, dado que trabalhou de seguida para diferentes projectos editoriais, incluindo as revistas Essential Macau, Macau Business e High Life ou no portal Live and Love Macau, da qual foi uma das fundadoras, actual Macau Lifestyle.

Pelo meio recebeu uma oferta do Wynn, que estava a preparar a abertura do Wynn Palace. “Fizeram-me uma proposta aliciante e acabei por ficar um ano e meio”, explica. Integrada na equipa de relações públicas, “fazia a edição do material escrito em inglês e também traduções ou ‘news clipping’, na verdade, um pouco de tudo”. “Eu não tinha ideia de que fazer a abertura de um casino era tão intenso e cansativo, pelo que acabei por sentir saudades e queria voltar para um projecto editorial”, recorda.

Depois do regresso ao mundo editorial, Raquel Dias decide embarcar numa nova aventura: “Comecei a trabalhar como freelance, a fazer tradução e interpretação simultânea de inglês-português e vice-versa, porque queria trabalhar para mim”. “Descobri que me dava imenso prazer e foi o que fiz durante algum tempo. Claro que era óptimo trabalhar por conta própria, mas também tem as suas desvantagens”, sublinha.

Foi, aliás, por essa razão, que aceitou de imediato uma oferta de trabalho na Fundação Rui Cunha, onde está desde Março como coordenadora da área de apoios socioculturais e filantrópicos. “Nem pensei duas vezes, porque já tínhamos falado antes”.

É uma mulher de sete ofícios, mas “tudo um pouco por acaso”: “As coisas foram acontecendo, sem nada muito programado”. “Não sou historiadora, não sou antropóloga e também nunca achei que me pudesse auto-intitular de jornalista”, realça.

O que lamenta? Nunca ter voltado a Moçambique. “Nunca voltei a Moçambique e era uma viagem mesmo muito importante para mim, mas se calhar precisamente por essa razão ainda não arranjei tempo para a fazer”, diz. Acima de tudo, “queria voltar lá, gostava de conhecer uma das terras que também é minha”.

11 Mai 2018

José Dias, arquitecto e ex-funcionário do Instituto da Habitação: “Corrupção começa nas obras públicas”

Chegou a Macau em 1990 e trabalhou até 2008 no Instituto de Habitação. O arquitecto José Dias lamenta que a qualidade das habitações públicas tenha piorado, sobretudo ao nível da área reduzida dos apartamentos. Em relação ao campus da Universidade de Macau, José Dias defende que o projecto está longe de ser moderno, além das fragilidades ao nível de esgotos, água e electricidade

[dropcap]F[/dropcap]alou do ambiente artificial que existe em Macau. Quando aqui chegou, alguma vez pensou que o território iria desenvolver-se desta maneira, ou que os arquitectos teriam de trabalhar, na sua maioria, com este tipo de ambiente artificial?
Estava em Moçambique e recebi uma oferta para trabalhar em Macau. Nessa altura a presença portuguesa era mais acentuada. Não é que não se soubesse o que ia acontecer. E depois da transição as coisas mudaram instantaneamente. Lembro-me de ter alugado um apartamento que estava à venda por 500 mil patacas, um T4. Em 2000 a casa valia uns quatro ou cinco milhões de patacas. É curioso que tudo isso se está agora a debater. Hong Kong está, neste momento, a debater a injustiça dos ricos elevarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque pode interferir, controlar o crescimento. Isto nasce do sistema democrático, que é livre, mas depois verificamos que a liberdade é fictícia, porque é livre à custa dos que estão bem instalados e que até fizeram os seus negócios e se sacrificaram, mas são ricos. Há outros que não o são e cada vez têm menos possibilidades.

Em Hong Kong há também o debate em torno da dimensão reduzida dos apartamentos, e há cada vez mais pessoas a viver em gaiolas. ade levarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque o Governo. Acredita que o mesmo pode acontecer em Macau?
Já existe esse problema. Há muita pouca racionalização, tanto em Hong Kong como em Macau, no que diz respeito ao crescimento. Não há controlo deliberado, age-se por emergência e não há um plano que controle o desenvolvimento do jogo, por exemplo.

FOTO: Sofia Mota

Tem alguma expectativas positivas em relação aos novos aterros? Acredita que poderá trazer algum desenvolvimento sustentável?
Vai acontecer o mesmo que já aconteceu: tudo começa por estar regularizado e depois começa a ser empolado. Isso tudo vai diminuir a disponibilidade de área livre. Em primeiro lugar começam por ocupar o mar, mas nunca sabemos até onde vai esta tentação, e há uma perspectiva de agravamento. As coisas não vão mudar e podem até agravar-se, porque vai permitir-se mais população, e os mesmos espaços de Macau vão ser ocupados pelo dobro das pessoas, e isso tem consequências imprevisíveis. Macau é uma cidade com muitas fragilidades e a construção em altura não está a ser ponderada devidamente. É um paraíso artificial, digamos assim.

Em que sentido?
Estamos constantemente sujeitos a surpresas. Veja isto [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. É um quilómetro quadrado entregue a Macau, mas aparentemente, porque está a ser manipulado pela China. Não se percebe, porque se as pessoas tivessem mais discernimento, fariam com que isto tivesse uma maior apetência. [Macau] é um tesouro que se vai extinguir, como Hong Kong.

Considera então que Macau vai desaparecer.
O mais natural é que seja absorvido, porque são apenas 700 mil pessoas perante mais de um bilião de pessoas [a residir na China]. Isto não é nada e desaparece, de um momento para o outro. Basta uma perspectiva diferente, um plano de acção diferente para se extinguir, pura e simplesmente.

Refere-se também à extinção da cultura e do património?
Sim, com prejuízo para a China. Portugal é a Europa e para a China é um relacionamento fácil. Podemos ficar num cantinho a pensar em Macau, mas é uma coisa temporária. Das duas uma: ou há uma perspectiva criativa, optimista, ou então há uma perda de toda a identidade criada.

Ainda sobre a altura dos edifícios. O Governo português soube travar muitas das situações que o Governo chinês não está a conseguir travar?
Penso que não. A China tem de intervir para que se cumpra a Lei Básica, porque entregar passivamente [projectos] a novos profissionais sem assegurar a qualidade da intervenção é um pouco perigoso. Refiro-me a questões técnicas e à competência profissional, que é preciso salvaguardar. Não houve nenhuma intervenção de Macau neste projecto, por exemplo [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. 

Lamenta que este campus…
Não seja mais moderno. Não se vincula à modernidade, na sua linguagem é um projecto neoclássico. Mas fundamental seria o respeito pelas regras da construção, sobretudo ao nível do fornecimento de água, esgotos e electricidade. São coisas fáceis de fazer se houver uma fiscalização íntegra.

Voltemos à sua vinda para Macau. Foi convidado pelo Instituto da Habitação e acompanhou o processo de construção de habitações públicas.
Habitação económica, sobretudo.

Comparando essa altura com a actual, acha que…
Agravou-se a qualidade das habitações. O espaço foi reduzido e hoje é possível ocupar uma sala se estendermos os dois braços. Na altura, havia uma lei portuguesa, já ultrapassada, que estabelecia as áreas, mas esse decreto-lei foi alterado, para pior, e as áreas foram diminuídas. Havia um risco de manipulação que se agravou depois da transferência de soberania e não há nenhuma perspectiva de melhoria da habitação.

Posso concluir que não lhe agrada o empreendimento de Seac Pai Van.
É pior em termos de área. Mas isto também tem o consentimento das pessoas, porque a população em geral não tem uma consciência. Mas os que acompanham as questões da Administração Pública sabem. E não se perspectiva nenhuma melhoria das condições. Aqui [no campus da UM], por exemplo, estamos numa criação nova. Há espaço desafogado, mas se formos ver as habitações lá dentro, não têm, por exemplo, sifões nas casas de banho, e isso leva a que haja maus cheiros.

A qualidade da construção deste campus tem sido, aliás, bastante questionada. Poderia ter-se feito muito melhor?
É evidente, sobretudo nestes aspectos que podem ser subvertidos.

Quais eram as directrizes para a construção de habitação pública quando chegou a Macau? Actualmente, há muitas queixas sobre o planeamento do Governo a esse nível. Na altura, esse planeamento era melhor?
Era, simplesmente porque havia menos procura. Era mais fácil dominar a situação e o corrupto não intervinha, ficava calado na sua secretária. As ofertas em termos de corrupção são sempre feitas na altura de [elaboração do projecto].

Observou casos em concreto?
Nunca observei nenhum caso porque sempre que via alguma situação que estava contra a lei eu não aprovava, chamava a atenção e mandava alterar. A corrupção não é facilmente visível, e começa logo nas obras públicas, que não fazem o controlo do projecto. Vejo o projecto, corrijo o que está errado e segue, mas ele não vai ser feito como está, vai ser alterado e é aí que se dá a corrupção. O construtor alinha com as obras públicas e arranja maneira de subverter a situação. Mas isso acontece em todas as áreas.

Há uma crítica constante em relação ao funcionamento das obras públicas. Acredita que algo pode mudar ao nível da celeridade de aprovação de projectos?
É sempre possível, e isso começa nas hierarquias. Se há fenómenos exteriores que denunciam situações extremamente graves, as pessoas entram em pânico e tomam medidas. Ninguém faz a denúncia porque é lesado por isso. Esta é uma situação generalizada. Macau e Hong Kong sofrem as consequências de uma alta pressão da China, a que esta está sujeita também. A China alterou-se profundamente nos últimos anos e o que acontece é que está sob alta pressão de 1.4 bilião de pessoas.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Como era ser arquitecto na altura em que chegou? Apesar de ter estado na Função Pública, fazer arquitectura era mais desafiante?
Claro. O arquitecto português vem de fora e vem com uma cultura e experiência determinada. Alguns primam pela isenção e há outros que aproveitam as oportunidades de singrarem e ganharem mais dinheiro. Isso agravou-se desde essa altura para cá e o arquitecto passou a ter menos influência. Ainda agora houve uma exposição sobre o trabalho de José Maneiras, e ele seguiu as regras da escola do Porto, e procurou fazer o melhor possível dentro das suas possibilidades. Mas teve de enfrentar desafios, nomeadamente de quererem alterar coisas nos seus projectos indevidamente. Mas isso não quer dizer que as novas gerações sejam piores.

Actualmente é difícil fazer arquitectura de autor, fora destes grandes projectos ligados ao jogo?
É difícil intervir quando já estão estabilizados certos núcleos. Há uma série de equipas que trabalham e que são independentes e que têm fornecimento de trabalho de forma regular. E essas equipas são sempre as mesmas, as que se estabilizaram e encontraram formas de sobreviver. Falo do Bruno Soares, Maneiras, Carlos Marreiros, o Rui Leão e a esposa. Cada vez há menos construção mas, por outro lado, isso não é bem assim, porque ela surge pelos novos aterros ou pelas alterações que são solicitadas. Agora solicitei junto das obras públicas um cartão para exercer a actividade, e tenho esse cartão, mas até agora procurei trabalho e tenho tido alguma dificuldade. 

Tem, portanto, vontade de regressar. Do que tem mais saudades?
Talvez agora nesta altura fosse mais aliciante fazer acompanhamento de obra. Há sempre inovações e realizações no processo de construção. 

Considera que faltou planeamento para o futuro, ao nível de habitação pública, tendo em conta o crescimento populacional que se verificou em Macau?
Está em curso a construção dos novos aterros, sobretudo o mais importante para a habitação pública [zona A]. Isso vai estabilizar e proporcionar mais habitação económica, mas penso que este assunto poderia ser resolvido de outra maneira, negociando a remodelação dos edifícios no chamado casco velho, ou zona antiga da cidade. Há uma comissão que regula essa intervenção, mas penso que é pouco eficaz e não se tem feito quase nada para a reabilitação da construção antiga.

Que projectos da sua carreira destaca?
Fiz sobretudo muita obra em Moçambique, onde nasci, em Nampula, e também Maput e Lourenço Marques. Aliás, a minha última obra foi aí, com um projecto de nove habitações de rés-do-chão e primeiro andar.

Era mais fácil fazer arquitectura nas ex-colónias?
Claro que era, mas não havia muito trabalho a fazer. Este trabalho foi pedido por um serviço de manutenção de estradas. Em Nampula construí alguns edifícios em altura, mas apenas com três andares.

Precisava de um novo desafio na sua carreira, e foi por isso que aceitou Macau?
Sim, estava tudo muito paralisado e as condições de manutenção não eram fáceis.

A Associação de Arquitectos de Macau e outras entidades têm feito o suficiente para preservar a memória da arquitectura portuguesa em Macau?
Deve-se salvaguardar, de uma forma geral, os empreendimentos e chegou a fazer-se algo sobre o trabalho de Manuel Vicente, e agora sobre José Maneiras. É sempre possível fazer um levantamento urbano. Pode-se sempre fazer mais alguma coisa. Cheguei a escrever sobre a [importância] da intervenção e preservação no casco velho [zona antiga da península].

8 Mai 2018

Amnistia Internacional | Chinesa Haiyu viola leis moçambicanas de exploração mineira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Amnistia Internacional acusa a empresa mineira chinesa Haiyu Mozambique Mining de violar as leis moçambicanas e internacionais numa exploração de areias pesadas em Nagonha (Nampula), considerando que a operação mineira resultou no desalojamento de 290 pessoas.

“A Haiyu violou a legislação nacional nas áreas do ambiente e da exploração mineira. Antes de estabelecer as suas operações, a empresa não consultou os residentes de Nagonha; não realizou uma Avaliação de Impacto Ambiental adequada para identificar os riscos de minerar e despejar areias nas zonas húmidas; e não monitorizou e reportou os seus próprios impactos ambientais ao governo para verificação e aprovação”, indica a Amnistia Internacional num relatório que foi apresentado ontem em Maputo e ao qual a Agência Lusa teve acesso.

No relatório “As Nossas Vidas Não Valem Nada – O Custo Humano da Exploração Mineira Chinesa em Nagonha, Moçambique”, a organização de direitos humanos considera que “as práticas da Haiyu transformaram a topografia da área e afectaram o sistema de drenagem das zonas húmidas”, alterações que “tiveram impactos negativos sobre o ambiente e a população local”.

O mais importante desses impactos deu-se na manhã de 7 de Fevereiro de 2015, quando uma inundação súbita destruiu parcialmente Nagonha, uma aldeia litoral no distrito de Angoche, na província de Nampula, norte de Moçambique.

“Quarenta e oito casas foram imediatamente arrastadas para o mar, pois a água das inundações abriu um novo canal em direcção ao mar que atravessou a aldeia, dividindo em duas a duna sobre a qual a aldeia está situada. As inundações deixaram cerca de 290 pessoas desalojadas. A edilidade local registou mais 173 casas parcialmente destruídas”, recorda a Amnistia Internacional (AI).

Segundo os especialistas consultados pela AI, esta situação deveu-se ao “impacto das operações mineiras da Haiyu (…), nomeadamente o impacto das contínuas descargas de areias da mineração sobre as zonas húmidas e os cursos de água”, o que causou alteração na topografia e, em última análise, as inundações de Nagonha em 2015.

Direito à terra

Por outro lado, quando confrontada pelos residentes desalojados de Nagonha para a necessidade de os compensar pelos estragos, a empresa chinesa primeiro recusou e depois apresentou uma proposta considerada inaceitável.

“O plano de reassentamento proposto pela Haiyu era extremamente inadequado e os residentes de Nagonha sentiram-se insultados e recusaram a oferta”, escreve a AI. Ou seja, para a organização não-governamental, “a Haiyu (…) não seguiu o processo de diligência devida adequado em termos de direitos humanos para identificar, impedir, atenuar e, se necessário, reparar os impactos adversos das suas operações sobre os residentes”.

A AI considera também que o Governo moçambicano sabia que a Haiyu não tinha feito as avaliações de impactos ambientais nem, como é de lei, consultou os residentes em Nagonha para obter deles o “direito de uso e aproveitamento da terra” (DUAT), um direito que estes têm quando vivem num terreno por mais de dez anos.

“O Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural (MITADER) tinha conhecimento de que a Haiyu não tinha consultado e ouvido os residentes de Nagonha para obter a transferência do DUAT” e “sabia que a Haiyu não tinha realizado as auditorias de impacto ambiental”, adianta a AI.

Ainda assim, concluiu a AI, o governo permitiu que a Haiyu avançasse com a exploração mineira em Nagonha. “Apesar das provas sobre os impactos negativos das operações mineiras sobre as pessoas de Nagonha, o governo permitiu a continuação de práticas de exploração mineira prejudiciais, sem qualquer controlo. (…) As falhas do governo em fazer cumprir a legislação e regulamentos existentes constituem uma omissão evidente no seu dever de proteger os direitos humanos de interferências de actores não estatais”, aponta a ONG.

A Haiyu, que explora areias pesadas em duas concessões em Nampula (Nagonha e Sangage) desde 2011, das quais extrai minerais como a ilmenite, o titânio e o zircão, continua a negar qualquer responsabilidade.

“Em primeiro lugar, as chuvas foram intensas, muito violentas e de uma escala nunca vista durante 100 anos. Isto constitui força maior. Foi uma catástrofe natural, não foi provocada por actividade humana. Em segundo lugar, a extracção de areias pesadas envolve a separação por gravidade e os resíduos (na forma de areia branca, neste caso) são devolvidos ao seu ponto de origem, imediatamente após a separação. 99 por cento da areia permanece no seu ponto de origem e não é extraída. Isto contradiz a ideia de que houve uma alteração no canal para as águas subterrâneas, o que não é verdade”, argumentou a empresa numa mensagem à AI.

Após ouvir especialistas, a AI considerou que “a reivindicação de que as chuvas de Fevereiro de 2015 ‘foram de uma escala nunca vista durante 100 anos’ é falsa”. A Haiyu continua a despejar areias sobre as zonas húmidas até hoje.

29 Mar 2018

Arqueologia das marés

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]andelstam (1891-1938) e Vladimir Holan (1905-1980) são um exemplo manifesto de como um dia – dizia a Zambrano – todos os vencidos são plagiados.

Seres de excepção, expelidos pelos caprichos da História e por sistemas sociais mesquinhos, cínicos e redutores, ei-los hoje inevitavelmente celebrados como figuras nucleares.

Ocorre-me agora um terceiro caso, este africano, o do sul-africano Breyten Breytenbach (1939).

Narremos rapidamente os percursos de vida dos três.

Mandelstam, educou-se fora da Rússia – em Heidelberg e na Sorbonne – e voltou à Rússia depois de uma viagem por Itália e por outros países europeus, para se ligar ao movimento poético acmeísta e publicar em 1913 a plaquete A pedra, que o catapultou imediatamente na notoriedade.

No imediato da Revolução, foi dos primeiros poetas a enveredar por temáticas sociais. Mas só publicaria o seu segundo livro, Tristia (coisas tristes), em 1922, simultaneamente em Berlim e em St. Petersburg. Ainda viveria cinco anos de relativa discrição antes dos inquisidores começarem a procurar nos seus versos o pêlo no ovo. E em 1927 declara-se frontalmente contra o regime soviético. A escrita de um poema onde zurzia em Estaline, «cujos dedos gordos parecem engordurados vermes», em 34, valeu-lhe ser desterrado para Vorónezh, e morreria 4 anos depois num campo de trabalho.   

É um dos grandes poetas do século XX mas se lhe conhecemos a obra completa foi porque a mulher, Nadezha Maldelstam, apesar da indigência a que foi exposta, lhe copiou os poemas e escondeu-os, ou decorou-os, até que os pôde publicar em Nova Iorque.

Quando ela se lamentava da perseguição de que eram objecto, ele replicava com humor: «De que te queixas, este é o único país que respeita a poesia: mata por ela. Em nenhum outro lugar ocorre isso!».

Hoje apodrecem no negrume os seus detractores ou são notas quase ilegíveis no rodapé das biografias de Mandelstam.

Em Vladimir Holan, o grande poeta checo do século XX – que só tem rival no posterior Miroslav Holub – o encontrão que lhe deu a História conhece tonalidades grotescas.

Holan começou como um poeta mallarmeniano, precioso, obscuro e de rimas rebuscadas. Teve depois uma conversão à poesia social, tornando-se na voz nacional de resistência à invasão dos nazis. Correu riscos físicos e militou no Partido Comunista e escreveu inclusive um livro alinhado, Soldados do Exército Vermelho. Paradoxalmente, em 48, o novo poder saído da guerra acusa-o de escrever de forma «obscura e decadente» e condena-o ao ostracismo. No mesmo ano, também o destino escarnece dele e nasce-lhe uma filha portadora do Síndroma de Down. É uma espécie de escalpe cósmico.

Refugia-se na ilha fluvial de Kampa, no centro de Praga, e raramente saía de casa. Só noite dentro se entregava a longas passeatas, à hora em que na cidade só se ouviria o barulho dos seus passos. Chega a Primavera de Praga e querem recuperá-lo como poeta nacional, mas esmagada a reforma do regime fica mais isolado, até à sua morte em 1980.

Hoje é o poeta nacional. E a sua poesia despojada, bruta, prosaica, dissonante, de palavras esculpidas, é inimitável, enquanto a dos seus rudes inimigos foi diluída pela espuma do tempo.

Breytten Breyttenbach (1938) é um poeta sul-africano de um quilate inigualável. Foi preso durante o regime do apartheid por ter casado com uma indiana. Oito anos. Tornou-se amigo de Mandela. Mas uns anos depois da liberdade, não tolerando a direcção que o país tomava, mudou-se para Paris. Por ocasião dos 80 anos de Mandela dirigiu-se-lhe em carta no Le Monde, uma interpelação que interrogava os rumos do país e onde, no essencial, tocava nos pontos que com Zuma se potenciaram, arrastando o país para uma degradação triste e indesejável.

Está condenado a ser postumamente o grande poeta de um país que hoje faz tudo para esquecê-lo.

Três homens que não pactuaram com a mentira e tornaram mais exacta a proposição de Walter Benjamin, segundo a qual há uma arqueologia psíquica por detrás dos fluxos humanos que corrige a história, fazendo-a retomar com o máximo esplendor aquilo que primeiramente foi recalcado pela grosseira falácia do presente. Como aventava o Freud para os sonhos, o que importa afinal é o que está latente e não o que aparece manifesto. Pois «é ao ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, é ao ritmo dos recalcamentos e dos retornos do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória, antes de mais nada, se afina» (Didi-Huberman).

No fundo, a dinâmica do presente é uma propulsão para inverter os sentidos da história e semear no seu manto os sinais da reversão. O Ying devém Yang, contra todas as aparências e a marcha linear do progresso.

Neste sentido, não fiquei surpreendido que Putin tenha aproveitado a efeméride da Revolução de Outubro para insinuar que talvez a leitura oficial da sua História esteja equivocada e haja pouco a festejar. Uma meia verdade, pois há os factos e há os símbolos e estes mantém o seu capital de promessas. O que me chocou foi ter sido ele a dizê-lo.

Porém os poetas, mesmo que momentaneamente reprimidos, reduzidos à indigência  tinham a consciência desperta. Como Mandelstam: «a poesia é um arado que reinventa o tempo de tal modo que as camadas mais profundas, o seu húmus, afloram à superfície».

Um poema breve de Holan: ENCONTRO: «Chuva no descampado… O feno húmido …/ Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…/ Piscadelas… Carícias intermitentes… Desaparição das formas…/ Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão do cemitério…/ “Agrado-te?” – Sim, sim…/ – “Amas-me?” – Não.»

16 Nov 2017

Intervalo

07/ 11/ 2017

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, com a falta de tempo para me entregar ao “espírito do sério” faço um intervalo nas reflexões que andava a fazer para me entregar ao devaneio do instante e ao que o quotidiano me oferece, como, neste preciso momento, a visão daquela penca tão grande e adunca que ao beber a bica, antes que os lábios toquem o café, lhe fica o nariz pingue.

“Tinha o rosto branco de cólera”, leio, e eis coisa que não temo encontrar nesta cidade de acácias vermelhas. Contudo, deparei, numa banca de rua, com um volume dos diários de Mircea Eliade, Fragments d’un Journal, 1970-72, e custou-me euro e meio.

A chatice é que vou atrasar tudo, para me alimentar deste naco. E a 19 de Outubro de 72 deparo com uma entrada sobre Allan Watts.

Antes de a transcrever, conto a morte deste senhor. Dava uma aula e no meio de uma digressão esfuziante que entusiasmou os alunos, anunciou, Quando terminar este raciocínio, vou-me sentar em lótus e vou morrer. A extensa maioria considerou o anúncio mais uma charada do mestre, até pela energia física que dimanava. E, em calando-se, Allan Watts pôs-se em posição de lótus e não mais se levantou.

Narra agora Eliade:

«Acabo de ler a autobiografia de Allan Watts. Lembro-me das primeiras conferências sobre o Zen que ele fez aqui, em Chicago. Achei-as simplesmente extraordinárias. No entanto, na época, em 1956, eu não tinha captado bem a sua “mensagem”. E como prova disso conto a nossa surpresa, minha e de Christinel, quando ele nos veio visitar uma manhã e, contrapondo ao café que lhe oferecíamos, Watts nos perguntou se nós não tínhamos antes vodka…»

Este espiritualista heterodoxo, como Lao Tsé, gostava da sua pinga. São os que prefiro, os que prescindem do ascetismo e não iludem a embriaguez de ser humano.

No mesmo livro, um apontamento sobre Gide e o seu diário, de 1946: «O mundo não será salvo, a poder sê-lo, senão pelos insubmissos. Sem eles, etc.»

Hoje Gide teria necessidade de corrigir a coisa, substituindo insubmissos por insones. Só os insones não cabulariam na transformação de si porque a lâmina em que atravessam a vida não lhes deixa. Só nessa desesperada urgência dos insones antevejo uma pureza que não pode ser pervertida pelos meios.

Telefona-me a minha mulher, Como vai a revisão, pergunta. Trabalhamos na revisão de um grosso livro do arquitecto José Forjaz. Aí se reúnem palestras, dadas em todo o mundo, conferências, textos de reflexão vária, dirigidas à academia (ele foi professor em vários países e director da Faculdade de Arquitectura em Moçambique) ou a outros públicos.

Espantoso, neste tijolo de condensada sabedoria, é que raramente o Forjaz cita. Embora todo o saber aí esteja implícito e haja alusões, há um pudor em exibir o conhecimento. Atitude aliás comum aos livros de artistas. Creio que estas reflexões aparentemente mais ancoradas no empírico do que no confronto com o teórico (está lá, mas refractado) resultam do facto de que a arquitectura exige uma grande habilitação técnica e uma minúcia da ordem do fazer. Naquela as teorias são consecutivamente testadas – o que dá ao arquitecto uma visão holística. É o que acontece neste livro excelente, e gosto especialmente dos capítulos em que Forjaz relaciona a arquitectura com a medicina ou apela a uma contenção da “arquitectura espectáculo” em detrimento de um respeito para com a paisagem e o ambiente.

Uma lição que talvez fosse pertinente levar a Macau.

O Forjaz é o contrário de mim, que cito muito, e isso nem sempre é compreendido. O meu material afinal não é a pedra, o vidro, a coluna ou a abóbada, mas os livros, o pensamento alheio que interpela o meu e o nutre. Tal como o sapateiro não pode deixar de citar o formão, a cola, o martelo, o prego, o x-acto, seria desonesto eu não citar os meus materiais, aqueles que me permitem a aceleração do pensamento. Através deles penso com, e empreendo no que acredito: que a cultura seja sobretudo um acto de relação, uma plataforma em que o vivido e o lido se imbricam e irmanam.

Novo telefonema. É o Jonas. Dia catorze, a complementar a inauguração da exposição do ceramista Jonas Donato, Saudades da Lata, será lançado o livrinho que fizemos juntos, O blue da Majika (o nome popular para as violas de lata). Ele recriou quinze instrumentos musicais tradicionais e eu fiz um poema para cada um deles, tendo inventado uma Cosmologia em que no princípio era o Vento – o qual vendo como a desarmonia e a indiferença cresciam entre os homens inventou o ritmo e os instrumentos musicais para os unir e lhes alimentar a empatia.

E perderam os animais a fala porque rejeitaram a música.

Segue o poema para o Pankwé:

«DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ// Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava / um buraco que ela tinha com caril de amendoim/ e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado/ com a forma das setas por não conhecer nada parecido/ no seu corpo que desse a vida/ enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.// E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós. // Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas. / Eram de barro mas amoleciam se manejados. /A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava./ O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.// Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios! // Aí a minha mãe criou o Pankwé. / As duas cordas são os grandes lábios/ a cabaça o útero/ – do que aí ressoa nasci eu! / Eu e mais um cento de cabritos. // E desde então o meu pai só faz o que gosta:/ sobe aos imbondeiros e abre cisternas.»

9 Nov 2017

A sombra do inimigo

10/09/2017

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sfalfado pela viagem, desde Macau, reencontro um país congestionado pelos desastres que têm na arbitrariedade dos homens a sua origem natural.

No mesmo dia, três notícias deprimentes.

Moçambique está a ser investigado por supostamente ter comprado clandestinamente, violando o disposto nas sanções da ONU, mísseis à Coreia do Norte. Primeiro, é um país que se vilipendia aquele cujo governo persiste em fazer tudo às escondidas; depois, que inimigos pode ter uma nação que não consegue sequer produzir (tendo água a rodos e terra fértil) a alface e o tomate que mete na mesa, tendo de comprá-los à vizinha África do Sul? Mísseis?

O maior inimigo do moçambicano é a sua própria sombra.

A nova lei do cinema, aguardada pelo sector há décadas, é um tiro no pé do bom senso.

Moçambique teve como uma das poucas singularidades da sua história ter apostado no cinema desde a independência, e daí que cá tivessem aterrado personalidades como Jean-Luc Godard, Jean Rouch, ou Ruy Guerra e se gerassem algumas gerações de cineastas que anualmente, mal ou bem,  iam produzindo filmes. Para além disso era um dos poucos países africanos com técnicos de cinema para poder atrair produções internacionais.

Só houve dois critérios para o delineamento desta lei carimbada contra todos os avisos da classe: o controlo dos conteúdos (isto é a censura) e o maior lucro possível e imediato à mínima visibilidade de qualquer câmara na rua. Vou caricaturar porque a realidade o mais das vezes imita a caricatura.

Para um cineasta poder ir à rua gravar o acto de compra de tomates pela protagonista, para posteriormente os lançar à cara da segunda mulher do seu marido, teve de previamente ter depositado no Instituto de Cinema um guião que foi esmiuçado por um comité de leitura (o qual averiguou se aquela cena não “feria os costumes”) e de pagar uma taxa (absurda, de alta) por filmar em espaço público. Fora o reforço dado ao poder discricionário do tal comité de leitura, tudo pareceria normal.

Só que entretanto houve greve de chapas e a vendedora dos tomates não conseguiu chegar a horas ao sítio habitual da sua venda, pelo que só há beringelas à venda – então terá de se mudar a cena e depositar o novo guião no Instituto de Cinema, pagar uma taxa (penalizadora), desta vez por se ter modificado o guião (que será reexaminado, auscultando-se se a nova cena “não fere os costumes”), acrescida pelo pagamento de uma nova taxa para se “renovar”a autorização de filmar vegetais naquela esquina. Tudo isto, supostamente, controlado por fiscais.

Num país onde o transe da burocracia reina imagine-se a agonia, o sufoco e o delírio a que se chegará, em nome da lei.   

Terceiro sinal deprimente. O relatório independente da Kroll sobre o processo das Dívidas Ocultas confirma o que já se sabia mas nunca fora declarado por uma instância internacional: para liderar as empresas e os projectos de interesse e âmbito públicos são invariavelmente escolhidos os gestores mais incapazes. A única regra é: Percebe de futebol? Vai para reitor da Universidade de Direito. A única habilitação: ter o cartão do partido. O que resulta num desbarato de tempo (de gerações), de dinheiro e energias que só se explicará à luz da hipnótica euforia do “potlach”.   

Tudo o que um país em crise profunda não precisava.

Não sei se me apetece sair à rua, uma desgraça nunca vem só, sobretudo quando o círculo é vicioso.

12/09/2017

Após uma hora de prospecção encontro a frase de Peter Sloterdijk que procurava: «Alma é aquilo que não se mediatiza» (in O Estranhamento do Mundo, Relógio d’Água, 2008, Lisboa). E busca dentro, folheando à esquerda e à direita, constato: o Sloterdijk é um verdadeiro designer da filosofia.

Será um dos filósofos actuais mais estimulantes, porém, simultaneamente, enche as frases de achados. «Aí, onde termina a história das religiões começa a história do design.»: uau! É uma tremenda frase de efeito e que faz de imediato eco em nós: eureka! Que bela citação, resulta sempre.

Foi só quando reli o livro, num dia de descontracção absoluta que me permitiu ir petiscando sem a pressão de procurar um apoio funcional para qualquer ideia, que, dando de novo com a frase, me acudiu perguntar: mas afinal as leis do design, o telos que motiva esta disciplina, não estavam já claramente presentes nas catedrais góticas? Não há até uma banda desenhada franco-belga onde as catedrais góticas se transformam em naves espaciais exactamente por causa da sua sugestão aerodinâmica? Dei comigo a suspeitar da fiabilidade da frase do Sloterdijk –  talvez mereça um exame mais atento aos seus fundamentos.

A condição básica para me libertar do fascínio da frase, que me obliterava o raciocínio, foi não andar à procura de nada, estar entregue a uma leitura deambulatória, arredia a qualquer utilidade imediata. Só nesta leitura sem tensão, dir-se-ia imotivada, é que enfrentei o livro de forma activa. Ou seja, as leituras excessivamente orientadas, dada a pressão e a ansiedade, correm o risco de volverem uma escuta com projecção. E aí alheiam-nos quer do distanciamento, quer do detalhe que faz toda a diferença no essencial.

Tome-se outro exemplo: «É característico dos místicos inverterem a tendência básica do desenvolvimento do líquido em sólido (…) os ensinamentos místicos são passíveis de serem interpretados (…) como escolas de mergulho (…)». A adesão é imediata.

Contudo, algo em mim – o ácido úrico? – resiste a esta solubilidade total.

O design na filosofia – tal como o encontramos também em Nietzsche, autor de fórmulas brilhantes – é tão fascinante como decapitador. Assemelha-se a um farol nos olhos, encadeia.

Por isso tomei sempre a atitude de ler os autores da moda depois do seu pico de unanimidade, só então lhe enxergamos os caboucos para além da momentânea alucinação colectiva. Poucos sobrevivem.

14 Set 2017

Rota das Letras | Deusa d’África fala de Moçambique, da guerra e da paz

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] escritora e activista cultural moçambicana Deusa d’África, que está em Macau a participar no festival literário Rota das Letras, sonha com “um país que seja homem”. A “guerra” só deve ser feita por causas justas, como a literatura.

Aos 28 anos, Deusa d’África é autora de “Ao Encontro da Vida ou da Morte” (poesia), “A Voz das Minhas Entranhas” (poesia) e “Equidade no Reino Celestial” (romance).

Nasceu Dércia Sara Feliciano, no sul de Moçambique, na província de Gaza. Anos mais tarde, trocou o nome de baptismo por o de uma das personagens que criou em “Equidade no Reino Celestial”.

“A minha mãe decidiu que eu devia ser Dércia Sara Feliciano. (…) E o nome que eu escolhi para mim é Deusa d’África. E ela aceita este nome, tanto que quando me acorda (…) ela diz: ‘Deusa, hora de ir ao trabalho’. E no meu local de trabalho dizem que não gostam do nome Dércia, porque Dércia é difícil. Então Deusa é mais simpático”, explicou durante uma palestra no Rota das Letras.

Deusa d’África é mestre em Contabilidade e Auditoria, lecciona na Universidade Pedagógica e na Universidade Politécnica, e é gestora financeira do projecto Global Fund – Malária em Moçambique.

É a partir de Xai-Xai, capital de Gaza, a cerca de 200 quilómetros de Maputo, que reflecte sobre o país que “cresceu economicamente”, mas que enfrenta “muitos desafios”.

“Há muitos elementos que envolvem o crescimento de um país, dos quais ainda necessitamos como um povo, para que o país possa se erguer e possa se tornar aquilo que nós sonhamos, que é um país que seja homem, um homem competitivo diante dos outros homens, que são os países”, disse Deusa d’África em entrevista à Lusa.

A autora refere-se, em concreto, à necessidade de criar “um ambiente de paz e de tranquilidade” para que o povo moçambicano possa “crescer, viver e sonhar”, num ambiente de paz que não fique “à mercê da vontade dos homens”.

A paz em Moçambique tem estado sob permanente ameaça nos últimos anos, devido a clivagens entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder, e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo).

Entre 2013 e finais de 2016, o país foi assolado por acções de violência opondo as Forças de Defesa e Segurança (FDS) e o braço armado da Renamo, no âmbito da contestação do processo eleitoral de 2014 pelo principal partido da oposição.

A mais recente trégua entre as duas partes foi anunciada no passado dia 3, com a duração de 60 dias. “Felizmente temos esta informação, esta trégua (…) vai-se prolongando uma semana, duas, um mês. São notícias boas, mas não é o que nós sonhamos como moçambicanos”, disse.

Sem paz, “não podemos estudar, as crianças não podem crescer, não podem tornar-se os homens do futuro, os presidentes de amanhã, os ministros de amanhã diante desta situação”, acrescentou, reflectindo a propósito do conflito que considera “um problema de vaidade humana”.

Das festas aos funerais

Deusa d’África desenha as suas próprias roupas e sonha com um desfile de moda, entre tantos projectos que lhe faltam fazer.

Além da escrita – que lhe permite ser homem, mulher, criança e às vezes até seres inanimados –, Deusa d’África acumula o papel de activista cultural, nomeadamente através da associação Xitende, fundada em 1996 e da qual é coordenadora-geral.

A autora diz-se activista “pela sociedade inteira”, que luta pela “justiça social” e em prol da produção literária num país onde, diz, “se lê menos” e faltam políticas de promoção da leitura.

“Sou um contraste. Tudo muito estranho, mas vem do berço. (…) A minha família sempre foi ligada às artes, especificamente literatura, música, e eu não podia ser diferente dos meus”, afirmou.

“Com cinco anos de idade, na primeira classe, eu já dizia poesia. Em todos os casamentos no bairro, todas as festas de aniversário, tinha de estar lá a dizer um poema. Hoje em dia sou convidada até em cerimónias fúnebres. Dizem que quando eu digo um poema até se esquecem que estão num ambiente triste, viajam no além”, contou.

Deusa d’África não vê limites quando toca à dinamização cultural. Por exemplo, entre outras “actividades absurdas”, organizou uma marcha pelo livro por ocasião de uma celebração do Dia Mundial do Livro, a 23 de Abril.

Para a autora, o livro e a poesia “são uma forma de resistência, uma forma de combate, uma forma de fazer a guerra”.

Uma guerra contra? “Uma guerra é uma guerra. O importante é que a guerra tenha causas”. “O problema dos homens é que eles fazem guerras sem nenhum motivo. E o que nós temos que aprender, diz até Adolfo Hitler no livro ‘A Minha Luta’, é aprender a fazer uma guerra tendo uma causa justa”, disse. “E neste caso específico, a causa é a literatura, a promoção da nossa literatura, ao promover a literatura estamos a promover a própria existência da humanidade. Uma causa mais do que suficiente para que a gente lute por ela”, acrescentou.

15 Mar 2017

Arquitectura e poética 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Maputo existe um hotel, o Taj Mahal, onde os mictórios do bar se localizam exactamente por trás do balcão da recepção. E a porta de tal fétido lugar tem de há muito os gonzos enferrujados pelo que a primeira visão que algum hóspede pode ter, quando faz o registo de entrada ou pede a chave do quarto, será a de uma morcela que urina.

Será igualmente um modo insólito para se entrar no teor desta crónica que pretende dar conta de uma feliz exposição de arquitectura que inaugurou em Maputo, mas através do bizarro exemplo talvez se entenda a oportunidade de uma verdadeira lição de arquitectura numa terra que foi perdendo qualquer noção do que seja um plano urbanístico, a ordenação do território, o respeito pelos planos directores das cidades ou a adequação arquitectónica.

A exposição é de José Forjaz, o arquitecto decano no país, que aos 84 anos, decidiu mostrar 40 projectos não edificados, no Instituto Camões.

Numa nova deriva prévia, vou contar o que me aconteceu na ida à casa de uma amiga. Ela não estava e fiquei na sala à espera dela, a espreitar a estante. E então aí vi um livro que se chamava “How to think like Leonardo da Vinci”. Fiquei estarrecido. Eis que nos impingem métodos para chegar instantaneamente às vistas largas do Leonardo sem termos de passar pelo esforço de subir à montanha, aplainando de imediato o terreno. O que acontece é que o vale altíssimo a que ele chegou e a percepção que aí ganhou era indissociável do processo da subida, das dificuldades e dos conseguimentos na escalada e nenhum livro de 300 páginas, que se lêem em oito horas, supre os quarenta anos da subida, as vicissitudes, os méritos e os sentimentos frustres que tanto acompanharam o Leonardo no seu percurso. E só aí, na sua provação, pôde converter o estudo das topologias do terreno que tanto o cansaram em vantagens e conhecimento.

Ora a lição que se tira destes projectos no papel de José Forjaz, considerado internacionalmente como um grandes arquitectos de África, é o seu flagrante aspecto totalizador. A relação com a arquitectura é aqui pensada de um modo total – fazendo convergir no esquisso todos os aspectos da relação do homem com o ambiente e a paisagem, o corpo, o espaço físico, material, a memória tangível ou intangível dos lugares, o solo, a meteorologia, a antropologia, a economia, a energia, a estética, a funcionalidade, a geomancia, etc., etc. Ou seja, só a idade faz o arquitecto – não há recurso à mentira.

Vamos agora ao aspecto poético.

Não se confunda poético com estético, que pode ser a sua declinação em estereotipo, em cânone. O que em rigor é bom como aquisição vernacular imediata mas é sempre mau quando uma conquista expressiva se torna hábito.

O poético não é um mero jogo das formas, é uma relação mais profunda e exige, entre outras, duas características basilares. Uma delas, assenta naquilo que a arquitectura partilha com as outras artes, o ritmo.

O ritmo está para a arquitectura como as estrofes, as rimas e as aliterações estão para o poema. Mas também acontece que de uma forma plástica a arquitectura nos traduza, por vezes, acordes musicais. Um poeta espanhol, o José Bergamin chamava à tourada a “música calada”. Não está mal visto, mas podemos deslocar esta definição, se calhar até com mais propriedade, para certas obras de arquitectura.

Outro atributo da poética é especificamente arquitectónica e define-se pela empatia revelada entre o projecto e o lugar, numa espécie de co-nascimento retroactivo.

Bom, o sentido de uma paisagem, o que estrutura o seu campo visual, não resulta de uma análise intelectual dos elementos que a compõem mas de uma apreensão sintética das relações que os unem. É como se a paisagem ajudasse o seu espaço construído a encontrar a sua verdade perceptiva.

O José Forjaz que num seu texto fala sobre as relações entre a arquitectura e a medicina não poderia deixar de ser sensível a este aspecto.

A poética, nestes projectos, encontra-se no encontro entre a experiência sensível de estar diante da paisagem e de se tornar evidente que o espaço construído fala com ela, ou melhor que ele diz o que a paisagem queria dizer de si mesma.

Este sentido inscrito no sensível é mais do que uma troca, ao mesmo tempo material e cultural, que se estabelece entre o homem e o seu meio, é entender o mundo como uma ressonância em que todos os elementos interagem para dar mais do que a soma do todo.

Isto até pode acontecer de maneiras muitos diferentes. Pode dar-se por “substracção”, como na Casa de Chá, um projecto para o Japão, que ilustra a crónica, em que a transparência se funde no espaço em vez de lhe impor intrusamente um volume, ou noutro exemplo, este construído, no caso do Memorial de Mbuzini, erguido no lugar onde se deu o acidente de avião que vitimou Samora Machel, em que um dos elementos estruturantes para a idealização do memorial foi o vento, tão presente na colina. O que deve ter sido compreendido por muito poucos.

Mas é por isso que uns são dotados de poética e outros não.

O mais vulgar exemplo desta espécie de simbiose ou de sentimento-paisagem é a célebre Casa na Cascata do Lloyd Wright. Aquela casa enriquece a paisagem, era como se a cascata tivesse corpo mas lhe faltasse algo, houve a partir dela um co-nascimento, algo mais do que uma simples correcção sintáctica. A cascata e a vivenda mobilizam um traço de união entre o espaço e o espírito.

È o mesmo que eu encontro por exemplo no projecto do Museu de Arte Tomihiro, no Japão, um museu destinado a duas artes quase intangíveis, a aguarela e a poesia (cf. em Caliban.pt)

Aqui só lamento que a tecnologia não permitisse ainda ao José Forjaz ter posto o museu a levitar sobre a encosta, sendo aliás ao que o projecto propende.

2 Mar 2017

Pequim e Maputo expandem cooperação

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]oçambique e China comprometeram-se na terça-feira a reforçar a cooperação em diversas áreas, durante a visita da presidente da Assembleia da República do país africano, Verónica Macamo, a Pequim, noticiou ontem a agência noticiosa oficial Xinhua.

A agência cita o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), Yu Zhengsheng, que se reuniu com Macamo.

“A China está disposta a trabalhar com Moçambique para expandir a cooperação mutuamente benéfica em várias áreas”, afirmou Yu, citado pela Xinhua.

O responsável máximo pelo principal órgão de consulta do Governo e do Partido Comunista Chinês disse ainda que Pequim quer trabalhar com Maputo no sentido de impulsionar a implementação dos acordos alcançados durante o Fórum de Cooperação China-África, que se realizou em Joanesburgo, em 2015.

Durante o evento, o Presidente chinês, Xi Jinping, anunciou 60 mil milhões de dólares em assistência e empréstimos para os países africanos.

Macamo, que lidera uma delegação de empresários numa visita de cinco dias à China, disse ainda apreciar a assistência prestada pela China a Moçambique, desde que o país se tornou independente, em 1975. Pequim é o principal credor de Maputo.

Princípios do acordo

No ano passado, os dois países assinaram um Acordo de Parceria e Cooperação Estratégica Global, durante a visita do Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, ao país asiático.

Aquele documento, que estabelece os 14 princípios que deverão nortear as relações bilaterais, prevê fortalecer os contactos entre o exército, polícia e serviços de inteligência dos dois países.

No aspecto económico e comercial, o mesmo acordo dedica ainda uma cláusula à iniciativa chinesa Rota Marítima da Seda do século XXI, um gigante plano de infra-estruturas que pretende reactivar a antiga Rota da Seda entre a China e a Europa através da Ásia Central, África e sudeste Asiático.

Neste sentido, os dois países devem cooperar nas áreas de transporte marítimo, construção de portos e zonas industriais portuárias, aquacultura em mar aberto e pesca oceânica, detalha.

Moçambique atravessa uma grave crise desde da descoberta, no ano passado, de empréstimos de 1,4 mil milhões de dólares que não foram contabilizados nas contas públicas ou reportados ao Fundo Monetário Internacional (FMI), descredibilizando o país perante os mercados financeiros e doadores internacionais.

No mês passado, Maputo entrou em “incumprimento financeiro soberano”, ao falhar o pagamento de 60 milhões de dólares referentes à prestação de Janeiro da emissão de 727,5 milhões em dívida pública, feita em Abril passado.

16 Fev 2017

Licínio de Azevedo, realizador | Uma vida a contar estórias

Licínio de Azevedo, nome maior do cinema moçambicano, fez uma transição suave do jornalismo para o cinema. Os seus filmes contam estórias de dor e profundo humanismo, e estão em exibição, até quinta-feira, na Fundação Rui Cunha, num ciclo organizado pela Associação dos Amigos de Moçambique

[dropcap]C[/dropcap]omo é que passou do jornalismo para o cinema?
Foi bastante natural. No Brasil, fazia um tipo de jornalismo diferente, baseado no novo jornalismo norte-americano, muito influenciado por John Reed, que escreveu “Os Dois Dias que Abalaram o Mundo”, “México Rebelde”, e o próprio Garcia Marquez que, antes de ser escritor, trabalhou na Venezuela como jornalista. Os textos dele já eram contos, eram estórias, não era aquele jornalismo objectivo. Procurava fazer algo assim, contar uma estória. Viajava muito pela América Latina, publicava na imprensa independente da época, nos jornais de oposição ao Governo militar. Fiz reportagens sobre os mineiros na Bolívia e coisas assim, mas sempre com uma estória, com personagens e tudo isso. Entrei pelo cinema através da escrita, com essa ligação do jornalismo com a literatura, e nem me interessava em fazer cinema, o que queria mesmo era escrever. Depois, em 1976, estive na Guiné Bissau e recolhi muitas estórias sobre a guerra da independência. Fiz entrevistas a combatentes, a camponeses, e publiquei um livro no Brasil com esse estilo, baseado nas entrevistas, mas mais literário. Entretanto, o Ruy Guerra, um cineasta brasileiro famoso, convidou-me para ir para Moçambique em 1977 para ajudar à criação do Instituto Nacional de Cinema. Era a primeira instituição cultural criada pelo Governo pós-independência. Eles apostavam muito na força da imagem para a criação da unidade, porque o povo falava várias línguas e tinha um nível de analfabetismo muito grande. O cinema era um instrumento de comunicação mais forte que a escrita.

Como foi a sua chegada a Moçambique?
Fui directo para as antigas zonas libertadas do norte do país e fiquei alguns meses recolhendo estórias que foram publicadas, inicialmente, em formato de livro. “Relatos do Povo Armado” são dois volumes com 30 e tal estórias que serviram de base para a primeira longa-metragem de ficção moçambicana, “O Tempo dos Leopardos”. O filme foi realizado por um jugoslavo porque, na época, não havia cineastas moçambicanos. Em Moçambique os documentários eram muito formais, filmávamos e eu escrevia os guiões e as partes de voz off. Só uns dez anos depois é que comecei a realizar, já em meados dos anos 80, mantendo ainda alguma ligação com o jornalismo. De vez em quando ainda enviava alguma reportagem mas, aos poucos, comecei a fazer cinema e achei que valia a pena.

Como entra na ficção?
Comecei a fazer pequenas experiências em vídeo, com narrativas diferentes em curtas-metragens. O primeiro filme grande que fiz, uma produção independente, foi uma ficção, “A Colheita do Diabo”. Depois disso, o meu lado de jornalista ganhou preponderância novamente e passei muitos anos a fazer só documentários, sempre com uma linguagem pouco tradicional. Fazia a pesquisa e um guião usando os elementos narrativos da ficção.

O que aprendeu com o contacto que teve com Jean-Luc Godard?
Tínhamos grandes discussões teóricas sobre linguagem, assim como algumas regras básicas de cinema. Ele dizia que o cinema era contabilidade, que o grande exercício seria filmar um minutos e montar três, aquelas maluquices do Godard. São coisas que nos ficam na cabeça. Além disso, foi a primeira pessoa que chegou a Moçambique com uma câmara de vídeo quando, na época, a grande opção era a 16mm, enquanto as produções maiores eram 35mm. Foi através do Godard que se introduziu o vídeo em Moçambique e, graças a ele, nunca fiz um filme em película e ainda bem. Mas ele nunca filmou em Moçambique, assim como o Ruy Guerra, tinham projectos grandes, mas o problema dos cineastas é que são muito individualistas. Como já eram estrelas, entraram em confronto com a instituição revolucionária que tinha uma visão mais colectivista. Então, as coisas não funcionaram bem para nenhum deles.

Como compara o cinema e o jornalismo em termos de intervenção social?
A criação do Instituto Nacional de Cinema era um organismo educativo de informação, um instrumento político. Isso continua até hoje, fazemos muitos pequenos filmes institucionais, educativos, que é algo que me dá muito prazer porque me faz viajar pelo país inteiro. Apesar de serem institucionais, tenho liberdade total para escolher a forma como passar a mensagem, seja sobre educação, saúde ou agricultura. Cheguei até a fazer um filme mudo, de meia hora, sobre a água dos poços, porque em Moçambique há várias línguas diferentes.

Apesar de filmados em África os seus filmes têm projecção internacional.
Moçambique passou por várias fases diferentes. Independência, euforia e depois veio o começo da guerra com a agressão rodesiana, de seguida o começo da guerra civil, que destruiu completamente o país. Depois o retorno dos refugiados, a reconstrução e o recomeço da guerra. Tudo isso levou-me a pensar em temas actuais, sendo que o cinema também passou a ter outra função bastante forte, que foi transmitir durante a guerra toda essa informação para públicos de outros países. Trabalhei muito com a ZDF, a BBC, Channel 4, com televisões francesas. Agora perderam um pouco o interesse porque há conflitos por todo o lado, o mundo está a arder completamente e há mais dificuldade em conseguir fundos. Hoje para fazer documentário em Moçambique é algo de uma dificuldade terrível, porque o interesse das televisões está muito disperso por todo o lado. Há a Síria, o Iraque, a Líbia e as Primaveras que se transformam em Invernos. É mais difícil para mim, por incrível que pareça, conseguir financiamento para documentários do que para ficção, apesar do documentário ser bem mais barato.

Qual foi o passo fundamental para entrar definitivamente na ficção?
“Desobediência” foi a transição. Fiz pequenas experiências de ficção nos anos 80, mas parei para fazer só documentário, contando uma estória onde os personagens agiam diante da câmara. O filme “Desobediência” nasceu quando vi uma pequena notícia no jornal. No centro do país, num sítio completamente isolado onde as pessoas não tinha televisão, um homem suicidou-se porque a mulher era desobediente, o que achei completamente absurdo. Com tanta mulher bonita no mundo vai suicidar-se porque a mulher não obedece? Fui para lá e encontrei uma estória completamente diferente, que me obrigou a fazer um filme diferente, onde as pessoas reproduziram tudo aquilo que aconteceu. Há um tabu, do tipo Electra ou Édipo, ao género das tragédias gregas, em que gémeos não podem fazer amor com a mesma mulher. O homem que se suicidou fez amor com a esposa do irmão gémeo. Os espíritos começaram a agir dentro dele, as pessoas acreditam nisso, e ele matou-se. Para não revelarem esse segredo culparam a viúva de desobediência. Digo que foi uma transição porque as pessoas não tinham televisão, nunca tinham visto um filme e, então, aproveitaram aquela oportunidade para provarem que tinha razão. Ou seja, que a mulher era, realmente, desobediente. Consultaram um curandeiro, houve muitas agressões que quase resultaram em morte. Inscrevi este filme do Festival de Biarritz na área de documentário e foi rejeitado. Acabou por concorrer como ficção. Enfim, ganhou o prémio de melhor ficção, um filme feito com 100 mil euros, que concorreu com ficções de 10 milhões e 15 milhões de euros. Passa amanhã às 18h30 na Fundação Rui Cunha.

Qual a estória por detrás do filme “Virgem Margarida”?

© Ricardo Rangel
O grande fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel mostrou-me uma fotografia a que ele chamou “A última prostituta”. A foto era do tempo depois da independência, e tinha dois militares da guerrilha a escoltar uma prostituta para ser enviada para os centros de reeducação no norte do país, no meio da selva. Estes centros eram na realidade campos de concentração. Isto era algo que fazia parte de um processo maluco que era a criação do homem novo, cheio de boas intenções, mas que acabou em tragédia com a morte de centenas de mulheres. Inspirado nessa fotografia, fiz um documentário bem tradicional. Entrevistei senhoras que foram “reeducadas”, antigas prostitutas e as chefes guerrilheiras desses centros, que eram de trabalhos forçados. E uma delas contou-me uma estória de um minuto, que aparece no filme, sobre uma jovem que foi com ela para lá. Era uma adolescente camponesa, de 15 anos, que não tinha bilhete de identidade. Tinha ido à cidade comprar o enxoval para o casamento e foi considerada prostituta por não ter identificação. Uma estória que foi contada num minuto deu uma ficção de longa-metragem. O documentário serviu-me de pesquisa para escrever o guião do “Virgem Margarida”, e criei uma estória em torno daquele centro de reeducação, onde uma das personagens principais é essa jovem virgem. Coloquei elementos ficcionais, ela é violada e suicida-se. O filme saiu há quatro anos e venceu três prémios internacionais.

Como está a ser a aceitação do seu último filme?
“O Comboio do Sal e Açúcar” é um filme com co-produção portuguesa da Ukbar Filmes, e está a ser lançado com enorme sucesso. Ganhou o prémio no Festival de Locarno, onde passou na Piazza Grande para 4500 pessoas. Ganhou o melhor filme do Festival de Joanesburgo, e no Cairo ganhei o prémio de melhor realizador. O filme está a ter grande aceitação, foi convidado para 18 países diferentes, e com muitas possibilidades de sair em salas até na Turquia. Ou seja, nem consigo mais pensar em projectos de documentário, porque tudo é mais demorado. Tenho três projectos de ficção e um deles está bem encaminhado, rapidamente consigo financiamento.

O que nos pode adiantar do próximo projecto?
É um filme baseado num livro de um escritor brasileiro, Altair Maia, que é praticamente um guião. Li-o e apaixonei-me. O livro chama-se “Tributo a Jonathan Makeba”, que é um líder comunitário, mas também um homem de negócios do Burkina Faso, uma personagem real. Ele tinha um negócio de fosfatos para adubos, entre o Niger e o Burkina Faso. Makeba desenvolveu um projecto a pensar nas comunidades desses dois países, e criou milhares de empregos. Cerca de 25 por cento do investimento que vinha do estrangeiro ia para contas bancárias de líderes e não sobrava nada para a população. Neste filme falo da corrupção como um problema actual em África, Moçambique, Angola, em quase todos os países africanos. Aliás, é por isso que as pessoas ficam presas ao poder, como por exemplo, agora, na Gâmbia. O filme é muito actual, mas ainda é um projecto, ainda não rodei mas já tenho produtoras interessadas.

TRAILER DE “O Comboio do Sal e Açúcar”

25 Jan 2017

Moçambique | Ciclo de cinema na FRC para dar a conhecer o país real

O cinema moçambicano vai estar em destaque do dia 21 a 26 na Fundação Rui Cunha. A iniciativa é organizada pela Associação dos Amigos de Moçambique. A ideia é permitir a quem vive cá conhecer o cinema e a cultura daquele país

 

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão cinco os filmes que vão integrar a terceira edição do ciclo de cinema feito em Moçambique. O evento tem lugar entre 21 e 26 deste mês no auditório da Fundação Rui Cunha e no cartaz traz quatro filmes de Licínio Azevedo e um da realizadora Teresa Prata.

“Não podemos chamar a iniciativa de festival”, disse ao HM Helena Brandão, “porque não é uma coisa grande”. Para a responsável pela Associação dos Amigos de Moçambique, entidade organizadora, esta é antes “uma forma de alargar as actividades de forma sustentável”.

“O dinheiro não é muito e fazemos o que podemos”, explicou. A iniciativa teve a primeira edição em 2012 e a ideia de projectar filmes surgiu como sendo a mais viável, de modo a que possam ser levadas a cabo outras actividades além da semana gastronómica.

Para a organizadora, “basta ter cerca de 15 pessoas a assistir que podemos considerar um sucesso”. Mas certo é que a adesão tem vindo a crescer a cada edição.

A ideia é mostrar à população de Macau um pouco mais da cultura moçambicana. Vasta e diversificada, Helena Brandão lamenta que não seja possível trazer mais actividades. “Gostava muito de ter cá teatro, que é uma área de relevo em Moçambique, mas é difícil trazer os actores, é muito dispendioso.”

Com empenho, a associação consegue trazer, mais uma vez a Macau, o realizador Licínio Azevedo. Brasileiro de origem, Licínio Azevedo está radicado em Moçambique há mais de 40 anos e é hoje uma das maiores referências da sétima arte do país. O reconhecimento internacional aconteceu no âmbito do programa “Open Doors” do Festival de Cinema de Locarno, com o destaque que foi dado a “Comboio de Sal e Açúcar”. A película conta a história de um comboio e dos seus passageiros, que embarcam numa viagem perigosa durante a guerra civil moçambicana.

Quatro histórias

Do cineasta serão exibidos em Macau “A Ponte”, “Ferro em Brasa”, “A Ilha dos Espíritos” e “Desobediência”.

“A Ponte” é a história do esforço colectivo para fazer uma travessia. De acordo com a apresentação da película, na estação das chuvas os rios enchem, e Chimanimami, uma das mais bonitas regiões de Moçambique, fica isolada do resto do país. No entanto, com a intenção de criar ali uma reserva natural, cuja principal atracção é o Monte Binga, o ponto mais alto de Moçambique, é necessário construir uma ponte e é a aldeia que se une para contribuir para a concretização do projecto.

Um documentário sobre o fotojornalista Ricardo Rangel é a proposta de “Ferro em Brasa”. O fotógrafo, de 80 anos, é o símbolo vivo da geração que, no fim dos anos 40, iniciou as primeiras denúncias contra a situação colonial. Enquanto fotografava a cidade dos colonos, “Ricardo revelava a desumanidade e a crueldade do colonialismo”, lê-se na mesma apresentação. Desde então, e até ao fim da guerra civil pós-independência, o protagonista fotografou 60 anos da história de Moçambique. Neste filme, o fotógrafo conduz o público pela sua vida e obra, onde a cidade de Maputo, a boémia e o jazz têm um lugar especial.

Também em formato documental é “A Ilha dos Espíritos”. Muito antes de dar nome ao país, a ilha de Moçambique teve um papel fundamental no Oceano Índico. “Foi um ponto de paragem de caravelas, de encontro de piratas, lugar de mistura de raças.” Os seus habitantes, orgulhosos do passado glorioso da ilha, são aqui personagens excêntricas que deambulam pelas ruas.

Ainda de Licínio Azevedo é “A Desobediência”. Um filme real interpretado pelos protagonistas da história que conta. A película documenta a saga de Rosa, uma camponesa moçambicana que é acusada pela família do marido de ser a causadora do seu suicídio, por se recusar a obedecer-lhe. Para provar a inocência, e recuperar os filhos e os poucos bens que o casal possuía, Rosa submete-se a dois julgamentos: o primeiro num curandeiro e o segundo num tribunal. É absolvida em ambos.

Durante a filmagem, o realizador decidiu instalar uma segunda câmara para seguir a história até ao fim. Segundo a apresentação da película, “uma montagem desta complexidade não tem paralelo no cinema africano.”

Todas as projecções contam com a presença de Licínio Azevedo, que vai estar em Macau para falar não só dos filmes que faz, mas também da situação actual do país onde vive, do cinema que por lá existe e da cultura que o acolhe.

A vida na tela

Realizado por Teresa Prata é “Terra Sonâmbula”, uma longa-metragem premiada. Entre outras distinções, ganhou, em 2008, o FIPRESCI do International Film Festival Kerala, na Índia.

O filme conta a história do velho Tuahir que encontrou Muidinga ainda com vida enquanto ajudava a enterrar crianças assassinadas numa aldeia. Tuahir cuidou da criança e viajou com ela para fugir da guerra. Cansados e com fome, encontraram um autocarro atacado pouco tempo antes, onde descobriram um diário. O achado leva as personagens à história de Kindzu, um jovem que teve a família assassinada e que estava em viagem à procura de uma criança.

De acordo com a organização, “com o correr dos anos o cinema moçambicano ganhou experiência, tornou-se maduro e hoje, ainda sem actores profissionais, mais do que cinema político, conta histórias de factos como o drama humano, em histórias de ficção baseadas em factos reais, e é um cinema que, acima de tudo, revela a sociedade moçambicana pós-colonial e as suas contradições”.

16 Jan 2017

Para que serve um exército

29/11/2016

[dropcap]T[/dropcap]itula-se, no matutino O País, de Maputo: «Nakume (o Ministro da Defesa) ameaça de demissão comandantes que falharem metas», e lê-se no seguimento: «Ministro da Defesa quer que todos os ramos e unidades militares produzam comida para fazer face à crise que o país atravessa. Os comandantes que falharem estas metas devem colocar o seu lugar à disposição». Vejo por uma vez que os militares podem ser realmente úteis, num país esfacelado por uma guerra civil estúpida e cretina.

Raras vezes percebi a utilidade e a necessidade absoluta dos exércitos.

Quando Xerxes invadiu a Grécia com um exército tão grande que secava os rios à passagem (e é indubitavelmente uma coisa que assombra: um exército tão grande que sorva os rios por inteiro), Esparta mandou contra ele um primeiro (pequeno) contingente de 300 homens, que travaram os persas em Termópilas – aí percebe-se a absoluta necessidade de um exército. O mundo de hoje seria muito pior e mais triste se Xerxes tivesse vencido; os déspotas demoram sempre mais tempo a morrer que os liberais, é uma verdade dramática.

A existência de Hitler tornou evidentemente obrigatória a existência de exércitos, ou nacionais ou em coligação, que degolassem o perigo do fascismo.

Portanto, há causas e causas. Mas em setenta por cento dos casos não é assim.

Agora, para que quer Portugal um exército, com aquele “volume”? Para se defender de quê? Que proveito tem um país tão pequeno e dependente em ter um exército que lhe devora uma fatia substancial do bolo que devia ser gasto em cultura, em bibliotecas, em educação, numa melhor distribuição social? Claro que há compromissos internacionais a respeitar, mas à tal Europa cínica e estritamente económica não deviam os pequenos países entregar a factura pela obrigação de estarem envolvidos em compromissos que lhes exigem um dispêndio desproporcional em relação às suas pequenas economias?

E a questão é:

Quantas consultas em oncologia custa uma bazuca?

Quantos ginásios custa um submarino?

Quantas bolsas de estudo se pagavam com um tanque?

Quantos carros de bombeiros se pagavam com um avião de combate?

Quantas peças de teatro custa um simples Tatoo Militar?

Não quero ser mal interpretado, mas constato que ou as mulheres portuguesas e moçambicanas não sabem onde têm a cabeça, ou não têm lido muito. Pelo menos não têm lido a Lisístrata, do Aristófanes.

É uma simples história de mobilização das mulheres contra o prolongamento da guerra do Peloponeso, que, face à teimosia dos homens em mantê-la, impulsionadas pela lucidez de Lisístrata, fazem uma letal greve de sexo. A guerra não durou muito mais!

Aí está uma forma clara de atenuar as dívidas portuguesa e moçambicana: enquanto Portugal e Moçambique mantiverem um exército desproporcionado para as suas reais necessidades, as mulheres deviam vestir as calças quando fossem para a cama. Convictamente: calças sem fecho-éclair.

Ao fim de três meses julgo que teríamos os militares de gatas, voluntariamente, a pedir demissão.

Isto também vale para a posse das armas. PISTOLA EM CASA: PERNAS CRUZADAS!

Se a boa metade da humanidade, tomando o exemplo de Lisístrata, fizesse o seu trabalho e não caísse na ladainha de um mundo congeminado pelo imaginário masculino haveria menos escolas ameaçadas por fanáticos.

Eia as palavras de ordem que escolheria para uma campanhia anti-bélica: « Minha amiga: acorde a Lisístrata que há em si! Time out: pernas cruzadas, mulheres do meu país. É o futuro que está em jogo, não o engravide!». Mas nunca me perguntam a opinião! E as mulheres, de facto, não têm feito o seu trabalho.

As mulheres na Líbia eram mais voluntárias. Só que em sentido contrário. Ao Kadhafi, sempre invejei os penteados e a guarda-pessoal de moçoilas. E elas disputavam a primazia de fazerem parte da Guarda de Honra de Kadhafi.

Depois do Kadhafi ter sido despachado como foi, acidentalmente (nunca soube como se produziu esta maravilha), recebi este mail:

«Saheera Mohamed Jamila, de 26 anos, virgem, 1,85 m, versada nas técnicas de tortura suava e mandarim, cinturão negro quarto dan em karaté-suc, especialista em estrangulamentos com arame, c/ nano pistola-metralhadora hk mp5 dissimulada nas axilas, carta para pesados e para merkava 3, patton M47, m-60, Leopard, domínio de quatro línguas europeias, para além do árabe, do swaali e do chinês, expert em amaciar detractores com uma culinária alucinogénica, ex-membro do body guard de Kadhafi, a quem partia as nozes; com carta de recomendação de Berlusconi, amiga de Mugabe, procura emprego compatível, de preferência a sul do Sahara, em país laico e firme em aplicar as leis e a sua defesa e dá desconto nos primeiros três meses de serviço».

Virgem? Hum. Mas, confesso que fiquei agitado. E por quê a mim, confessado pacifista? Com um remorso antecipado reencaminhei o mail para o Ministério da Defesa, espero que tenham dado provimento, é sempre triste ver alguém tão competente de mãos a abanar.

Porém ficam as perguntas: Quanto custa manter um exército? Desmantelar um exército sai mais caro que mantê-lo? É prioritário para Portugal, neste momento, manter um exército? Não é possível reconverter a indústria do armamento? De que dívidas se fala se não se tem a força moral de se abater nas balas para se injectar no crédito às pequenas e médias empresas? E em nome de quê as tão judicativas instâncias do mercado internacional, quando avaliam em recessão a economia de um país, não preconizam de imediato: querem crédito, abatam primeiro o exército?

Está para além do meu entendimento que depois de escolher a entropia um país peça emprestado para pagar o diligente serviço das carpideiras.

Todos os anos, pelo ano novo, cresce-me nas costas um bocado de asa e tenho de a meter para dentro, deve ser disso.

15 Dez 2016

Os crimes montanhosos e outros vales

15/11/2016

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]espedirmo-nos dos ofícios também faz parte da vida.

Todos temos um talento escondido, que os outros detectam primeiro. O meu era fazer diálogos, diziam os professores na Escola de Cinema. Ao fim do segundo ano recrutaram-me para lhes fazer os diálogos dos seus filhos. Assim me tornei guionista, ofício de que vivi durante anos.

Um dia, já de “reputação firmada”, telefona-me o António Escudeiro. Queria fazer um filme sobre o Camilo Pessanha, em Macau. Num formato “docudrama”. Afinámos ideias, objectivos, calendários. Pairava no ar a promessa de também eu me deslocar a Macau. Em 15 dias li o que tinha a ler e pouco depois entreguei o primeiro draft, de 50 páginas. Uma memória descritiva, com a narração de todas as cenas previstas para o filme mas sem o tratamento final nem diálogos.

Ambicionava atingir uma precisão de relojoeiro nos diálogos, devido à linguagem preciosa do poeta, à sua relação com os locais e com essa língua que o cercava como um imenso mar ignoto, e sobretudo queria escrever belas cenas dele com as mulheres. Um “docudrama”, uma mistura de documentário e ficção, permitia a reinvenção da intimidade do poeta.

Contra a entrega do draft, ele pagou-me o que era devido. Seguia-se a segunda fase, combinámos conversar depois dele o ter lido. E então o Escudeiro desapareceu. Soube dele um ano depois, ultimava já a edição do material que tinha trazido de Macau.

Nunca vi o filme, não o quis ver. Vi o Camilo Pessanha e Macau por um canudo.

Por isso aconselho todos os jovens guionistas a tomarem esse ofício como hobby ou biscate, quando se põe excessivo empenho nos projectos vem a “autoria colectiva”, própria ao cinema, desenganar-nos e traz dissabores.

Já me aconteceu inclusive, no caso de Um Rio, de Carlos Oliveira, que co-escrevi com o escritor Luís Carlos Patraquim (adaptando um romance de Mia Couto), que o filme (por problemas de produção) parecesse ter sido feito “contra” o guião.

No romance, os erros só a mim pertencem. Sucessos ou insucessos só ao meu trabalho devo a provação dos labirintos.

17/11/2016

Há duas semanas, o matutino O País noticiava que a Autoridade Tributária já não podia taxar certos impostos, os impressos necessários não estão disponíveis para quem faz a sua declaração anual dos impostos. Motivo: os fornecedores deixaram de fornecê-los, por dívida continuada do Estado.

Já nem as suas próprias receitas directas o Estado moçambicano consegue assegurar. Eis um processo em que um Estado perpetua contra si mesmo, como vi escrito num semanário local, “crimes montanhosos”.

Entretanto a minha filha mais nova, com nove anos, resolveu ir “ajudar” a mãe, numa feira do livro. Toda a gente achou graça ao parlapié da gaiata e contribuiu para que as vendas nesse dia aumentassem. E o Notícias, matutino oficioso, fez uma reportagem e entrevistou a mais nova “livreira” da feira. Foi a minha empregada quem trouxe o recorte, “orgulhosa da menina”. Toda a gente gostou, menos ela. “É a tua primeira entrevista, tás toda bonita na fotografia, qual é o problema?”. E explicou ela: “não gostei que tivessem colocado a minha fotografia, porque assim vão me identificar na rua e podem raptar-me…”. Fiquei interdito, percebi que por muito que queira não a consigo proteger do clima geral.

À beira da explosão social, com a guerra civil a prolongar-se, a inflacção a disparar em flecha (quase cem por cento num ano), o colapso financeiro, a fome a apertar em muitas regiões e o medo inscrito na pele das crianças (brancas, sobretudo “monhés”- os indianos -, alvo da actual “indústria de raptos”), a Pérola do Índico, um país com imensa água e oitenta por cento da terra arável mas que nem consegue produzir os tomates e alfaces para a salada (vêm da África do Sul), atravessa um momento deprimente.

19/11/2016

A pronúncia do Shangana e do Ronga, línguas do sul de Moçambique, lembra-me uma goma de arroz com acentos guturais fortes.

Uma vez adormeci a ver filmes do Kurosawa e nessa madrugada apanhei um “chapa” (um transporte semi-colectivo com dezasseis lugares) para a fronteira, a 90 km. Pelo caminho, ouvindo as falas locais, espantei-me pelas parecenças fonéticas com o japonês que ouvira horas antes. Pensei ser uma fantasia minha e não liguei mais ao assunto.

Agora, releio um livrinho precioso do grande actor japonês Yoshi Oida que trabalhou décadas com o encenador Peter Brook. Ele conta como foram à Nigéria, para uma digressão de seis meses nas zonas rurais. Chegavam às aldeias, estendiam o tapete e representavam Shakespeare e foram especialmente bem acolhidos. Porém, inesperada foi a descoberta pessoal que ele fez. Ele estava radiante por vir a África e pensava que ia estar diante da alteridade absoluta, de uma cultura sem pontos de contacto com a sua, e descobriu que afinal toda a gramática facial e a linguagem não-verbal dos camponeses da Nigéria era absolutamente idêntica às dos camponeses do Japão.

Somos todos mais parecidos do que supúnhamos e fará mais sentido do que admitiríamos à partida que as locução e as fonética das línguas, nesta metade oriental do planeta, comunguem de afinidades subterrâneas.

21/11/2016

Flanava distraído pela ruas de Maputo, a apreciar os jacarandás. Um tipo novo começa-me a sorrir a dez metros de distância e ao passar por mim atira: “Pai, ando à procura do George Michael, fast love!”. Fiquei atarantado, ele atirara o barro à parede, a tentar, mas nunca um jovem prostituto se me dirigiu tão directo, e só cinquenta metros depois me veio a resposta-do-fim-da-escada: “Desculpa lá, já não tenho idade para seres o meu first love!”

24 Nov 2016

Pequim pronto para ajudar Moçambique a ultrapassar crise

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Governo da China manifestou ontem em Maputo disponibilidade para ajudar Moçambique a atravessar a actual crise económica e financeira, anunciando planos para o cancelamento de dívidas e a construção de um parque industrial.
Em declarações aos jornalistas no final de um encontro com o primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho do Rosário, o embaixador da China em Maputo, Su Jian, afirmou que Pequim estuda o cancelamento de empréstimos sem juros contraídos por Moçambique, como parte do seu compromisso de apoiar o país a ultrapassar a actual crise.
“Desde 2001, a China já perdoou a Moçambique 10 verbas de empréstimos sem juros, recentemente perdoamos cinco milhões de dólares e agora as duas partes estão a preparar mais perdões de dívida”, declarou Su.
No âmbito da cooperação bilateral, prosseguiu o embaixador chinês, os dois países estão a preparar a instalação de um parque industrial que vai permitir que empresas chinesas transfiram para Moçambique as suas linhas de produção.
“O Governo chinês vai enviar um grupo de especialistas para preparar o planeamento e a localização do parque industrial, para podemos convidar empresas chinesas e moçambicanas”, afirmou Su Jian.
Su acrescentou que a implantação do parque irá permitir a criação de mais empregos, aumento de exportações e de receitas e contribuir para a diversificação da economia moçambicana.
No encontro com o primeiro-ministro moçambicano, o diplomata chinês endereçou um convite do Governo de Pequim a Carlos Agostinho do Rosário, para participar na Cimeira do Fórum da Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países Lusófonos, agendada para Outubro próximo em Macau.
“A presença de uma delegação oficial de alto nível de Moçambique será muito importante para o sucesso dessa cimeira”, declarou Su Jian.
A China é um importante parceiro de Moçambique, mantendo uma forte cooperação em vários domínios, incluindo no campo económico e empresarial.
Moçambique atravessa uma crise económica e financeira, provocada pela queda do preço das matérias-primas e dos investimentos, calamidades naturais, derrapagem da moeda nacional, subida galopante da inflação e aumento exponencial da dívida pública.
Em paralelo com a crise económica e financeira, o país é igualmente assolado por violência militar, com confrontos entre as Forças de Defesa e Segurança (FDS) e o braço armado da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), principal partido de oposição, na sequência da recusa do movimento de aceitar os resultados das eleições gerais de 2014.

22 Set 2016