Livro | Publicação relata propaganda do Estado Novo em Macau através do cinema

“Vento Leste – ‘Lusoorientalismo (s)’ nos filmes da ditadura” é o novo livro da académica Maria do Carmo Piçarra sobre a utilização do cinema pelo Estado Novo para propaganda nos antigos territórios ultramarinos a Oriente, nomeadamente a Índia portuguesa, Timor e Macau. Eis a história dos primeiros filmes que ilustravam o lado bom de Macau, face às películas internacionais que retratavam a região como uma terra de jogo, ópio e sexo

 

Acaba de ser editado em Portugal, com a chancela da Tinta da China, o livro “Vento Leste – ‘Lusoorientalismo (s)’ nos filmes da ditadura”, da autoria de Maria do Carmo Piçarra, que aborda a propaganda do regime do Estado Novo em Portugal, que vigorou entre 1933 e 1974, feita através do cinema nas antigas colónias portuguesas a Oriente, nomeadamente a Índia portuguesa (Goa, Damão e Diu), Macau e Timor.

Maria do Carmo Piçarra, estudiosa da história do cinema português, já com trabalhos publicados sobre o cinema usado como máquina de propaganda, relata nesta obra o caso concreto de Macau, tida como “uma cidade aberta ao cinema”, com “escassez e reactividade”. Revelam-se exemplos da produção portuguesa de filmes no território com maior ênfase a partir dos anos 50 e da preocupação do regime de Salazar em promover uma imagem de Macau “luso-tropical” em contraste com a “imagem do ‘inferno do jogo'” tão espelhada em filmes internacionais feitos à época, como Macao, realizado em 1952 por Josef von Sternberg.

Macau nunca foi uma terra de grande produção cinematográfica, ao contrário de Hong Kong. Mas desde cedo que se revelou como um território de exibições cinematográficas, tendo 12 salas de cinema, um número bastante elevado se considerarmos que Díli, por exemplo, tinha apenas uma.

“A produção de cinema no território é muito tardia e só acontece na década de 20 do século XX com Antunes Amor, que vai trabalhar para Macau no ensino e que chega a ser contemporâneo de Camilo Pessanha. Ainda na década de 20 há uma tentativa da parte da família de Tancredo Borges de produzir cinema e de registar a actualidade da cidade, mas acabou por não conseguir manter o exclusivo da produção cinematográfica que, a dada altura, tiveram”, conta Maria do Carmo Piçarra ao HM.

Depois dessas primeiras produções, dá-se um interregno sem produções cinematográficas em Macau até à década de 50. O fim da II Guerra Mundial, em 1945, e o surgimento do debate mundial sobre o colonialismo e a descolonização, numa altura em que Salazar tentava a todo o custo manter o império ultramarino português (com a Guerra Colonial a começar em 1961), obrigam o regime fascista português a repensar a sua propaganda. É então que se começa a recorrer ao cinema para contar o lado bom das colónias portuguesas a Oriente.

“Até à década de 50 não há registos de produção portuguesa de cinema, mas isso muda por causa da emergência da República Popular da China, e também porque são exibidos filmes internacionais em que Macau é projectada de uma maneira negativa, como uma cidade de jogo, de prostituição, de consumo de ópio, em que os funcionários portugueses eram preguiçosos”, adianta a académica.

O surgimento da China comunista traz “alguma tensão” relativamente a Macau, que era administrada por portugueses, mas Portugal não reconhecia o novo regime de Mao Tsé-tung, não mantendo relações diplomáticas com o país.

“Procurava-se mostrar que não havia problemas semelhantes aos que poderiam estar a acontecer na China comunista. Portugal vai conseguindo esgrimir a sua posição muito por causa disso. À China interessava ter Macau e Hong Kong como locais para exportar produtos chineses e para o Ocidente a existência desses territórios era importante, pois servia para manter a proximidade ao comunismo, que via com alguma desconfiança.”

Além disso, “relativamente a Timor, a independência da Indonésia dita que haja algumas subelevações, que não eram conhecidas na metrópole [em Portugal], e dá-se ainda, em 1961, a perda da Índia portuguesa. Isso faz com que o regime tenha de estar mais atento às colónias a Oriente e, progressivamente, passe a usar o cinema para mostrar essas colónias e afirmar a sua portugalidade”.

Maria do Carmo Piçarra descreve estes filmes de cariz mais documental como sendo “muito diferentes entre si, com uma narração que esbate essas diferenças”. “É curioso que há sempre essa imagem de cada colónia é sempre a província mais portuguesa do Oriente. Em relação a Macau não se diz tanto isso, mas em relação à Índia portuguesa e Timor diz-se sempre.”

O investimento de Pedro Lobo

Além dos filmes que relatam o lado de Macau onde o jogo, prostituição e consumo de ópio não aparecem, o regime de António de Oliveira Salazar preocupa-se em fazer filmes “científicos” com um foco sobretudo económico. A Agência Geral do Ultramar encomendava e financiava os filmes, mas na maioria houve poucos apoios financeiros das entidades locais.

O livro relata ainda que, no período do movimento “1,2,3”, a expressão da Revolução Cultural em Macau, que durou de Dezembro de 1966 aos primeiros meses de 1967, o motim nunca foi revelado em nenhum filme de propaganda portuguesa.

Uma das primeiras produções do Estado Novo sobre Macau data do início da década de 50 e é da autoria de Ricardo Malheiro, que acompanha o então ministro das Colónias, Sarmento Rodrigues, numa viagem ao Oriente português, devidamente documentada em filme.

Relata-se ainda no livro de Maria do Carmo Piçarra o caso do investimento feito em cinema por Pedro José Lobo, importante empresário e político de Macau, que presidiu ao Leal Senado e que chefiou os Serviços de Economia e Estatística Geral de Macau”. Pedro José Lobo fazia também composições musicais nas horas vagas, tendo estado ligado à criação da rádio Vila Verde.

Esta personalidade contratou o realizador Miguel Spiegel para fazer filmes sobre Macau, passando este a ser “o realizador radicado em Portugal que mais filmou o Oriente português”.

Maria do Carmo Piçarra descreve um dos filmes por si realizado, graças à encomenda de Pedro José Lobo, intitulado “Os Pescadores de Macau”, exibido na oitava edição do Festival de Cinema de Berlim.

“Existem várias versões desse filme, uma delas com composição musical de Pedro Lobo, tendo uma narração típica da propaganda portuguesa. Mostra uma outra Macau, com as pessoas que viviam às centenas em juncos e em barcos”, recorda a autora.

Projecção e imagem

Após concluir o doutoramento, também na área da história do cinema, Maria do Carmo Piçarra compreendeu que em Portugal “não se dava importância à relação com o chamado ‘Oriente Português'”, sendo esta uma designação criada a partir do século XIX para designar os territórios que, no século XX, se limitavam a Goa, Damão, Diu, Macau e Timor.

Assim, este livro “apresenta vários estudos relativos a cada um destes casos que são novos”, sendo influenciado pelo estudo anterior da autora, de como o Estado Novo usou o cinema para se representar e projectar.

De destacar que, logo a partir de 1933, e apesar do país estar a atravessar uma crise financeira, “a preocupação é mandar equipas para filmarem as colónias portuguesas para, de algum modo, projectar o regime português”. Depois, quando o cinema passa gradualmente de mudo para sonoro, começam a ser feitos novos filmes, com novas equipas enviadas para os territórios ultramarinos. “Depois da II Guerra Mundial houve um novo esforço para fazer documentários com um foco sobretudo económico”, conclui Maria do Carmo Piçarra.

11 Jan 2024

10 de Junho | Ciclo de cinema sobre Macau em exibição até ao dia 4 de Julho

A investigadora Maria do Carmo Piçarra é a curadora do ciclo de cinema “Macau Passado e Presente”, que começa este sábado e termina a 4 de Julho, inserido nas comemorações do 10 de Junho e promovido pela Fundação Oriente. Filmes como “Hotel Império”, de Ivo Ferreira, ou “Boat People”, de Filipa Queiroz, voltam a ser exibidos

 

Começa este fim-de-semana um ciclo de cinema sobre Macau que visa mostrar a evolução da sétima arte no território nos últimos anos, mas também as múltiplas visões de realizadores portugueses e de Macau sobre um território que nunca deixou de ser atractivo para as salas de cinema.

Ao HM, a curadora do evento Maria do Carmo Piçarra contou que o convite partiu da Fundação Oriente, organismo organizador da iniciativa que se integra no programa de comemorações do 10 de Junho – Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas. O ciclo de cinema começa este sábado e estende-se até ao dia 4 de Julho, estando programadas exibições em vários locais da cidade.

“Houve a ideia de mostrar como é que Macau se tem articulado nesta convivência entre portugueses e habitantes locais. A opção era procurar mostrar como é que os realizadores portugueses têm olhado para Macau”, referiu.
Maria do Carmo Piçarra destaca o filme “Jóia do Oriente”, filmado por Miguel Spiegel em 1956, cuja cópia foi cedida pelo exército português. A histórica película representa “o início de um processo em que o autor filma Macau até ao período anterior a 1974”, algo que fez com o apoio do Estado português e também de alguns governadores de Macau.

A curadora do ciclo realça também o filme “Ilha dos Amores”, de Paulo Rocha, que nunca foi exibido em Macau. “Achei que era importante mostrar a cópia restaurada, mostrada em Cannes nos anos 80, onde estreou. Paulo Rocha é um dos pais do cinema novo português e este é um filme que lhe toma muitos anos, sobre a passagem do Venceslau de Morais por Macau e depois a sua instalação no Japão.” Este filme “complexo” será exibido na Cinemateca Paixão.

Sangue novo

Maria do Carmo Piçarra assume que não pôde incluir neste ciclo tantos filmes antigos como gostaria, e de facto o sangue novo do cinema local está em evidência, com a inclusão de nomes como Albert Chu, António Caetano de Faria, Maxim Bessmertny ou Tracy Choi.

“O Instituto Cultural tem sido muito importante para desenvolver esta produção de cinema em Macau desde a geração do Albert Chu até às mais recentes. Pretendemos mostrar esta diversidade de realidades. Aquilo que faz de Macau um território especial e fascinante para as pessoas nem é tanto o exotismo, que tem sido a maneira como se tem mostrado Macau, mas é toda esta diversidade”, adiantou.

Para Maria do Carmo Piçarra, “temos aqui uma pluralidade, com filmes muito diferentes, desde o filme do Paulo Rocha até ao filme do José Carlos de Oliveira, passando pelos mais jovens realizadores do cinema. O “Hotel Império”, por exemplo, acaba por ser uma reflexão do amor de uma mulher por Macau, pelo hotel onde viveu e cresceu, e que procura resistir a uma pressão trazida pela especulação imobiliária, que se sente um pouco por todo o mundo”, rematou.

Acima de tudo há o recurso a “linguagens que vão da ficção ao ensaio visual, recorrendo também ao formato da curta-metragem”. Reflecte-se, com este ciclo, “as mudanças na paisagem, física e humana, em que os vestígios coloniais servem um certo onirismo e nostalgia, e evidenciam o paralelismo entre o crescimento do território e a multiplicação das imagens desta – e do mundo – numa sociedade de ecrãs”, escreve a curadora.

23 Jun 2021