Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAuf Wierdersehen, Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o contrário de muitos dos meus amigos, não achei o Lost in Translation, da Sofia Coppola, minimamente merecedor do hype que despertou na altura em que foi exibido em cinema. Pareceu-me uma colecção de clichés absolutamente banais adornando uma história ainda mais banal. Uma sopa instantânea temperada com uma mistura de especiarias exóticas de exportação. Sentia que o Japão – e toda a Ásia – eram muito mais do que o mosaico de caricaturas que a nossa ignorância compõe na tentativa de inscrever um sentido para um estado de coisas que não compreendemos. Os dias que passei em Macau não me ensinaram muito sobre o que é ser chinês. Ou macaense, ou estrangeiro em Macau. Mas dissiparam muitas das ideias pré-concebidas que tinha acerca da região. E aprender que não se sabe é tão valioso como acumular conhecimento. O desconhecimento das coisas muito raramente é nocivo. Não temos medo daquilo que não sabemos sequer existir. Não o odiamos. Não formamos qualquer opinião sobre isso. Já as construções que derivam de uma interpretação truncada de uma realidade distante podem ser tóxicas. Como li algures: o melhor antídoto para o racismo é viajar. Fui extremamente bem acolhido em Macau. Tanto pelos chineses como pelos portugueses que lá residem. Não que esperasse ser maltratado. Mas considerava deveras provável a possibilidade de me sentir muito mais indefeso no contraste com uma cultura que me era absolutamente desconhecida. Para tal contribuiu certamente o facto de Macau ser uma cidade muito segura. Um tipo pode andar por todo o lado sem receio de ser assaltado ou vigarizado. A quota-parte de atenção que poderia reservar, noutra cidade, para a percepção do perigo fica disponível para tudo o resto. E para um tipo que fica tão mais ansioso quanto menos compreende a língua falada em seu redor, como eu, não é um aspecto de somenos. São os caracteres e os néons, a temperatura e, sobretudo, a humidade. São as salas de jogo dos hotéis, apinhadas de gente apostando um ano ou mais de trabalho, são os cheiros e os sabores, as chuvas torrenciais ao final da tarde, as árvores assemelhando-se a um entrelaçado de cobras comunitárias, os colegiais de uniformes impecavelmente brancos, os letreiros em português, o barulho incessante do ar condicionado omnipresente, as oferendas aos mortos na forma de comida e bebida e pequenas piras pontuando a calçada portuguesa, são os gestos que não compreendemos à primeira, a língua que não logramos compreender nunca. A contaminação resultante do processo de globalização em curso acaba por hipernormalizar todas as culturas, por mais remotas que sejam. A quantidade de locais exóticos diminui à medida que o capitalismo se impõe como modo de vida dominante. Mas cada um dos lugares expressa de forma muito particular essa contaminação. E gradualmente vão aparecendo os detalhes, sem que com isso a compreensão do que se passa efectivamente sofra uma modificação radical. Não vai fazendo mais sentido, mas vai desfazendo equívocos e perspectivas caricaturais. E quando damos por nós a finalmente entreler uma pequena parte da realidade com que deparamos no dia-a-dia, é altura de voltar. Voltar de uma experiência tão intensa que em apenas oito dias a sensação é de se ter estado fora um mês. Até à vista, Macau.
António de Castro Caeiro PolíticaNocturnos [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uanto tempo se demora a chegar? Demoramos tempo a partir. Nenhuma viagem coincide com uma deslocação. Estamos de partida semanas ou dias antes de partirmos. Demoramos tempo a chegar, mesmo tendo aterrado. Quanto tempo dura uma viagem? As semanas em que a antecipamos e as semanas de dias que vibrarão em nós. Há partidas sempre. Se calhar não fizemos senão chegar. Chegamos verdadeiramente? Partimos? Quando partimos o que deixamos? Quando chegamos o que encontramos? Há chegadas e partidas circunscritas ao quotidiano. De casa para o trabalho e de regresso. Dos sítios onde vamos até casa. Vamos de férias e regressamos. A distância também fixa a viagem. Sim: podemos estar à distância de poucos quilómetros ou até metros. Quando vou ver alguém no quarto ao lado para lhe perguntar coisas banais. Estás bem? Precisas de alguma coisa? Essa viagem curta pode ser dramática ou banal. Também podemos viajar durante um dia. Não é uma viagem habitual. E, contudo, a estranheza pode ser enorme. A língua desse sítio pode ser impenetrável, as ruas escuras e mal iluminadas. A roupa pode colar-se ao corpo. Encontramos alívio nos espaços gelados pelo ar condicionado. Viajar só e com amigos é completamente diferente. Com amigos podemos encontrar outras pessoas como encontraríamos se estivéssemos sós. Mas em conjunto a viagem é diferente. Sobretudo, se houver uma cumplicidade. Há várias cumplicidades, mas as mais intrigantes sempre foram para mim as que têm origem no espírito da palavra, no recorte da imagem fotografada ou pintada, no som do acorde. Macau é uma cidade de pé. Há hotéis que parecem bairros. Há também ruas que são as entranhas de uma cidade cheia de camadas. Onde se sedimenta a vida humana, em caracóis viscosos e peçonhentos, pássaros que são levados em gaiolas a passear, no cheiro das diversas cozinhas, nos interiores de casas onde pessoas falam no seu universo. Joga-se no casino como se fosse a metáfora da vida. Ganha-se ou perde-se. Na vida, talvez se perca sempre. Ecoam as cordas de uma viola, num rio ondulante. É calmo. Exposto, porém, a tufões furiosos que alagam as partes baixas da cidade. A chuva é como água que se solta de paredes cheias de vapor. Raparigas muito magras e de uma brancura só coberta pelo negro da roupa que trazem. Motas que atravessam o trânsito como se não houvesse amanhã. Conduz-se no sentido contrário mas numa mesma direcção. O lugar do morto é do motorista. Houve-se português falado por pessoas que há muito aqui vivem e também de chineses, coisa estranha. Como se fossem configurados por um horizonte onde nunca irão. Se calhar não terão de ir. Como eu aqui, sem perceber palavra alguma. Testemunho com espanto quem tem o talento de falar uma língua reservada para tantos que nela nasceram e para tão poucos que nela mergulham. Cheira a violetas, forte, azul. Chove sem cessar. O tufão açoita. Há uma electricidade no ar. Tudo à beira de implodir, como o corpo na roupa que faz escoar a vida. O fuso horário confunde o dia. Aqui e agora não é lá sabe-se lá quando. E não esperarei. Porque poderia partir e ficar sem tentar regressar, sem ter por quem regressar, sem querer regressar. Acordo e peço noodles. Volto ao Ardbeg. Vou para a cama já sem imaginação para o que quer que seja e vejo séries para adormecer. Perguntei-te se esperava por ti. Não. Não era para esperar. Foi uma figura de retórica. Já vivo no oriente onde é casa só com a referência das horas de todos os dias. Olho o meu corpo irreconhecível e é para mim como o Chinês que ouço, as cores berrantes das lojas. O longe de onde parti e a que nunca regressarei. Querendo, não saberia como. Já só de caminho, já sem saber a que regresso, de onde parti e para onde vou. Houvesse uma rotina com um itinerário e eu saberia com disciplina adormecer. Mas entre mim e mim há a noite. E se o dia é difícil ao princípio, a meio da tarde vem a dobra. Com o jantar, encho-me e encharco-me. Com a noite vem a anestesia para o que não é dor, porque nada me dói. E preferiria o desespero, com os olhos postos no futuro para sempre. Preferia isso a “isto”. Já nada esperar. “Ao longo da viola morosa”, “mas já sem coração que me prenda”. Primeiro, esqueço-me de ti, dela, dele, de vós, de nós, dos outros. Depois, esqueço-me de mim. Oblitero-me e só ecoa a viola morosa com acordes que vêm de aves estranhas. O som agudo da tristeza é dilacerante. Já não me revejo, nem escuto, nem ouço. “Mas que cicatriz melindrosa”. Entre idas e vindas, textos lidos e por escrever, jantares com os sabores da Tailândia e cheiros opulentos. O picante exige cerveja. “Ao longo da viola morosa”, há quem tenha vidas. Eu, porém, queria partir, sem chegar. Ou estar só por estar. Buscando o quê, quando me queria despedir de mim e não tenho talento. Vistas as coisas, nada mais há. A não ser a espera. Nem é tristeza. É uma incompetência incómoda e desagradável. Trabalho a partir do interior do que quer que seja que é interior a extirpação da espera. Há ainda um resquício humano que em mim faz que pudesse esperar. Mas o que mais gosto de ver é o tufão que vem me faz não ser vulnerável, nem estar exposto a nenhuma maré, a não ser à definitiva.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFábula de um marciano em Macau 04/09/17 [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem chegasse de Marte, de talhe e olhos verdes, assim como eu, e passeasse distraído pelas ruas de Macau não deixaria de notar a verdadeira obsessão que os humanos têm pelos relógios. Há mais lojas de relógios do que Madrid tem toureiros. Será terra de filósofos, interrogar-se-ia o marciano da melena verde (como a minha). Em Portugal, rezam os canhenhos também era assim no século XVIII. Casa que não tivesse na sala cinco relógios de pêndulo e dois de cuco não valia um caracol. Disso soube o corsário francês Du Bocage, irmã de uma poetisa francesa que o Voltaire elogiara, e que se apoderou dum navio holandês que levava no porão seis toneladas de relógios e rumou imediatamente a Lisboa, no farejo de vender a mercadoria. Rapaz pragmático, enamorou-se de uma rapariga de Alfama, e depois de outra, e de outra, enquanto ia enchendo a cidade de tique-taques. Deste modo se amodorrou por Lisboa o antigo pirata francês e nela fez uma filha – a mãe do poeta Bocage. É inútil procurar rasto de Bocage por Macau, embora, após ter desertado da marinha, tivesse o “carão moreno” aqui desembarcado, antes de mão amiga o salvar de novas dissipações, “deportando-o” para Lisboa, para alegria dos salões que nesse tempo andavam à míngua de rimas. Mas coloco uma hipótese que me animará o resto da semana. Bocage chega a Bocage na penúria (como eu) mas com uma carga de que nunca se separava por afecto: o relógio que fora do seu avô e que a mãe, no leito de morte, lhe entregara à sua mão pequenina. Por duas vezes ainda dormiu na Gruta de Camões, embalado pelo mavioso tique-taque, enquanto reflectia, Que tipo de devaneio cabe aos relógios, ou, Onde se localizará o clitóris do tempo, etc.,etc. Mais nada lhe ocorreu, pois nada mais lhe sobrava e nessa altura não havia ainda os casinos para experimentar a sorte. Na manhã do terceiro dia, faminto e alquebrado, entrou numa venda na cidade e penhorou o relógio do avô, que tinha marchetado em marfim um camaleão cuja língua tocava o baixo ventre de uma Virgem com as faces encarniçadas… pelo assombro. Só me restam quatro dias para vasculhar, de coração contrito, rasto do relógio de Bocage. Baterei um a um todos os relojoeiros de Macau, mesmo sabendo que ruborizarei ao descrever a volúpia nos olhos da Virgem. Dado que em Macau é tudo perto, como no Alentejo, estafarei as solas e ficarei verde (como o marciano) a quem finalmente chegou “o cheiro da carne que nos embebeda”. 05/08/17 Gosto, quando aterro numa cidade e passado pouco tempo na minha cabeça fervilha a ervilha dos projectos. É o que me está a acontecer em Macau, onde se me deflagrou o desejo de escrever uma peça sobre as relações entre Pessanha e o seu arqui-inimigo Silva Mendes, um tradutor de Lao Tze que invejava o poeta. O modelo da peça será o conflito entre Mozart e Salieri. Já tenho o actor para o Salieri: o Manuel Mendes – como se diz em Moçambique, um xará do primeiro. Uma comédia que fale da difícil acomodação dos poetas na cidade e brinque com o manto de irreais com que os portugueses se entregaram em todas as colónias à devotada replicação das suas aldeias. Ainda não gizei o enredo, mas creio que o relógio de Bocage será um motivo de disputa, que a cabeleira verde (em jade) do marciano igualmente, e que haverá um travesti que se julga a Lady Macbeth. 06/08/17 Faz-se em Macau o que em Moçambique não se ousa. Manter viva a voz do poeta que sinalizou o acume simbólico da presença portuguesa. Aqui Pessanha revivifica, em Moçambique o ausente, a grande figura genial é ainda um filho bastardo do vento (que como se sabe é fêmea) e do esquecimento. E tem nome, ou antes tem vários: António Quadros, pintor/ João Pedro Grabato Dias, ou Mutimaté Barnabé João, o poeta guerrilheiro que ele inventou. E foi o bruto poeta, arquitecto, pintor, pedagogo, apicultor, autor de manuais sobre óptica – este único poeta que o Zeca Afonso musicou. Começou por ganhar um reputado prémio literário que nunca levantou, escreveu uma continuação paródica dos Lusíadas, em as Quibíricas, atribuídas a um frei Joannus Garabatus, suposto confessor do El-rei D. Sebastião (livro que mereceu um prefácio paródico de Jorge de Sena); fez reportagens poéticas sobre as incidências em Moçambique após a independência, ao jeito de uma que Lusa tivesse Ovidio e Virgílio como redactores; escreveu longas odes sobre temas existenciais e sobretudo A Arca (de Noé), uma suposta tradução do sânscrito ptolomaico com versão contida, na qual Grabato só larga o espaldar depois de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese. Aqui deixamos um excerto de um outro poema: «Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?/ Estive sempre em viagem. Só agora regresso. / Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca / De entre os linhos, alfazemas, naftalinas /E usa-os no domingo de todos os dias do ano (…)/ Estou catando os cachorros, apanhando limões/ Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca./ Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios/ Com o esticar dos fios da complacência doméstica./ Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha/ Virando de barriga para cima os veludos das crias./ Espero daninho o teu regresso, acocorado no verão/ E, porque cheguei ao verso, estou vivo» 06/08/17 Acordo e sento-me no útero da minha mulher. Serão já saudades de Macau?
João Luz PolíticaProstituta [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]enham a mim, meus filhos, alimentem-se da generosa teta venusiana, saciem a sede de entendimento e redenção no meu sempre disponível regaço. Todos vós, homens de Macau, são meus filhos adoptivos e amantes eternos, assim tem sido desde que o delta escavou caminho até ao mar. Eu sou o pilar da Felicidade, a dona de todas as volúpias, a guardiã do cárcere da lubricidade onde prendo os vossos penitentes desejos. Vós, Rómulos e Remos, palpitantes de rubra intumescência como mil corações que pulsam no baixo ventre e uma boca que antecipa amamentação. É assim que vos quero, prontos para se perderem no meu fruto proibido, inebriados pelo meu canto de sereia, tresloucados a uivar em lupina excitação à Lua Nova. Venham a mim jovens aprendizes do amor, eduquem-se na minha academia de luxúria, aguardam-vos mundos secretos e pequenas mortes de êxtase em contorções suadas. Eu sou a fundação de Macau, muito para além dos Mandarins, do poder da pólvora, da autoridade do dinheiro, das promessas dos evangelhos, dos sortilégios do jogo. Sou em simultâneo a perdição e o perdão, o pecado e a absolvição, entre as minhas pernas guardo paraíso, inferno e a chave da cidade. Como na Grécia de Sólon, onde fui adubo da semente da democracia, amei o burguês e o vagabundo de igual e incondicional forma. Amei a democracia e fui pilar das finanças públicas, os impostos apurados nos bordéis públicos de Atenas pagaram o Templo da Afrodite Pandemia. Sou justiça e equidade, sou a dignidade do pobre que descobre que apenas no prazer e na morte os homens são iguais. Sou a história do mundo, sou a terra fértil que alimenta homem e besta, sou a terra árida que invoca a chuva, sou Vénus e Maria Madalena, a crucificação e a gloriosa ressurreição. Sou a conveniência compreensiva, o agasalho dos solitários, o indizível segredo dos adúlteros, o deslize para o conforto uterino, sou matriz e mulher da vida. Sou lótus florida a aguardar polinização em cama de hotel, trago a paz aos guerreiros tombados nas batalhas da sorte, o cheiro de casa aos desterrados, o conforto das almas irrequietas que precisam da sobremesa libertina depois de banquetes de erudição. Sou a tábula rasa, o zero absoluto, a singularidade matemática, o momento Eureka comprado por 500 patacas à hora. Estou em todo o lado. Em anúncios, casas de reputação duvidosa, nas esquinas das ruas das felicidades e nas memórias dos que me frequentaram, no vapor medicinal de inusitadas saunas. Estou em todo o lado, mas ninguém me vê, fogo-fátuo à beira da existência, eminência parda e rainha dos prazeres nocturnos. Durante o dia ninguém me vê, mas eu ando entre vós, camuflada pelo porte honrado com que deslizo pelas ruas. Sou a grande Babilónia, mãe dos prazeres. Sou a inebriação que eleva os pobres mas também me deito com todos os reis. Monto uma besta com sete cabeças blasfemando o nome de Deus aos sete ventos, enquanto emborco taças de sangue de mártires. Sou a idólatra, a besta, o anjo caído entre lençóis de seda. Venho das Filipinas, da Mongólia, da Ucrânia, Vietname, Camboja, China Interior, do Inferno, venho de onde o desespero é o pão diário, refaço-me longe de casa debaixo de estranhos hálitos. Faço-me forte todos os dias, erijo-me como uma montanha e apago os despojos da noite anterior em bolas de algodão. Limpo todos os homens desta cidade do meu corpo, os virtuosos e os monstruosos, e refaço-me em tardias alvoradas de anunciação. Canso-me neste carrossel lúbrico onde envelheço a alta velocidade, vendo a minha juventude e amor a quem pagar o preço certo. Esta pantomima fez-me empedernida, gasta. Só quero paz, silêncio, escuridão, folga das autoridades, clientes respeitadores e um duche perpétuo. Quero romper este ciclo e fugir para onde não me conheçam, onde o meu passado não existir. Mas mesmo que parta, vou sempre estar em Macau, nunca vou partir totalmente. Esta é a minha cidade, pois eu sou A-Má, protectora dos pescadores e das gentes dos mar, sou a mãe e a mulher da vida.
Isabel Castro Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | José Tavares, presidente do conselho de administração do IACM A criação de órgãos municipais sem poder político será uma oportunidade para reestruturar o IACM e torná-lo mais compatível com a realidade de Macau, mas não deverão ser introduzidas alterações significativas ao que hoje é feito. José Tavares, presidente do instituto, acredita que, apesar de a casa ser grande, é possível dar conta do recado sem a multiplicação de organismos. Em entrevista, confessa que não estava à espera de dirigir o sucessor do Leal Senado, casa onde começou a trabalhar há mais de 30 anos [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá há mais de um ano na presidência do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). Como é que está a ser a experiência? É uma experiência nova de gestão. Estamos a falar de um serviço público que é o terceiro maior em termos de pessoal, são mais de 2600 funcionários, com 11 departamentos e 33 divisões. Engloba muitas áreas e cada uma com a sua especificidade. É um desafio e, ao mesmo tempo, uma experiência aliciante, apesar de já conhecer a casa – o meu primeiro emprego na Função Pública foi no Leal Senado, num cargo entretanto extinto, o de secretário-dactilógrafo. Regressou então a casa, mas com uma responsabilidade completamente diferente, o que é um desafio. Sempre gostei de desafios. Venho do desporto. Estou habituado a desafios. “Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações.” Quais são as áreas que considera prioritárias no IACM? Para mim, são todas prioritárias, mas posso destacar algumas, como a segurança alimentar. É uma área que temos tratado com maior intensidade nos últimos tempos. Temos acertado alguns parâmetros e índices alimentares para que Macau possa estar de acordo com as práticas internacionais. Em 2016, foram publicados quatro novos índices e normas, incluindo os relativos ao leite em pó, e nove novas orientações. Agora, estão em fase de elaboração várias normas, sobre os limites máximos de metais pesados e de resíduos de pesticidas nos géneros alimentícios, e para a utilização de conservantes e antioxidantes. Isto quer dizer que estamos cada vez mais a elevar os nossos padrões e exigências para os alimentos importados. Macau é uma cidade de turismo e de lazer – temos toda a preocupação de fazer a protecção logo na primeira linha. Tudo isto é uma prevenção para reforçar a nossa segurança alimentar. Depois, há o investimento feito nos nossos laboratórios. Há uma atenção acrescida no que diz respeito a esta área. No início deste ano, foi feita aqui uma conferência internacional sobre aditivos alimentares, com mais de 300 participantes de mais de 50 países. Isso significa alguma coisa. São organizações internacionais que conseguimos trazer, através do apoio da China. É um sinal de que Macau quer elevar os seus padrões ao nível internacional. A par da segurança alimentar, que outras áreas é que o preocupam? Muitas áreas. As vias públicas são uma realidade que temos de enfrentar. O crescimento acelerado da cidade obriga a ter valas sempre abertas. É uma consequência da realidade do crescimento da cidade. Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações. O que pode ser feito é reforçar a coordenação, que tem que ver com os diversos serviços e também com os concessionários. A coordenação poderá ser melhorada. Juntamente com a secretária para a Administração e Justiça e com o secretário para os Transportes e Obras Públicas, conseguimos melhorar esta coordenação. Antes de tudo, é preciso haver um aviso prévio da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT) para podermos emitir uma licença. Sem o parecer deles, não há emissão de licença, isto para presumir, logo à partida, que a montagem e o percurso da obra sejam delineados conforme a indicação da DSAT. “[As duas câmaras] tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido.” Para garantir mais fluidez no trânsito? Sim, e para reduzir ao máximo os distúrbios que possam afectar a cidade durante as obras. Foi uma melhoria conseguida. O assunto foi abordado pelo Comissariado da Auditoria (CA), uma chamada de atenção feita acerca do período 2014-2015. Vimos o relatório. Achamos que há partes em que existe margem para melhorar e estamos a trabalhar nesse sentido. Outra preocupação tem que ver com os mercados e os vendilhões. Queremos alterar as leis sobre esta matéria porque já são muito antigas, vêm ainda da Administração Portuguesa. É um assunto urgente para resolvermos. As duas câmaras – o Leal Senado e a Câmara das Ilhas – tinham posturas diferentes. Nas ilhas fazia-se de uma maneira, aqui fazia-se de outra. Até hoje continua a ser assim porque a lei não foi mudada. Para nós, é muito difícil essa gestão. Depois, há ainda as zonas de lazer, que também foram alvo de um relatório do CA, que apontou algumas deficiências nos jardins e também nos espaços destinados às crianças. Tivemos essa preocupação e tudo foi composto em oito meses, conforme aquele relatório. Só que, durante este tratamento, verificámos outros problemas que não constavam da auditoria. Estamos agora a resolvê-los e espero que, até ao final do ano, o trabalho esteja concluído. Mas é um trabalho constante, porque a casa é grande. Estamos a falar de Macau inteiro. Em 2001, quando acabaram as Câmaras Municipais Provisórias, o Cotai não existia, era apenas um istmo. Faria algum sentido voltar a ter duas câmaras, atendendo a que hoje a Taipa e o Cotai têm uma dimensão muito maior do que quando foi pensado o IACM? Ou é preferível ter só uma estrutura? Acho que faz sentido ter só uma estrutura. Outrora, quando existiam duas câmaras, isso trouxe alguns problemas para a Administração, como referi. Tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido. O IACM tem uma postura para todo o território. A nossa população e a nossa dimensão não justificam ter duas câmaras. Aliás, o IACM já não é uma câmara – a figura da câmara era um poder local que, agora, já não existe. O IACM precisa de ter maior autonomia, atendendo às funções de proximidade com a população? O IACM consegue satisfazer todas as necessidades da população com a sua estrutura actual. Temos uma grande proximidade com a população. Temos reuniões regulares com o Conselho Consultivo do IACM, colóquios nas freguesias, com os Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários por Zonas, sessões abertas com a Administração, temos Centros de Prestação de Serviços ao Público, Postos de Atendimento e Informação, linhas telefónicas de atendimento ao público, com sistema de gravação de mensagens fora do horário de expediente, contas no Wechat, etc.. Não há outro serviço que tenha uma abertura junto da população como o IACM. Achamos que a actual estrutura do IACM é suficiente para dar resposta à realização de uma relação de proximidade com a população. Nos últimos tempos, o IACM perdeu competências em duas áreas – no desporto e na cultura. O desporto é uma área que lhe é muito próxima, trabalhou muitos anos neste campo. Que balanço faz destas alterações em termos orgânicos? Atendendo à complexidade de Macau, uma cidade muito densa, fez sentido libertar o IACM destas duas pastas? Fez e não fez. Fez, em certo sentido, por temos funções amplas e contacto próximo com a população. Mas também por isso os eventos culturais e desportivos podiam servir de elo de ligação com a população. Davam uma margem de manobra para o IACM poder ter um papel mais interventivo nas actividades recreativas, numa ligação mais imediata com a população. O que é que deverá ser o IACM no futuro? Acho que o IACM não deverá ser muito diferente do que é agora. O trabalho vai ser sempre feito por alguém. A criação de órgãos municipais sem poder político está prevista pela Lei Básica. São órgãos incumbidos pelo Governo de servir a população, designadamente nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, bem como dar pareceres de carácter consultivo ao Governo da RAEM em relação a essas matérias. Ou seja, o IACM, no futuro, não deverá ser muito diferente daquilo que conhecemos hoje. Julgo que essa mudança não traz grandes alterações em termos de prestação de serviços. Pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo. Haverá um nome diferente, com uma estrutura eventualmente diferente, poderão ser feitos alguns pequenos ajustes, até porque já passaram 15 anos, aproveitando também para se adaptar à nova realidade de Macau. Com a introdução dessa figura poderemos então esperar que haja um aproveitamento do que é hoje o IACM? É uma reestruturação do IACM, porque já passaram 15 anos desde a sua criação. É preciso ter-se também em conta a nova realidade de Macau. “[A criação de um órgão municipal] pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo.” Voltando ao trabalho que tem estado a desenvolver. Há planos para mais colaborações com entidades de fora de Macau, à semelhança da que estabeleceu com a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) de Portugal? Temos colaborações com várias entidades, quer aqui em Zhuhai, Cantão, Pequim, China e também em Portugal. É uma colaboração estreita, sobretudo na área da segurança alimentar. Isto é muito importante porque esta integração permite a troca de informações, há uma colaboração muito próxima em termos de tecnologias que estão a ser implementadas para a detecção de problemas. Além da segurança alimentar e do CEPA, temos uma colaboração constante com outras organizações internacionais, como na área da importação de animais e plantas em vias de extinção – que é muito importante, porque há muita prática de contrabando nesta área –, e Macau é obrigada a cumprir estas normas porque faz parte dos tratados neste âmbito, e nas áreas de inspecção fitossanitária e sanitária, e de prevenção e controlo de epidemias animais. Isto também está dentro do nosso pelouro. A colaboração com a ASAE está a ser muito frutífera, porque mal a secretária para a Administração e Justiça assinou o protocolo com o ministro, foi logo desencadeada uma série de iniciativas. O inspector-geral da ASAE esteve aqui comigo, traçámos metas, logo a seguir fizeram-se três seminários, para o ano vamos lá para acertar outras coisas, pelo que acho que está a resultar. Mas há mais ideias deste género para o futuro? A colaboração não pára aí. Estamos agora a implementar uma plataforma de transacções electrónicas online do Centro de Distribuição de Produtos Alimentares dos Países de Língua Portuguesa. É muito importante, quer para nós, quer para eles. Vem na linha da política “Uma Faixa, Uma Rota”. Iremos criar um mecanismo permanente, sincronizado e mútuo, de inspecção para produtos lusófonos que passam por Macau. Vai permitir que os produtos sejam colocados à venda no mercado com maior brevidade. É macaense, presidente do conselho de administração do IACM, um órgão com uma importância grande na cidade. Há uns anos, esperava que isto fosse possível? Sempre foi possível. O secretário Raimundo do Rosário é macaense. É nomeado pelo Governo Central. Tudo é possível. Só que eu não esperava. Foi uma surpresa para mim – agradeço o convite feito pelo Chefe do Executivo, agradeço à secretária para a Administração e Justiça, pela confiança que me foi depositada, porque nunca pensei que um secretário-dactilógrafo do Leal Senado fosse, um dia, presidente do IACM. Comecei a minha carreira aqui, tenho 33 anos de serviço, tive esta grande oportunidade. Para retribuir, vou dar o meu máximo. Sente saudades do Instituto do Desporto? Sou um homem do desporto. Continuo a ser um homem do desporto.
Isabel Castro VozesA partida [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira perda que tive foi a morte. Tinha oito anos e a morte foi-me comunicada tal como ela é, sem paninhos quentes. Ainda não se pensava muito na psicologia das coisas e ainda bem, porque há assuntos em que os rodeios não cabem. A morte é a morte, eu não percebia o que não tinha de perceber, entendi mais tarde, uma semana ou duas talvez, quando compreendi que morrer era perder para sempre. A minha primeira perda foi também um chocolate com passas e frutos secos, de tamanho gigante, nas minhas mãos de tamanho mínimo, uma espécie de pedido de desculpas antecipado pelos olhos que, à minha volta, se acinzentaram. Com o tempo, a perda ganhou outros contornos, depois do significado inicial. A dada altura, num exercício filosófico de adolescente amante de poesia, atrevi-me a pensar que a perda era mais do que a morte e não precisava necessariamente de ser provocada por ela. A escala da perda variava conforme a fragilidade do momento. Repensei a tese uns anos depois, quando a perda caiu que nem uma pedra, toda ela definitiva, independentemente da força que achava ter para sobreviver ao que desapareceu. Sem chocolate com passas e frutos secos. Mas imaginemos que há um índice de perdas. A relativização é algo que nos dá jeito, sempre. Macau é uma terra em que se perde mais do que se ganha, apesar de se ganhar muito, de forma profundamente desequilibrada. Há perdas várias, a todos os momentos, sem termos de recorrer aos lugares-comuns dos casinos onde se perdem fortunas e azares, amantes e outras substâncias inebriantes. Há perdas bem mais difíceis, porque são mais importantes e decisivas, apesar de não serem imediatamente fatais. Perder a oportunidade de crescer bem é quase tão mau quanto não se ser. Não se querer ver é quase tão mau quanto só ter a escuridão como hipótese. Não se saber pensar é o pior. O problema é, mais uma vez, da literatura, da falta de literatura, e da iliteracia, a das letras e a do resto, de não se saber ler o que vai nos rostos, nas mãos, nos gestos cansados. Perde-se a possibilidade de ser mais nesta letargia húmida que tudo invade. Perdem-se pessoas. A cidade é demasiado pequena para as pessoas que se perdem no entra e sai das fronteiras, nas despedidas junto aos barcos, imagem romântica sem qualquer romantismo que resista ao cheiro do combustível queimado, da água estagnada, da respiração dos passageiros apressados. Perdem-se pessoas por via do mundo ser grande, ter tanto para descobrir, mas também por via do cansaço, da desistência, de quem quis mais para isto para descobrir que isto não é para mais, é só para isto. Macau é uma terra de dispensáveis, de vai um chega outro, não há vizinhança que sobreviva para contar a história da porta fechada. Ninguém reparou, sequer, que a porta se fechou. Com as pessoas vão as memórias. A cidade é demasiado estreita para que não sejam conservadas. Ficam as pedras que sobram e os rostos pintados, muitos deles desconhecidos, de quem foi copiosamente chorado para ser esquecido logo a seguir, quase logo a seguir. Não nos ensinam a partir, ficando.
Andreia Sofia Silva SociedadeAPG | Licenciamento de junkets e concessões é “robusto” Macau recebe nota positiva no Relatório de Avaliação Mútua aprovado pelo Grupo Ásia-Pacífico contra o Branqueamento de Capitais. O licenciamento de concessões, subconcessões e junkets é considerado “robusto”. Governo diz que percepção dos riscos pode ainda ser maior [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Relatório de Avaliação Mútua de Macau relativo ao branqueamento de capitais tem estado a ser avaliado numa reunião anual do Grupo Ásia-Pacífico contra o Branqueamento de Capitais (APG) a ter lugar em Colombo, capital do Sri Lanka, onde o Governo da RAEM está representado. Segundo um comunicado do Gabinete de Informação Financeira (GIF), o território recebeu uma nota positiva sobre esta matéria, tendo obtido a notação de “Eficácia Substancial” no domínio da supervisão. Na visão do GIF, esta atribuição “não é muito frequente entre as jurisdições avaliadas a nível mundial”. O relatório, que obteve aprovação do APG, aponta que “os requisitos de licenciamento no sector do jogo para as concessionárias, subconcessionárias e promotores de jogo é robusto”. Além disso, o relatório aponta que Macau tem vindo a aplicar medidas respeitantes ao “licenciamento e avaliação de idoneidade” que incluem “os promotores de jogo e os seus colaboradores”. O mesmo documento dá ainda uma nota positiva ao trabalho da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ), por esta possuir “uma equipa de auditoria experiente e adequadamente qualificada” para a supervisão das medidas adoptadas. “A qualidade dos relatórios de auditoria analisados durante o processo de avaliação foi considerada bastante satisfatória”, acrescenta o comunicado do GIF. É bom mas não chega Apesar das boas notas, o Governo considera que é necessário fazer mais para garantir o bom funcionamento das operações associadas às concessões e subconcessões de jogo. “As obrigações contidas nas novas instruções e os riscos associados à indústria são, regra geral, do conhecimento das concessionárias e subconcessionárias. Todavia, o Governo reconhece que o nível de conhecimento e compreensão das obrigações e dos riscos associados pode ainda ser fortalecido”, lê-se no comunicado. O Executivo lembrou que as novas medidas de fiscalização das operações junket, uma vez que actualmente existe um “sistema de duplo escrutínio no que respeita à admissão de promotores de jogo”. Esse processo de verificação da idoneidade e licenciamento é feito junto das concessionárias e também das subconcessionárias “antes de estas estabelecerem relações formais de negócio com os promotores de jogo”. “No futuro, o Governo vai continuar a melhorar e a reforçar a supervisão do sector do jogo, exigindo um contínuo cumprimento dos padrões internacionais vigentes no domínio do combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo”, conclui o comunicado do GIF.
Isabel Castro VozesDois por quatro [dropcap]1[/dropcap] Macau tem um ritmo estranho. Às tantas os outros sítios também têm um ritmo estranho, mas quem vive aqui não está neles e, por isso, não sabe de certeza vivida. Ficamos por cá a fazer a contabilidade de um tempo bastante parvo, em que os dias são sempre muito compridos e, em simultâneo, demasiado curtos, até porque o sol foge cedo, muito cedo, nos dias em que se digna a aparecer. São dias compridos, mas curtos, que teimam em ser extraordinariamente repetitivos para quase todos nós, emoldurados que estamos entre afazeres profissionais, familiares, pessoais, sociais. Dias curtos, mas compridos, que se condensam em ciclos, sempre mais ou menos iguais. Quem veio de fora faz as contas não aos anos, mas ao número de edições deste ou de determinado acontecimento. A partir de certa altura, o tempo começa a mingar. Ainda ontem era grande prémio e está quase aí outra vez, deixem o Verão acabar e vão vê-lo em auditivas acelerações. Por entre estes compassos repetitivos de Macau, que se escreveram para serem dois por quatro, andante, andam fusas e semifusas que, de tão rápidas, se nos escapam ao entendimento. Damos por elas, mas não sabemos que leitura fazer das coisas que não aparecem escritas. O que nos mostram não chega a ser. Não nos resta mais do que esperar pelo tempo, esse conceito que alguém inventou para evitar que vida e morte se juntassem demasiado depressa. [dropcap]2[/dropcap] Vêm aí as legislativas, assunto que, muito provavelmente, não empolgará por aí além a maioria dos que me lêem. Para este ano há mais do mesmo, com mais diversidade, mas com o grau de interesse de sempre: pouco. Ainda assim. Faz parte desta coisa de ser cidadão estarmos informados das nossas opções, mesmo sabendo, de antemão, que dificilmente nos servirão. É um direito dever, um dever direito, não há mais e é o que temos. No início era complicado perceber isto, lembro-me bem. Fui assistir ao meu primeiro plenário na Assembleia Legislativa com uma útil revista na mão que me dizia quem era quem, na medida em que é possível perceber-se quem é quem, e lembro-me de pensar que seria difícil algum dia entender o que verdadeiramente se dizia por ali. Não me enganei redondamente, apesar de, com o tempo, ter conseguido fixar os rostos e algumas das ideias, uma conquista que, feitas bem as contas, serve de pouco, de muito pouco. Sei quem são mas não sei quem são, ainda hoje, apesar de tudo. Ainda bem. Ainda assim. Várias legislaturas depois, com mais mudanças pelo meio do que seria de esperar, apesar do tédio que marca o tempo político, continuo a surpreender-me com este sistema e com quem faz parte dele. Os grandes e os pequenos, os grandes que estão ali de pedra e cal, com raízes na alcatifa fofa, e os pequenos, aqueles que não chegam lá mas que, por algum motivo quase sempre pouco ligado a uma irresistível vontade de participação cívica, querem lá estar também. Por norma, não conseguem. Ainda assim. Surpreendem-me os nomes e a falta de ideias e também o excesso de monotemáticas lutas. Listas que têm apenas um único objectivo, como se fosse um disparate ter mais do que um. Ou como se fosse de todo impossível dez cabeças produzirem dez ideias diferentes. Listas que se dizem cor-de-rosa, o que quer que isso signifique. Candidatos que continuam no século XX, na primeira metade do século XX. Candidatos que não saíram do século XVIII. Candidatos que ainda não perceberam que já não há cavalos e burros nas ruas, que dos agricultores resta apenas uma associação com o nome, que as mulheres não carregam cântaros na cabeça e que as crianças não andam descalças, barrigudas de fome, nas ruas enlameadas da terra, e que os mandarins agora são outros, com menos sedas e talvez menos mulheres. O tempo tem um ritmo estranho. Compassos de dois por quatro, andante, 60 por minuto, como manda o tempo, talvez 80 em caso de crise, fusas e semifusas que não encaixam, corre tudo tão depressa e tudo fica no mesmo sítio.
Hoje Macau SociedadeDemografia | Mais de um quinto da população com ensino superior A escolaridade está a aumentar em Macau e o facto já se reflecte nas estatísticas. Foram divulgados os resultados dos Intercensos, que mostram que somos cada vez mais, mas com menos espaço [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais de um quinto (23,1 por cento) da população de Macau tem como habilitações académicas o ensino superior, indicam os resultados globais do Intercensos 2016, divulgados pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC). O número representa um aumento de 6,4 pontos percentuais comparativamente aos Censos 2011, e acompanha uma subida contínua da escolaridade. O universo das pessoas com nível inferior ou equivalente ao ensino secundário complementar diminuiu 6,5 pontos percentuais em cinco anos, representando metade da população (50,4 por cento). Com 650.834 habitantes em Agosto de 2016, mês em que se realizaram os Intercensos, a população de Macau deu um ‘pulo’ de 17,8 por cento em cinco anos, devido ao “acréscimo substancial de trabalhadores não residentes” e “à subida da taxa de natalidade”. A taxa de crescimento médio anual atingiu 3,3 por cento no período 2011-2016, “constituindo o pico dos últimos 20 anos”, salientou a DSEC. O envelhecimento contínuo da população, composta maioritariamente por mulheres (51,8 por cento), deve-se ao “substancial aumento” de 48,6 por cento das pessoas com ou mais de 65 anos. Os idosos (59.383) passaram a representar 9,1 por cento da população total – mais 1,9 pontos percentuais face a 2011. O índice de envelhecimento – proporção da população idosa (com idade igual ou superior a 65 anos) em relação à jovem (0-14 anos) – atingiu 76,3 por cento, “após sucessivos aumentos”, ultrapassando em 15,6 pontos percentuais o de 2011. A DSEC registou um aumento constante da média da idade do primeiro casamento, que passou de 29 para 29,5 anos. No território, dois terços (63,2 por cento) da população com idade igual ou superior a 16 anos eram casados, uma descida de 0,8 pontos percentuais em relação a 2011. Espaço mínimo Em alta manteve-se também a densidade populacional, que continua a ser uma das mais elevadas do mundo: 21.340 pessoas por quilómetro quadrado em 2016, ou mais 15,5 por cento relativamente a 2011 (18.478). As zonas mais densamente povoadas ficam na zona norte da cidade, com a da Areia Preta a concentrar 11,8 por cento da população total, indicou a DSEC. O estudo destacou um aumento brusco, de 5,3 vezes nos últimos cinco anos, da população em Coloane, o que tem que ver com a ocupação dos bairros de habitação pública de Seac Pai Van. De acordo com os dados publicados, que actualizam os resultados preliminares divulgados em Dezembro último, existiam 188.723 agregados familiares (um aumento de 10,5 por cento face a 2011), compostos em média por 3,07 membros. As famílias com três membros são predominantes e representam 24,5 por cento do total, o que reflecte um crescimento de 1,3 pontos percentuais em cinco anos. Os agregados familiares com quatro elementos diminuíram 1,6 pontos percentuais em relação a 2011 (21,4 por cento do total). Do total de 188.723 agregados familiares, 34.319 residiam em habitações públicas, com 22.096 em económicas (vendidas a preços inferiores aos de mercado) e 12.223 em sociais (arrendadas), ou seja, equivaliam a 18,3 por cento do total. Esta subida de 5,1 pontos percentuais em relação a 2011 é explicada pela disponibilização de habitação pública, especificou a DSEC. O número de famílias que morava em fracções sociais duplicou (+100,8 por cento) em cinco anos, sublinhou. Já 124.126 agregados familiares moravam em casa própria, isto é, dois terços do total (66,2 por cento), valor que reflecte uma diminuição de 4,6 pontos percentuais comparativamente a 2011. Em sentido inverso, o universo de famílias (48.481) em casas arrendadas, que representava 25,8 por cento do total, subiu 1,2 pontos percentuais em cinco anos, devido ao aumento de residentes que passaram a habitar em casas sociais e à subida do número de trabalhadores não residentes, explicou a DSEC. O número de agregados familiares que possuíam veículos (motociclos ou automóveis) cresceu 13 por cento no intervalo de cinco anos para 105.993, sendo que 21.212 tinham pelo menos três viaturas, um aumento de 28,9 por cento comparativamente a 2011.
Hoje Macau SociedadeEconomia | Acelera este ano, abranda em 2018 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Fundo Monetário Internacional (FMI) manteve a projecção de que a economia de Macau vai voltar a crescer este ano, mas antecipou uma desaceleração para o próximo, indicou a instituição no World Economic Outlook. A previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em termos reais de 2,8 por cento em 2017 foi conhecida, em Fevereiro, num relatório da instituição financeira sobre a RAEM. Nesse documento, o FMI reviu em alta a projecção de crescimento, avançada em Outubro, que era de 0,2 por cento. Para o próximo ano, o FMI antecipou um abrandamento, com um aumento do PIB de 1,7 por cento em termos reais. Já para 2022, o World Economic Outlook previu uma recuperação, ao calcular um crescimento de 3,8 por cento para esse ano. A economia de Macau contraiu-se em 2016 pelo terceiro ano consecutivo, apesar da recuperação da indústria do jogo. O documento do FMI reiterou previsões anteriores relativamente à taxa de desemprego de Macau, calculando que se mantenha na ordem dos dois por cento este ano e no próximo. As taxas de inflação também se deverão manter baixas: dois por cento em 2017, 2,2 por cento em 2018 e três por cento em 2022. No World Economic Outlook, publicado em Washington, o FMI melhorou ligeiramente a previsão de crescimento económico mundial para os 3,5 por cento em 2017 (contra os 3,4 por cento anteriormente previstos), projectando um crescimento de 3,6 por cento em 2018.
Hoje Macau SociedadeJorge Sampaio sobre processo de transferência de Macau: a ausência de estratégia e consenso [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ex-Presidente da República Jorge Sampaio recordou ontem, sobre o processo histórico de transferência da soberania de Macau para a China, que tomou posse em 1996, quando “decorria o chamado período de transição”, com consultas e negociações. “Importa agora sublinhar que foi um período sinuoso, com momentos algo erráticos, pontuado por indecisões, incidentes, melindres e alguns escândalos”. Por outro lado, Sampaio fez uma comparação com o processo de transferência de Hong Kong [Reino Unido-China] e notou que Portugal “conseguiu – e bem – evitar enveredar por uma via de afrontamento e roturas”, tendo alcançado uma “estratégia de cooperação”. Sobre as forças políticas da altura, o antigo Presidente deixou uma questão em aberto: “Com o recuo do tempo, interrogo-me naturalmente se a ausência entre as nossas forças políticas de uma estratégia consensual para Macau não foi um freio a um processo negocial mais afirmativo”. Jorge Sampaio considerou também, a propósito da transferência de soberania de Macau para a China, que Portugal terá de reforçar “as estratégias de cooperação” com o gigante asiático no âmbito da Organização Mundial de Comércio. Sampaio – que falava na Conferência “Trinta anos de Declaração Conjunta. Portugal, China e Macau”, no Museu do Oriente, em Lisboa – afirmou que esta iniciativa portuguesa deveria ser ainda mais premente devido à posição da nova administração norte-americana, de Donald Trump, face ao comércio mundial. “No meu modesto parecer, há nesta área campo para trabalhar estratégias de cooperação reforçadas no âmbito das quais a China passa a desempenhar um papel ainda mais importante perante, sobretudo, o que parecem ser as novas posições da administração americana e a sua interpretação do que entende por ‘fair trade'”, disse o antigo Presidente, que estava em funções no momento da transferência do território, em 1999. Na opinião de Jorge Sampaio, “Portugal tem conseguido defender melhor os seus interesses comerciais no âmbito da UE e no quadro do multilateralismo da OMC” do que se não fizesse parte destas estruturas de concertação. Por estas razões, realçou o antigo chefe de Estado, “importa seguir este dossiê e encontrar novos nichos de cooperação [com a China] que permitam continuar a potenciar o comércio internacional como factor de crescimento económico e a reforçar o papel da OMC na sua regulação”. Outras áreas em que Portugal deve apostar com vista à cooperação com a China prendem-se com os compromissos assumidos no âmbito da Agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e um aumento do relacionamento “na investigação, na Ciência e no Ensino Superior”. A declaração conjunta Portugal-China relativa à transferência de Macau foi assinada a 13 de abril de 1997.
Isabel Castro VozesAs sombras [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hegam de mansinho e fecham-se, bem fechados, como se as ruas lhes fizessem mal. A clausura que procuram não deve, nem pode, ser confundida com vontade de transmitir humildade. É o contrário. O isolamento que os rodeia tem características de redoma, uma redoma que julgam pintada a ouro, pintada com ouro, condicente com a sonância dos apelidos que acompanham o nome próprio, pelo que já foram e agora são. Chegam com pompa e circunstância, dentro das circunstâncias possíveis da pompa de quem já não sabe – talvez nunca tenham sabido – onde está. Comportam-se como príncipes de um reino que nunca lhes pertenceu, seres que não se confundem com a plebe, eles é que tiveram importância, sem os seus actos e omissões nada seria como é. O passado assalta-nos porque eles são o passado. Chegam com silêncios. Fecham-se em copas e espadas, ases na fuga aos microfones, para os quais não são capazes de olhar sem uma certa altivez a roçar o desprezo, ou com um certo desprezo que gostaria de ser altivo, mas que não consegue sê-lo por falta manifesta de pedigree. Mas eles estão aí. Vêm em excursão, não obstante detestarem excursionistas e autocarros, e paragens nas estações de serviço para abastecer e desabastecer. Andam aí não se sabe bem onde, nem a fazer o quê. Reúnem-se e discutem o futuro dos outros, como se pudessem decidir o futuro dos outros, trocam elogios comedidos e beijinhos contidos, gostam imenso de se verem uns aos outros enquanto se vêem uns aos outros, depois é melhor nem falarmos nisso. O resto? O resto nem paisagem consegue ser. Não quero ficar no passado, neste passado de palácios e adjuntos e transferências e tricas e o que não se disse e o que não se fez. O passado interessa-me numa perspectiva histórica, sociológica e política, mas nada me diz como forma de vida, de pensar e de estar. Há uma certa Macau que, do nada, aparece para dizer que ela é que era, porque a Macau de hoje não existe. Eles desconhecem-na, propositadamente, abafam-na com o cheiro a naftalina que imagino que sempre tiveram, pelo que me dizem os livros de história que fui lendo. Essa Macau do passado que, de vez em quando, nos assalta, ignora a realidade, é incapaz de ver a mudança, não tem capacidade de perceber que os anos têm 365 dias e que passam uns atrás dos outros, os dias e os anos, e que com eles tudo muda. Houve gente que morreu desde que foram embora. Houve gente a nascer desde que foram embora. Há gente a chegar todos os dias, a comunidade já não é a mesma, é outra, tem outras preocupações que não os desentendimentos de há duas décadas, tem os problemas de hoje para gerir e não tem culpa – nem quer ter – do passado ao qual pertence apenas por herança nacional. Esta mudança não se põe em bicos de pés. Não tem por que o fazer. Por não se pôr em pontas, passa despercebida neste bailado lento, com um ligeiro cheiro a mofo, que se dança quando a população provisoriamente se altera, por via das visitas que se sentam, lado a lado, em confortáveis poltronas, debaixo do ar condicionado que lhes seca o suor e desfaz a maquilhagem. Ainda assim, apesar de terem os pés completamente colados ao chão, os que cá estão, os que ficaram e os que entretanto chegaram, vivem e têm direito a viver sem sombras. Sem terem de levar, de modo excessivo, com as balas que se atiram lá de longe, de há 20 ou 30 anos. Chegou a altura de o retrato ser diferente, porque a fotografia de família não representa ninguém.
Hoje Macau SociedadeJornal inglês Guardian publica texto sobre “lado negro” da economia de Macau Gente sem outra opção que não viver em Zhuhai, pessoas que vivem em casas modestas mas que trabalham em hotéis de luxo. A inflação, as ruas pobres, o contraste com a riqueza. O Guardian decidiu olhar para a Macau além casinos Versão online do artigo do The Guardian [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hama-se Auyeung Lai-sung e serve de pivô a um longo texto através do qual o Guardian tenta mostrar que existe outra realidade em Macau além do luxo. É com a história desta mulher que o artigo começa: Auyeung Lai-sung veio clandestina para Macau, numa tentativa de escapar à extrema pobreza na China rural. Entrou ilegal no território mas, em vez de um futuro brilhante, “nunca conseguiu passar da cozinha de um dos mais lucrativos casinos do mundo”. A entrevistada acorda de madrugada para fazer ‘dim sum’ para um restaurante de cinco estrelas, enquanto à noite janta noodles instantâneas para poupar dinheiro, para dar apoio à família. “Vejo as pessoas no restaurante e interrogo-me como é que conseguiram ganhar tanto”, comentou. “Eu queixo-me, mas é inútil. Nada vai mudar.” O Guardian enquadra depois Macau: é o terceiro sítio mais rico do mundo. Está à frente de Singapura, Noruega ou Suíça, e atrás apenas do Luxemburgo e do Qatar. Seguem-se os números do jogo, a noção de que houve uma quebra “ligeira” em 2015, e a ideia de que o sector está em recuperação. O dinheiro dos casinos constitui 70 por cento das receitas do Governo e “os cofres públicos beneficiaram do crescimento económico da China, com mais milionários a querem viajar para o único local do país onde as apostas nas salas de jogo são legais”. O texto inclui uma alusão ao facto de ter sido a cidade onde viveu Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder norte-coreano Kim Jong-un, assassinado no aeroporto de Kuala Lumpur no mês passado. “É também um destino de eleição para funcionários corruptos do Governo chinês”, apesar de esta tendência ter sido alterada com a campanha de luta contra a corrupção no Continente. “Mas ao lado dos muito ricos de Macau, estão os muito pobres”, escreve o diário. As estatísticas oficiais dizem que 2,3 por cento da população vive em situação de pobreza, mas “essa percentagem é baseada nos rendimentos, não tendo em conta a espiral do custo de vida que acompanhou o boom da indústria dos casinos”. Ouvidos de mercador A Caritas estima que 10 por cento da população vive na pobreza, com sete por cento a lutar para garantir necessidades básicas, como a alimentação. A este propósito, o Guardian cita o político e “líder de uma força pró-democrática” Pereira Coutinho: “O Governo não pode fazer nada para ajudar os pobres porque a corrupção é desenfreada. Só os ricos é que são ouvidos pelo Executivo, enquanto os pobres são ignorados e sofrem”. No artigo faz-se ainda referência à distribuição anual de nove mil patacas, com a entrevistada central do texto, Auyeung Lai-sung, a lamentar a falta de apoios sociais em continuidade. “É notório o contraste entre o apartamento onde vive e os halls dos opulentos casinos”, lê-se. O autor do texto passou pelo Cotai mas também visitou o Iao Hon, bairro onde “um terço da população trabalha em casinos”. O local “não tem o glamour dos casinos ou o charme colonial por norma associados à cidade”. O secretário-geral da Caritas, Paul Pun, é citado para explicar que o fosso entre ricos e os pobres é grande, “o Governo tem consciência do problema, mas precisa de ter coragem para o enfrentar e para lidar com os investidores do sector imobiliário”. Entrevistado é também um homem que, durante 40 anos, trabalhou na construção civil. Não teve possibilidade de comprar uma casa e, há quatro anos, mudou-se para Zhuhai. Para o homem, que tem agora 83 anos, foi a única forma de evitar ficar sem um tecto. “Sinto-me só aqui, todos os meus amigos estão em Macau e não tenho com quem conversar. Trabalhei muito toda a minha vida. Nunca imaginei que Macau pudesse mudar tanto.” O artigo do Guardian contava ontem com quase uma centena de comentários, de leitores que lamentam os estragos provocados pelo desenvolvimento do jogo, mas também de quem considera que o texto reúne apenas lugares-comuns.
Andreia Sofia Silva Manchete PolíticaPonte do Delta | Au Kam San questiona custos para Macau Contas são um mistério O deputado Au Kam San pretende saber o valor total que Macau terá de suportar face às derrapagens orçamentais com a construção da nova ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. E questiona o silêncio do Executivo sobre o assunto [dropcap]A[/dropcap] nova ponte que vai ligar Hong Kong, Zhuhai e Macau deverá receber os primeiros veículos ainda este ano, tendo um orçamento superior a cem mil milhões de yuan. Porque o projecto foi sofrendo atrasos e derrapagens orçamentais, com Hong Kong a anunciar, recentemente, que as duas regiões administrativas especiais teriam de investir mais na obra, o deputado Au Kam San questionou o Governo sobre o valor da factura que será suportada pela RAEM. Numa interpelação escrita, o deputado lembra que o orçamento inicial do projecto estava estimado em 38 mil milhões de yuan, sendo que 15,73 mil milhões seriam nanciados pelas três regiões onde a ponte vai ser construída. Por sua vez, os restantes 20 mil milhões de yuan “seriam pagos através do crédito bancário a ser contraído pelo consórcio do empreendimento”. “De acordo com essa estrutura de nanciamento, Macau teria de assumir 1,980 mil milhões de yuan. Porém, com a contínua derrapagem orçamental que se tem veri cado nesse empreendimento, qual vai ser, a nal, o montante da des- pesa que Macau vai ter de assumir?”, questiona Au Kam San. O deputado alerta ainda sobre o silêncio do Governo sobre esta matéria, defendendo que “o público tem vindo a ser iludido e completamente deixado às escuras”. “Quando o membro do Governo responsável pela tutela desse projecto, Raimundo do Rosário, foi questionado sobre o assunto, apenas respondeu que o ‘Governo tem verba já cabimentada para a ponte sobre o Rio das Pérolas’e, quando questionado sobre se aquele montante seria su ciente, apenas a rmou ‘vamos ver à medida que andamos’, sem acres- centar mais nenhuma informação para o público”, lembra Au Kam San. E AS LIGAÇÕES? Para Au Kam San, há também muito para explicar sobre o custo das instalações físicas da ilha arti cial. O projecto é da responsabilidade do Governo local, tendo as obras sido entregues a empresas da China Continental. Contudo, “não foram revelados por- menores quanto ao montante das despesas relativas a essa parte do empreendimento. Qual é o montante das despesas com essas obras? E quando é que as mesmas vão estar concluídas?”, inquiriu. “O público tem vindo a ser iludido e completamente deixado às escuras.” Au Kam San destaca ainda o facto de serem necessárias duas ligações para unir a futura ilha artificial aos novos aterros e também à península, além de serem “indispensáveis as infra-estruturas rodoviárias situadas na zona dos novos aterros, que estão relacionadas com essas duas ligações”. Também para estes projectos o de- putado deseja saber detalhes. “Quando é que vai ser iniciada a construção dessas três ligações? E quando é que estará concluída? Qual é o orçamento para cada uma das referidas ligações?”, perguntou. UM MILAGRE Na interpelação escrita, o deputado de- fende também que “Macau tem passado ao lado da construção da ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau”, pois “olhando para o que está a acontecer, até agora nada se mexeu”. “Segundo o secretário Raimundo do Rosário, Macau vai tomar medidas necessárias para que a ponte seja aberta à circulação automóvel em finais do corrente ano. Mas ninguém acredita que, em dez meses, possa estar concluída a ligação do troço de Macau da ponte sobre o Rio das Pérolas, no qual se inclui o edifício da inspecção alfandegária de Macau.” O deputado duvida ainda que “estejam prontos os canais aquáticos que estabelecem a ligação da ilha artificial à zona dos novos aterros e a conexão desta área com a península de Macau, bem como as obras de infra-estruturas desses dois canais localizados nos referidos novos aterros”. Au Kam San questiona mesmo se “vai haver algum milagre” para que todos esses projectos sejam edificados a tempo e horas. Ainda assim, “até ao momento, a maior incógnita continua a ser o encargo da construção do troço de Macau da ponte sobre o Rio das Pérolas, e o montante da derrapagem orçamental e da despesa que Macau vai ter de assumir. E, além disso, ainda o montante das despesas com as infra-estruturas rodoviárias para a ligação entre essa ponte e a península de Macau”, rematou.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMário Mesquita Borges: “A última Administração portuguesa cometeu muitos erros” [vc_row][vc_column][vc_column_text] Mário Mesquita Borges, docente da Universidade Católica e natural de Macau, olha para os últimos anos do Executivo de Rocha Vieira como um período em que prevaleceu a ideia de abandono e em que foram cometidos “muitos erros”. É essa a génese para a falta de preservação da cultura portuguesa que hoje existe, defende. O seu livro, intitulado “Macau, as Últimas Memórias de Portugal”, é lançado hoje [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] seu livro contém a ideia base de que a defesa da língua e cultura portuguesas estão entregues à comunidade macaense, mas que tem sido feito pouco por isso. Como resolver esta questão? Desde 1999 e previamente, nos últimos anos da Administração portuguesa, houve uma grande falta nesse sentido: garantir que existiam e ficavam cá os mecanismos e instituições para a promoção da língua portuguesa. Isso passa pela comunidade macaense porque é ela que, mais do que ninguém, compreende a confluência de culturas que sempre existiu. Ao nível oficial temos visto que, no que toca ao discurso político [sobre esse assunto), ele existe. É algo presente em quase todos os discursos, aliás. Sim, mas sabemos também que se fala muito no contexto da promoção da língua na relação económica com os países de língua portuguesa. Mas uma coisa é a vontade política e outra coisa é o fazer: ainda existe uma grande discrepância entre essas duas realidades. Portugal tem feito muito pouco para ajudar a promover a língua no território. Há o Instituto Português do Oriente, mas poderia ser feito mais. Sabemos das várias condicionantes que existem, mas o problema de base deve-se aos últimos anos da Administração portuguesa. A perspectiva sempre foi de abandono e não de permanência. Faria todo o sentido continuarmos aqui, de forma cooperante, para ajudarmos Portugal e também Macau. Não houve uma visão de longo prazo. Houve uma visão de curtíssimo prazo, e estou a ser simpático. A lógica era de debandada, não era de querer deixar uma marca que ficasse e continuasse para as gerações vindouras. E que evitasse, talvez, isto: há alguns anos a comunidade macaense encontrava muita identificação com aquilo que é português. Com a normal evolução populacional, as características portuguesas têm vindo a esbater-se, há uma tendência para a aproximação à cultura chinesa, mas isso é apenas normal. As associações locais deveriam ter um papel mais importante? Faltam apoios financeiros e a existência de uma maior estrutura em termos de associativismo? Era positivo se houvesse isso. Sei que são feitas algumas iniciativas por parte da Associação dos Macaenses e outras instituições. Mas deveria haver uma filosofia de conjunto mais firmada, sem tantas acções esporádicas. Esse tipo de acções poderiam ser feitas com apoios vindos de Portugal. Esse papel poderia ser desempenhado pelo Instituto Camões, por exemplo, ou pela Fundação Calouste Gulbenkian. Há um problema de liderança das associações locais, não há novos rostos e parece não haver gente interessada em dirigir estas entidades. Este também pode ser um entrave a esse trabalho de preservação? Como explica esta falta de interesse, numa altura em que a comunidade portuguesa até regista um crescimento? Isso é a volúpia da urbe e também falo disso no meu livro. Embora haja muita vontade, esse papel das gerações mais antigas é fundamental para a renovação. Contudo, e por muitas acções que sejam feitas, se não há uma vontade manifesta por parte das gerações mais novas, torna-se difícil impor. Tem de existir uma política de atracção e não de imposição. Só que voltamos ao que já disse: se não há um manifesto de interesse, se não há algo atractivo para as gerações mais novas, para encontrarem essa identificação com a cultura portuguesa… Li há uns dias que em 2016 se comemorou o centenário de Benjamim Videira Pires. Foi uma figura muito importante para a cultura do território. Ao nível de instituições locais, pelo que li, a data passou quase despercebida. Isso é um exemplo do que se passa. Verifica-se também um quase desaparecimento da comunidade macaense da vida política, dos órgãos de decisão. Seria importante também para garantir esta preservação da cultura? Esse é um problema de base. A identificação com a comunidade portuguesa já não é tão grande. Logo, aquela permanência da identidade macaense está quase em perigo de se desvanecer, infelizmente. A maioria das pessoas tem dificuldade em ver que os ganhos serão muito maiores se defendermos algo com características muito especiais de Macau, e esses ganhos seriam maiores para ganhar mais protagonismo, para se garantir que se conseguiriam depois cargos de maior decisão. O facto de termos consciência de que temos uma cultura enriquecida permite-nos ter uma mais-valia para alguém que tem só uma perspectiva. E Macau, como cidade intercultural, e mais cosmopolita, teria só a ganhar com isso. No seu livro diz que o problema da falta de preservação da língua e cultura reside no facto de as “entidades governativas optarem por um encaminhamento duplo das políticas actuais”. Em que sentido? Há um discurso oficial, mas depois não se faz o suficiente em relação ao que é dito, mas isso existe em qualquer parte do mundo. Infelizmente, Macau e a economia estão extremamente dependentes do jogo, e as autoridades teriam muito a ganhar se Macau fosse não só reconhecido pelos casinos. O facto de ser conhecido como um destino cultural, de turismo, e ser reconhecido por outras valências, seria muito positivo. Vemos o quão volátil isto pode ser, e isso percebe-se com a queda recente das receitas do jogo. Fala-se muito no aproveitamento do território para espaço de congressos e exposições, que também seria outro ponto essencial a desenvolver. Esta dependência dos casinos vai levar a uma cada vez maior descaracterização da cidade, devido à ocupação de espaços pela indústria. Faz uma referência à construção da Biblioteca Central no edifício do antigo tribunal. Deixa no ar a ideia de que esse projecto poderá levar ao desaparecimento de mais um símbolo português. Quando se deixou Macau, houve muitas questões que ficaram por resolver. Existem muitas questões na história de Macau que não foram bem explicadas. Isso porque sempre houve a perspectiva histórica portuguesa e a chinesa. Não há uma única história de Macau. Sim, e era importante fazer esse exercício, o de criar uma história de Macau que fosse feita por chineses e portugueses. Eventualmente iria permitir desvendar alguns mitos dessas questões que ficaram por esclarecer. Em relação ao edifício do antigo tribunal, é sempre um símbolo da presença portuguesa. Ao nível simbólico poderão existir algumas questões. Mas vamos aguardar com serenidade que o projecto avance. A que se deve a existência dessas questões pouco esclarecidas? A interesses, desconhecimento do que viria após 1999? Macau teve ao longo da sua história várias incidências que estão sempre envoltas em alguma falta de conhecimento. A maioria da população, incluindo as gerações mais novas, ou desconhece por completo ou não gosta de falar. Falo em particular do movimento “1,2,3”, muito importante para a história de Macau. Embora tenha havido um encontro de interesses entre aquilo que era a vontade chinesa e a portuguesa, também é importante lembrar que foi isso que nos permitiu ficar cá mais 40 anos. E a maioria das pessoas esquece-se disso ou não sabe. Sobre esse episódio são muito escassas as referências ao nível histórico. Mas a história foi mais sábia do que os políticos, e todos sabemos que Macau e a China tiveram a ganhar com a permanência dos portugueses durante mais este período, que permitiu uma transferência de poder pacífica. A maioria das pessoas tem uma grande dificuldade em ver a história e a sua continuidade, e da cultura, sem ter associada uma perspectiva política muito forte. Isso é o grande pecado da maioria das interpretações que são feitas. E a política varia muito, consoante os partidos que estão no poder. Isso acaba por prejudicar o que deveria ser contínuo, e o que vemos muitas vezes é que temos entendimentos da história que, depois, analisados à distância, temos a perfeita noção de que não correspondem à realidade, mas é isso que permanece e que é dado como verdade. Em Portugal, infelizmente, o que passa é que Macau foi um bom exemplo, em contraste com os manifestos erros que foram cometidos nas ex-colónias portuguesas. Mas a minha perspectiva não é essa: foram cometidos muitos erros durante a última Administração portuguesa e muito mais poderia ter sido feito. Ainda mais sabendo que Macau sempre foi uma terra com muitos recursos financeiros. Macau teria a ganhar se tivesse tido uma Administração mais afastada das forças partidárias portuguesas? Sim. Se houvesse um objectivo único, e uma definição clara e a longo prazo, mas esse continua a ser o problema de base muitas vezes. Já são raros os políticos com essa visão, há sempre visões a curto e médio prazo, e com interesses incluídos. Isso prejudica as coisas e a continuidade. Se isso existisse, independentemente de estar o partido A ou B no poder, tudo seria mantido. O livro aborda também a questão da Escola Portuguesa de Macau (EPM), que vai ficar onde está. A EPM tem feito o seu trabalho na dinamização da língua e cultura, incluindo a sua transformação numa escola internacional? A EPM tem um estatuto especial mas, por muito que a escola precise de sobreviver e captar mais alunos, essa necessidade de internacionalização poderá subjugar o outro papel mais importante que a EPM pode ter. Li que o número de alunos estrangeiros cresce cada vez mais, e agora ensinam o mandarim. E há a ideia de ensinarem o cantonês. Isso é fundamental, e essa foi uma questão que durante a Administração portuguesa não foi devidamente acautelada. Ter-se-ia ganho mais se houvesse uma política mais realista ao nível de educação em Macau antes da entrega do território, tanto na língua chinesa como na portuguesa. Há uma referência no livro ao monumento Portas do Entendimento, que está ao abandono. É uma metáfora da representação da cultura portuguesa, que gradualmente vai desaparecendo? É uma metáfora e um símbolo muito interessante relativamente à política de abandono que já referi. Seria mais importante, naquela altura, criar instrumentos e fazer com que as coisas acontecessem, num projecto a longo prazo, promovendo instituições e convidando instituições portuguesas a virem cá, para fazerem esse trabalho de continuidade, em vez de se deixar apenas uma matéria simbólica, porque estas valem o que valem. Embora seja importante o monumento em si, em termos simbólicos e estéticos nada me diz. Foi mais uma forma de abandonar as responsabilidades. A última Administração do território teve muito essa perspectiva. O intuito sempre foi fechar o ciclo e não promover uma continuidade.[/vc_column_text][vc_message message_box_style=”solid” style=”square” message_box_color=”chino” icon_fontawesome=”fa fa-book”] “Macau, as Últimas Memórias de Portugal” é apresentado hoje às 18h30 no auditório do Consulado Geral de Portugal em Macau. O autor, Mário Mesquita Borges, está presente na iniciativa. A obra, que vai ser apresentada por Luís Sá Cunha, é editada pela COD. [/vc_message][/vc_column][/vc_row]
Carlos Morais José A outra face VozesO nascimento do Ou Mun ian [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om o esboroamento do mundo antigo, alterou-se substancialmente o conceito de identidade, seja nas relações estabelecidas no corpus social, seja no interior daquilo a que ainda chamamos indivíduo. Se no passado as identidades estavam fortemente referenciadas e de algum modo amarradas a um núcleo duro, constituído por geografias limitadas, famílias, fratrias, religião e países, não padecendo por isso de grande possibilidade de oscilação, o mundo contemporâneo criou para a identidade um outro recorte do real. Ela é hoje uma função instável, com pouca substância, na medida em que constantemente se refaz na conjugação espaço-tempo, em cada lugar e a cada momento de tensão e de confronto. Não deixa por isso de ser um dos mais importantes conceitos, uma das mais eficazes ferramentas, na compreensão das motivações profundas de um grupo humano. Convém, no entanto, assimilar que não podemos hoje falar de identidade no mesmo quadro mental do passado. Estamos agora perante um conceito que de modo nenhum se refere a algo de fechado, ilhéu, defensivamente encerrado em concha autista. Pelo contrário, as identidades deverão ser concebidas como abertas, existentes porque comunicantes, em constante estado de desagregação e de reagregação, em interminável confronto com outras identidades, variáveis, mutantes, guerreiras; afinal ao ritmo da cultura no século XXI. É também a esta luz que teremos de ler a identidade de Macau, até porque a sua sobrevivência enquanto tal prende-se fundamentalmente com a existência ou não de uma identidade – como temem os negativistas que apregoam a zhuhaificação. Advirto que não pretendo utilizar uma perspectiva académica, não situando por isso este texto no domínio da sociologia, da antropologia ou de qualquer outra ciência dita social ou humana. Para isso, precisaria de outros dados, de outro espaço, francamente de uma investigação que não se baseasse unicamente na observação quotidiana do que me rodeia – como aqui acontece, mas também no rigor dos números, em citações elefantinas e nas evidências das estatísticas. E contudo… Identidade. Questão chave para Macau na medida em que estamos num espaço cercado, espécie de ilha cujos habitantes terão razões histórico-culturais para assumir uma identidade diversa do que os rodeia, dispositivo produtor de sentidos únicos e entrançados genealógicos. Questão uma e outra vez sublimada talvez exactamente por mexer em terrenos nem sempre pacíficos, admissíveis, raras vezes salubres. Repare-se que Macau é designado em mapas franceses e outros como a presque-île, o que não deixa de ser curioso. Identidade. O tema recalcado, cujo debate foi sempre atirado para essas calendas que, admitamos, a acontecerem é só porque estamos na China onde o tempo tem uma dimensão mais que bíblica. E é pena. Limito-me, portanto, a constatar empiricamente uma mudança que considero interesante. Passo a descrever o contexto. Quando aqui cheguei, no princípio dos anos 90, toda a pessoa de etnia chinesa nascida em Macau, quando interrogada sobre a sua origem, respondia ser “Tchong-ko ian” (uma pessoa da China). Quanto aos macaenses, chamavam-se “Tou-seng” (filhos da terra), entre outros nomes, de uso interno, que especificavam o grau rácico ou social. Já os portugueses da República, vulgo reinóis, eram conhecidos em cantonense por epítetos de vários géneros, que por pudor me escuso reproduzir. Certo é que a palavra Macau não aparecia, na língua chinesa (Ou Mun), para formar uma palavra que designasse as gentes de Macau. Ou seja, pessoas de Macau, claramente “Ou Mun ian”, não existiam. Desde logo considerei este dado algo de muito singular e até parte da estranha identidade deste espaço. Então a larga maioria dos habitantes de uma cidade, de um quase Estado, não se reconhecem enquanto tal? Não se designam a si próprias enquanto tal? Que razões profundas criam uma situação dete tipo? Trata-se de um fenómeno efémero, passageiro, ou algo de verdadeiramente enraizado na matriz cultural desta gente? Invoquei as migrações recentes, mas isso não me satisfazia porque chineses que estavam em Macau há várias gerações tinham o “Tchong-ko ian” na ponta da língua. Nunca consegui responder de forma organizada a este tipo de perguntas. Por outro lado, a diferença em relação a Hong Kong se não era abissal rondava o profundo. Claro que, na minha opinião, a situação não era favorável à manutenção futura da memória da cidade e um dos trabalhos a fazer seria precisamente estudar o assunto e mesmo intervir no sentido de fortalecer uma identidade que parecia extremamente pulverizada e repartida. Lembro-me de, por exercício lúdico, tentar encontrar um evento histórico que conseguisse unir todas as comunidades de Macau e não ter conseguido. O governo de então nunca se preocupou com o tema. Estava estabelecido, numa espécie de consenso silencioso, que uma das partes mais consistentes da identidade de Macau era não se interrogar sobre si própria. Como se, como pinta Goya, a razão engendrasse monstros. Ou talvez o verdadeiro receio fosse que eles saíssem debaixo do tapete. A vida continuou. A RAEM surgiu. Macau passou a ser governado pelas suas gentes. O jogo foi liberalizado e nunca mais pararam de aumentar os seus lucros. A China tornou-se na maior fonte de turistas, sobretudo depois do aparecimento dos vistos individuais. A cidade, o quotidiano, as relações, mudaram. E as pessoas? E o seu interior? A visão que têm de si mesmas? Será que mudaram também? É verdade. Tenho de confessar a minha inicial surpresa quando comecei cada vez mais a ouvir chineses de Macau a definirem-se como “Ou Mun ian”. E o mesmo se passa com jovens macaenses, cuja tendência parece ser abandonarem o “Tou seng”. Ou seja, a usarem a cidade de Macau, a RAEM, como referência identitária. Agora já não dizem com a mesma inevitável regularidade que são “Tchong-Ko ian”, mas sim pessoas de Macau. Que razões estarão por detrás desta mudança, que tem sido gradual embora inesperadamente acelerada? O que estará a levar as gentes de Macau a reconhecerem-se enquanto tal, quando dantes remetiam a sua identidade para a Grande China? As respostas não podem ser simples. Deixo apenas algumas pistas. Em primeiro lugar, poderemos considerar a influência da propaganda governamental, assente no princípio “um país, dois sistemas” e no seu derivado “Macau governado pelas suas gentes”. Ora a verdade é que, sobretudo o segundo slogan, pode ter tido algum efeito, na medida em que atribui às pessoas de Macau um papel na condução da suas vidas, permitindo portanto uma identificação entre ser de Macau e específicos direitos sobre a sua própria existência. Não é realmente importante que as pessoas de Macau efectivamente tenham uma participação cívica mas a existência dessa possibilidade, que dantes não era sentida pela esmagadora maioria das pessoas de etnia chinesa, pode causar efeitos identitários. O aumento da consciência cívica que o advento da transferência de soberania inevitavelmente trouxe a grande parte da população poderá desempenhar um papel (reconheço que menor) na mudança do dispositivo identitário. Em segundo lugar, poderemos considerar o aumento exponencial de turistas do continente chinês e a constatação prática das, por vezes gigantescas, diferenças culturais que os separam da gente local, apesar de pertencerem ao mesmo país. Perante a quase imposição dos valores pan-chineses em Macau, do reforço paternalista e desnecessário do patriotismo e a própria invasão de sucessivas moles humanas, com quem os locais não se identificam nem tomam como modelo, é natural que se dê uma reacção local de reforço identitário. De notar que as diferenças entre os chineses que nos visitam e os chineses de Macau são realmente profundas, nomeadamente ao nível dos hábitos alimentares, da língua, da religião, do modo de relacionamento em grupo, da maneira como entendem o mundo. É certo também que existe muito em comum. Nalguns casos, tanto como entre um português e um húngaro ou um esloveno, o que não é pouco. Tal facto só advoga a favor da diversidade natural de um país da dimensão da China, não deixando contudo de se manifestar no aparecimento de identidades locais e regionais, factores de enriquecimento cultural e de grande potencialidade futura. Em terceiro lugar, teremos de contar com o factor geracional. Ou seja, não importa tanto estarmos agora perante uma terceira geração de pessoas já nascidas e criadas em Macau, mas sim o facto da RAEM enfrentar o mundo global e não ser já uma sociedade indefinida como a que existia no pré-handover. Pessoas cuja ligação ao continente chinês é valorizada e desvalorizada consoante o contexto. Pessoas que, independentemente do grau de educação, cresceram num espaço em plena mutação e indubitavelmente excitante, pleno de horizontes promissores, cada vez com mais nome internacional. Nasceu, portanto, o Ou Mun ian. Bem vindo seja. Nas suas costas reside não apenas uma cidade, mas toda a História, toda a Cultura, todo o relato de um encontro que, também ele, não cessa de se desfazer e de se refazer, marcando o novo ritmo das múltiplas identidades que, num determinado espaço e momento, constituem a identidade de Macau.
Hoje Macau Política“Os Resistentes – Retratos de Macau” #5 “Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014 Realizador e Editor: António Caetano Faria Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira Som: Bruno Oliveira Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
Hoje Macau Manchete SociedadeMário Soares (1924-2017) | O democrata insaciável [vc_row][vc_column][vc_column_text] Tinha 92 anos e estava internado há já algumas semanas. Mário Soares morreu em Lisboa no passado sábado. Homem polémico, amado por uns, contestado por outros, foi uma figura incontornável do passado-presente português. A ele se deve a consolidação da democracia no país [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a figura central da democracia portuguesa. Começou a vida política ainda estudante, no combate ao Estado Novo, fundou o Partido Socialista (PS) e desempenhou os mais altos cargos políticos na República Portuguesa. Nascido em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924, filho de João Lopes Soares, que foi ministro na I República, e de Elisa Nobre Baptista, Mário Alberto Nobre Lopes Soares teve um percurso político intenso, com influência em alguns dos mais importantes acontecimentos do século XX em Portugal. Preso político e exilado pela ditadura de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, foi um dos fundadores do PS, em 1973, e depois do 25 de Abril de 1974 foi ministro dos Negócios Estrangeiros dos primeiros governos provisórios, primeiro-ministro dos I, II e IX governos constitucionais, entre 1976 e 1978 e entre 1983 e 1985, e Presidente da República por dois mandatos, de 1986 a 1996. Os primeiros passos de Mário Soares na política foram dados aos 19 anos, em plena ditadura e no final da II Grande Guerra Mundial, quando aderiu, na clandestinidade, ao Partido Comunista Português (PCP) em 1943, tendo nessa década feito parte de organizações de resistência ao regime como o MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil e o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista). Antes, ainda adolescente, conheceu por via do seu pai o líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal, então jovem dirigente comunista, que foi regente de estudos do Colégio Moderno e que lhe deu lições particulares (tal como Agostinho da Silva), incentivando-o, depois, a seguir na universidade os estudos de Filosofia. Dois anos depois, em Agosto de 1946, foi pela primeira vez preso pela polícia política do Estado Novo, a PIDE. Cinquenta anos mais tarde, numa entrevista, confessou que a prisão foi a sua “segunda universidade”. Terminada a II Guerra Mundial e no início da Guerra Fria (Estados Unidos/União Soviética), foi secretário da Comissão Central da candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, em 1949, tendo participado desde essa altura em todos os actos eleitorais permitidos pelo regime do Estado Novo. Licenciado em Ciências Históricas-Filosóficas (1951) e em Direito (1957), pela Universidade de Lisboa, Mário Soares desligou-se, entretanto, do PCP, partido do qual seria formalmente expulso em 1950. “Ainda hoje não lhe posso dizer se fui eu que saí ou se foi o partido que me expulsou”, disse na entrevista à jornalista Maria João Avillez, que deu origem ao livro “Soares – Ditadura e Revolução”. Os dias da prisão Em 1953, numa fase em que era acusado de ser “oportunista” pelo PCP, aderiu à Resistência Republicana e Socialista, que pretendia construir uma alternativa de esquerda não comunista. A luta contra a ditadura foi um dos legados que recebeu do pai, que disse ser a “sua grande referência moral”. A actividade política levou a que fosse perseguido pela PIDE e preso 12 vezes num período de três anos. Na prisão, casou-se com Maria de Jesus Barroso, jovem actriz do Teatro Nacional, a 22 de Fevereiro de 1949, com quem teria dois filhos, Isabel e João. Como advogado, defendeu presos políticos e representou a família de Humberto Delgado nas investigações que provaram a responsabilidade da PIDE no assassínio do “general sem medo”. Em 1961, subscreveu o Programa para a Democratização da República, acto que o levaria novamente à prisão por seis meses. Três anos depois, com Francisco Ramos e Costa e Manuel Tito de Morais, fundou a Acção Socialista Portuguesa, organização que levaria mais tarde à formação do PS, e (já com Marcelo Caetano como presidente do Conselho) esteve em 1969 na primeira linha da constituição da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Em 1968, foi por oito meses deportado em São Tomé e Príncipe e, dois anos depois, foi forçado a exilar-se em França, onde deu aulas em Vincennes, em Paris, na Sorbonne, e na Faculdade de Letras da Alta Bretanha. Durante o seu período no exílio, Mário Soares foi o principal dinamizador da fundação do PS, a 19 de Abril de 1973, em Bad Munstereifel, na República Federal Alemã, sendo eleito secretário-geral de imediato, cargo que desempenharia durante 13 anos, até 1986. Quando o PS foi fundado, preparava-se já em Portugal o movimento dos capitães que levaria à queda da ditadura. Logo que soube do golpe de Estado, Mário Soares decidiu regressar imediatamente a Portugal, apanhou o comboio em Paris e chegou a Lisboa dois dias após o 25 de Abril. Na estação de Santa Apolónia, foi recebido em euforia por uma multidão, a quem falou da varanda da estação. De África à Europa No nascimento do novo regime político, com o general António de Spínola a Presidente da República, foi ministro dos Negócios Estrangeiros dos três primeiros governos provisórios e ministro sem pasta do IV, nestes dois últimos já com o general Costa Gomes nas funções de chefe de Estado. Neste período, esteve directamente envolvido no início da descolonização da Guiné, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique – processo que, pela sua controvérsia, marcou a sua carreira política. Depois de o PS ter vencido com cerca de 38 por cento dos votos as primeiras eleições livres da democracia, para a Assembleia Constituinte, em Abril de 1975, Mário Soares entrou em frontal rota de colisão com o bloco comunista e com o então primeiro-ministro Vasco Gonçalves, demitiu-se do IV Governo Provisório e foi o principal protagonista civil do movimento contra a ameaça de “um novo totalitarismo”, desta vez de inspiração soviética. Tendo como aliados internacionais Helmut Schmidt (chanceler da República Federal Alemã), Olof Palme (primeiro-ministro sueco), François Mitterrand (que viria a ser Presidente de França), e próximo do então norte-americano em Lisboa, Frank Carlucci, o líder do PS bateu-se por uma via europeia para Portugal e lutou politicamente contra o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que seria derrotado militarmente com o golpe de 25 de Novembro de 1975, chefiado pelo general Ramalho Eanes. O PS voltou a vencer o segundo acto eleitoral da democracia, as primeiras eleições legislativas, em Abril de 1976, e Mário Soares foi nomeado primeiro-ministro do I Governo Constitucional. Enquanto chefe de Governo, primeiro com um executivo do PS sem maioria no Parlamento, depois em coligação com o CDS, teve de gerir o regresso de milhares de retornados das ex-colónias e uma situação de quase ruptura financeira do país, aplicando um programa negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas foi também neste período, em 1977, que Mário Soares iniciou formalmente o processo de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE). De 1979 a 1983, na oposição, acordou com a Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM) a primeira revisão da Constituição, que consagrou o carácter civilista do regime. Em 1983, Soares foi novamente primeiro-ministro, desta vez em coligação com o PSD liderado por Mota Pinto. O IX Governo Constitucional, conhecido como o Governo do “Bloco Central”, de 1983 a 1985, foi confrontado com a necessidade de um segundo pedido de resgate ao FMI e concluiu o processo de adesão de Portugal à CEE a 12 de julho de 1985. Apesar da recomposição das finanças públicas e de se ter alcançado o objectivo da integração europeia, o PS sofreu a maior derrota da sua história nas eleições legislativas de 1985, com 21 por cento dos votos. Os anos da presidência Mesmo com um ambiente político desfavorável – as sondagens davam-lhe oito por cento das intenções de voto –, Mário Soares decidiu no final de 1985 lançar-se na corrida presidencial. Na primeira volta, atingiu os 25 por cento, batendo os outros candidatos apoiados por eleitorado de esquerda, Maria de Lurdes Pintassilgo e Salgado Zenha, que até 1980 tinha sido o seu “número dois” na direção do PS. Na segunda volta, derrotou o candidato apoiado pelo PSD e CDS, Freitas do Amaral, por 120 mil votos de diferença. Em Belém, exerceu um primeiro mandato em que apostou na proximidade com as pessoas, através da realização de “presidências abertas”, em que se fixava vários dias fora da capital, tal como os antigos monarcas portugueses fizeram até ao final do Antigo Regime. No plano externo, realizou dezenas de viagens por todo o mundo, visando projetar a imagem de Portugal como uma democracia moderna. Neste seu primeiro mandato, PS, PRD (Partido Renovador Democrático) e PCP uniram-se numa moção de censura que derrubou o Governo minoritário liderado por Cavaco Silva, mas Soares recusou a formação de um novo executivo com base naqueles partidos de esquerda e convocou eleições antecipadas em 1987, nas quais o PSD teve a sua primeira de duas maiorias absolutas. Mário Soares foi reeleito sem dificuldade Presidente da República em 1991, com 70,4 por cento dos votos e com o apoio do PSD. No entanto, o seu segundo mandato seria marcado por um clima de crispação com o Governo de Cavaco Silva. Nos meios do PSD, foi apontado como uma das “forças de bloqueio” da governação de Cavaco Silva, enquanto Soares reclamou “o direito à indignação” mesmo perante um Governo de maioria absoluta. Em 1995, depois de dez anos de “jejum” de poder socialista, Mário Soares deu posse a António Guterres como primeiro-ministro e, alguns meses depois, no início de 1996, passou o testemunho da Presidência da República a um outro socialista, Jorge Sampaio. Político até ao fim Fora de Belém, Mário Soares voltou a percorrer o mundo, participando em conferências e palestras. Escreveu artigos em jornais e revistas e nunca se coibiu de comentar a actualidade nacional e internacional. Em 1999, por convite do então secretário-geral do PS, António Guterres, regressou à política activa, aceitando o desafio de liderar a lista dos socialistas para o Parlamento Europeu, acto eleitoral que venceu com cerca de 44 por cento dos votos. “Agora, basta! Não haverá mais política, nem exercício de cargos políticos”, disse a 7 de dezembro de 2004, durante um jantar comemorativo dos seus 80 anos. Mas em 2005, agora por proposta do líder do PS, José Sócrates, Mário Soares decidiu travar mais um combate político e lançou-se numa terceira candidatura à Presidência da República. Porém, Manuel Alegre também resolveu entrar na corrida presidencial de 2006 como independente, disputando-lhe o espaço socialista, e Cavaco Silva venceu o acto eleitoral logo à primeira volta. Soares acabaria em terceiro lugar, inclusivamente atrás de Alegre, com pouco mais de 14 por cento dos votos. Ao longo da última década, Soares posicionou-se claramente na esquerda política, aproximando-se de personalidades do Bloco de Esquerda e do espaço comunista. No plano internacional, Soares apoiou a acção do antigo chefe de Estado brasileiro, Lula da Silva, e fez questão de mostrar a sua amizade com o falecido e controverso presidente venezuelano, Hugo Chavez. Em contraponto, o fundador do PS fez discursos extremamente violentos contra o ex-Presidente norte-americano George W. Bush, contra a chanceler germânica, Angela Merkel, e contra o rumo recente da União Europeia, que considerou subordinada ao neoliberalismo e à “ditadura dos mercados”. Já o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, mereceu-lhe sempre os mais rasgados elogios, considerando-o “o maior estadista e político que existe no mundo”. Barack Obama e o papa Francisco foram as duas últimas figuras mundiais encaradas como referências pelo fundador do PS. Ao contrário do que acontecera com anteriores líderes do PS como Vítor Constâncio, Jorge Sampaio ou António Guterres, Soares teve poucos momentos de choque com a liderança socialista de José Sócrates (2004/2011), a quem frequentemente elogiou a sua coragem e determinação política. Após a queda política de Sócrates, Soares manteve-se equidistante na disputa pela liderança do PS travada entre António José Seguro e Francisco Assis, em Julho de 2011, elogiando ambos, mas no Verão de 2013 incompatibilizou-se com o então secretário-geral do PS, Seguro, quando este se envolveu em negociações (falhadas) com o PSD, sob observação do ex-Presidente da República Cavaco Silva. Nas eleições “primárias” socialistas de Setembro de 2015, Mário Soares esteve ao lado do actual líder, António Costa, contra António José Seguro, tendo depois apoiado o antigo reitor da Universidade de Lisboa Sampaio da Nóvoa nas presidenciais de janeiro de 2016, que Marcelo Rebelo de Sousa venceu logo à primeira volta. Durante o período de resgate financeiro de Portugal, entre 2011 e 2014, Mário Soares colocou-se frontalmente contra o executivo PSD/CDS-PP liderado por Pedro Passos Coelho, tendo promovido conferências na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa que juntaram representantes de todas as forças de esquerda “em defesa da Constituição” e em rejeição contra a linha da “troika” (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional). Em 2012, através de um manifesto, o antigo Presidente da República pediu a demissão do executivo liderado por Passos, alegando que Portugal estava a “arruinar-se” e a “ser destruído”, e defendeu a formação de um Governo de personalidades (ou técnico) sem recurso a eleições antecipadas, tal como tinha acontecido em Itália. No mesmo ano foi promotor de um novo manifesto, desta vez de solidariedade com o povo da Grécia, juntamente com 33 personalidades ligadas à esquerda portuguesa, entre eles o ex-líder da CGTP Carvalho da Silva, de quem se aproximou politicamente, chegando mesmo a sugerir que seria um bom candidato presidencial. Nos últimos anos, a corrente neoliberal tornou-se a inimiga número um do combate político de Mário Soares. Nesta fase, numa das suas aparições públicas, Mário Soares deixou mesmo um aviso em tom dramático sobre os perigos do poder dos mercados financeiros. Após a morte da sua mulher, Maria de Jesus Barroso, em Julho de 2015, começaram a ser raras as aparições públicas de Mário Soares. Em 2016, já com a sua saúde debilitada, Mário Soares foi alvo de várias homenagens institucionais, a primeira quando recebeu em Abril do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, numa cerimónia reservada, o diploma de deputado honorário no âmbito dos 40 anos da posse da Assembleia Constituinte. No mesmo mês, por ocasião das comemorações do 25 de Abril de 1974, o fundador do PS recebeu do presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, também numa cerimónia reservada, a chave da cidade – a mais alta distinção atribuída pelo município a personalidades com relevância nacional e internacional. A 23 de Julho, foi a vez do primeiro-ministro, António Costa, numa cerimónia pública que se realizou nos jardins de São Bento, prestar homenagem ao I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, por ocasião dos 40 anos da posse deste executivo minoritário do PS. Mário Soares esteve presente pela última vez numa sessão pública a 28 de Setembro, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, homenageou a antiga presidente da Cruz Vermelha Portuguesa Maria de Jesus Barroso.[/vc_column_text][vc_text_separator title=”” css=”.vc_custom_1483988720204{margin-bottom: 12px !important;}”][vc_message message_box_style=”solid” style=”square” icon_fontawesome=”fa fa-comments”] REACÇÕES Chui Sai On, O Chefe do Executivo sublinhou o importante papel tido por Mário Soares “no diálogo entre a China e Portugal no que diz respeito a assuntos relacionados com Macau” para frisar que a ausência de Mário Sares será “sentida”. Chui Sai On não deixou de referir, em mensagem enviada à comunicação social, o carácter de liderança de excelência e as “estreitas relações com o território” tidas pelo político português. Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaense e da APIM, fala de um político que deixa “alguma saudade”, pois sempre que vinha ao território “provocava banhos de multidão”. “A imagem que havia em Macau era de uma pessoa que sabia ouvir. Recordo-me que quando chegou a Macau, nas suas visitas, já como Presidente da República, era uma pessoa muito querida, estava muito habituado aos banhos de multidão, que ele próprio provocava”, disse o advogado. O macaense recorda como o político causava “constante preocupação ao pessoal da segurança” porque, ao contrário de “outras personalidades que se afastavam da multidão por razões de segurança”, Soares “fazia questão de quebrar [o aparato de segurança], juntava-se às pessoas, fazia questão disso”. “Vamos sentir muita falta dele”, diz Senna Fernandes, lembrando como a estreia do seu grupo de teatro em patuá, os “Doçi Papiaçám” foi dedicada a Soares, no ano de 1993. Vasco Rocha Vieira, general e último governador de Macau, fala de Mário Soares como tendo sido “um grande político, um grande homem e um grande português”, que viu “o tempo à frente do seu tempo”. “Devemos muito ao doutor Mário Soares: o Portugal da liberdade, da democracia, da abertura ao exterior, de uma nova visão do mundo e da sua capacidade de ser maior do que o seu espaço nacional. Portugal e os portugueses devem-lhe isso e devem recordá-lo como um grande político, um grande homem e um grande português”, afirmou Rocha Vieira. Para Rocha Vieira, Soares foi “um homem que viu o tempo à frente do seu tempo”. “Esteve nas grandes decisões estratégicas de Portugal moderno, na segunda metade do século XX, e, principalmente, depois da implementação da democracia em Portugal. Apontou rumos, apontou estratégias e teve a percepção de que Portugal, na escala nacional, precisava de se expandir para outros mercados, para outros espaços, nomeadamente União Europeia, na altura CEE, e a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)”, vincou o último governador. Além disso, o general sublinhou “a noção muito clara” que Mário Soares tinha de que Portugal, para lá destes espaços, “precisava também de alianças para garantir” a segurança e a defesa do país, razão pela qual o antigo Presidente da República foi “um grande defensor da presença activa de Portugal na Nato”. Anabela Ritchie, última presidente da Assembleia Legislativa antes da transferência de soberania, recorda Mário Soares como um presidente muito interessado “na preservação da identidade” local e preocupado com a prevalência de direitos fundamentais. “Tinha muito em mente a preservação da identidade e singularidade de Macau, a manutenção de Macau depois da transição para a República Popular da China”, recordou Anabela Ritchie à Lusa, apontando que o segundo mandato de Soares como Presidente, até 1996, coincidiu com um “período muito importante” para o território, quando se negociava a “entrega” de Macau. Apesar da distância, Ritchie garante que Soares “sempre se interessou, sempre quis ouvir” e mostrava “grande solidariedade e carinho” por Macau. “Interessava-se mesmo e usava amiúde a expressão ‘Macau é um desígnio nacional’, no sentido em que é um projecto que deve envolver toda a gente. Creio que sensibilizava as pessoas para as tarefas que estavam a ser realizadas em Macau no período de transição”, lembra. Tiago Pereira, secretário coordenador da secção do Partido Socialista (PS) em Macau, recorda ainda a forma como Mário Soares lidou com o processo de transferência do território. “Macau esteve sempre presente nas sua preocupações, e ele de facto estava preocupado, no sentido em que queria entregar a administração de Macau da melhor forma possível à China. Consegue dotar Macau de infra-estruturas próprias importantes. A secção do PS em Macau obviamente admira muito o doutor Mário Soares, mas não só: a comunidade portuguesa em geral também o sente e é uma pessoa respeitada localmente pela comunidade chinesa também”, rematou. [/vc_message][/vc_column][/vc_row]
Hoje Macau Manchete SociedadeMário Soares (1924-2017) | A legalização de 50 mil pessoas em Macau [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m aparente acto espontâneo de Mário Soares, dado às fugas ao protocolo, durante uma visita a Macau, teve um resultado inesperado: ao consolar uma criança, deu um empurrão à legalização de 50 mil pessoas. O jornalista João Guedes, já então repórter da TDM (Teledifusão de Macau), recorda-se de quando, em 1989, Soares visitou Macau e foi abordado por um grupo de trabalhadores ilegais chineses, que pediam a regularização da sua situação – um problema que se arrastava há anos “mas ninguém tinha coragem” de resolver. O Jornal Tribuna de Macau descreveu como Mário Soares foi confrontado com uma “pequena manifestação” que incluía “quatro crianças empunhando um cartaz com inscrições chinesas” que pediam “a intervenção do Presidente para a obtenção dos documentos de identificação de Macau para as suas mães”. As crianças “abriram um pano onde se lia a frase ‘Por favor dá o bilhete de identidade à minha mãe’”, escreve o jornal, explicando que as mães estavam ilegalmente em Macau, casadas com maridos em situação legal e com filhos já nascidos no território, “devidamente documentados”. “Ao notar a presença de cidadãos de etnia chinesa que insistentemente o pretendiam interpelar junto ao Palácio da Praia Grande, Mário Soares cruzou a avenida para apurar o que se estava a passar. Quando (…) se aproximou do local, um cidadão de etnia chinesa (…) prostrou-se no chão aos pés de Soares pedindo a sua intervenção para resolver a situação da sua mulher”, escrevia o Tribuna na edição de 3 de Março de 1989. Soares, “visivelmente chocado com a situação e com o choro das crianças, (…) prometeu resolver a situação”. Tendo em conta que a mulher corria risco de ser repatriada para a China, o Presidente declarou que “as crianças não podem ser separadas da mãe”. “Vamos tratar disso”, afirmou. A “Operação Dragão” Segundo João Guedes, este episódio desencadeou uma operação de legalização, cerca de um ano mais tarde, preparada “entre os maiores segredos”, tentando evitar que multidões acorressem a Macau para conseguir um documento de identificação. Esta é uma ligação comum na memória de quem vivia na cidade na altura. “O governador [Carlos Melancia] ficou à rasca, toda a gente ficou à rasca e é quando o governador não tem alternativa se não virar-se para o comandante das forças de segurança e dizer ‘Legalize-me toda a gente que está em Macau’. E pronto, legaliza 50 mil pessoas”, conta à Lusa. O jornalista refere-se à “Operação Dragão”, em Março de 1990, que começou com um anúncio das autoridades de que seriam legalizados os pais indocumentados de cerca de 4200 crianças. A notícia gerou tal afluência que acabou por resultar na legalização de “um número mais avultado do que se imaginaria”, escreve o Tribuna. Durante anos, recorda João Guedes, surgiam rumores, periodicamente, de que Macau ia legalizar a população em situação irregular, cerca de 15 por cento à época. “Eram nuvens de chineses a tentar chegar a Macau das formas mais imaginosas. Havia rumores, o pessoal vinha por vários meios, a nado ou em sampanas, havia até passadores chamados ‘cabeças de cobra’”, explica. Apesar de os rumores nunca se concretizarem, os ilegais – empregadas domésticas, trabalhadores da construção – iam-se acumulando. “Era uma questão que se pressentia como necessária, mas ninguém tinha coragem para pôr isso em andamento. Até essa coisa do Soares”, explica o jornalista, lembrando que já decorriam preparativos para a transferência de administração de Macau de Portugal para a China e era necessário saber exactamente quantas pessoas havia na cidade. Surge, então, este anúncio, indicando os locais onde as pessoas se deviam reunir para iniciar os procedimentos. “Um dos pontos era o Canídromo”, onde se deu “uma grande bronca”, devido à concentração de uma “multidão enormíssima” junto aos portões da pista de corridas de cães, recorda Guedes. O jornalista encontrava-se no alto do forte de Mong-Ha com um operador de câmara. “Tinha uma vista perfeita para o Canídromo e assisti àquilo, estivemos a transmitir em directo”, conta. O gesto humanitário O Tribuna de Macau descreve como “milhares de imigrantes” vieram “a salto para Macau”, atraídos por “boatos” de “uma possível amnistia que lhes possibilitasse manterem-se no território”. “A multidão não arredou pé, exigindo que o Governo lhes desse garantias quanto à legalização. (…) Ao princípio da noite o caso encontrava-se num beco sem saída, com alguns manifestantes a avançarem com a ideia de greve de fome”, descreve o jornal. O Governo chegou a anunciar a suspensão das legalizações e mandou ‘limpar’ a cidade, mas voltaram a criar-se grupos: “Cerca das duas horas da manhã a situação foi-se deteriorando com a chegada de mais centenas e centenas de ilegais (…) A situação manteve-se tensa durante largas horas, com a multidão aos gritos a exigir ser também registada, uma multidão que ia engrossando à medida que o tempo passava”. Com dificuldade em controlar a multidão, as autoridades “decidiram fazer a listagem” dos ilegais, sendo conduzidos para o Campo da Polícia, nas Portas do Cerco, e o Estádio do Canídromo. Neste último “estabeleceu-se o pânico”, com disparos para o ar pela polícia e pessoas “no chão espezinhadas”, “chegando a haver rumores, não confirmados, que uma criança teria sido morta”. Nesta operação foram registados mais de 50 mil ilegais, escreveu a Lusa na altura. Miguel Senna Fernandes diz “não ter dúvidas” de que esta operação foi uma consequência da reacção de Soares aos manifestantes em 1989. “Naturalmente é um gesto humanitário de Mário Soares para uma política consentânea à realidade de Macau e das suas gentes. Seja como for, a visita de Soares em 1989 teve um efeito praticamente directo quanto à Operação Dragão, não aconteceu antes porque, enfim, tinha de se ver a logística e oportunidade”, disse à Lusa.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeMário Soares (1924-2017) | Faxes, mentiras e vícios Nem tudo correu bem ao estadista convicto que faleceu este sábado. Sobretudo em Macau. Apesar dos banhos de multidão que recebeu, Mário Soares teve de enfrentar alguns episódios que lhe podiam ter manchado a carreira. Mas não mancharam [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro dá-se com a Emaudio, empresa ligada ao então Presidente da República e financiada com dinheiros que sobraram da campanha eleitoral. Carlos Melancia, ex-governador de Macau, era sócio. A Emaudio queria uma posição na Teledifusão de Macau (TDM) para chegar mais facilmente ao mercado de Hong Kong. Maria de Belém Roseira era então vogal da TDM e denunciou supostas irregularidades cometidas pelo presidente e vogal da TDM, já que estaria a ser preparado um processo de transformação da empresa pública numa sociedade anónima, por forma a facilitar a entrada da Emaudio. Nuno Delerue, à data secretário com a tutela da comunicação social, exonerou o presidente da TDM, mas acabou exonerado por Mário Soares. Soares escreveria a Pinto Machado, então governador, a exigir um “conhecimento prévio” por parte da Presidência da República de todas as questões que se passassem em Macau ao nível da comunicação social. Tal acto levou Pinto Machado a demitir-se. Num artigo publicado na revista local Face, António Duarte, ex-assessor de Melancia, explica que havia, já em 1987, a ideia de semi-privatizar a TDM. “Quando o Expresso publicou que Melancia tinha sido sócio da Emaudio e pretenderia que a empresa de Rui Mateus, associada a Robert Maxwell, conquistasse o negócio da TDM, o governador ficou surpreendido. E os seus colaboradores mais próximos também. Ninguém sabia que Carlos Melancia tinha sido sócio da Emaudio. (…) Mas o pequeno escândalo estava lançado. Melancia desencadeou, então, uma ofensiva (nem sempre bem percebida) para explicar porque razão tinha suspenso um concurso de pré-qualificação de candidatos à TDM e iniciado contactos com a Emaudio-Maxwell. ‘É com a Emaudio – dizia-me Melancia – porque ela traz agarrado a Maxwell, que é quem me interessa para a TDM’”, escreveu António Duarte. O caso viria a ser arquivado em tribunal em 1992. O fax alemão O semanário O Independente, que abordou o caso Emaudio, recordado no livro “O Independente – a máquina de triturar políticos”, também lançou mais uma bomba para a carreira de Soares: a história do fax, ligado à construção do Aeroporto Internacional de Macau. A Weidleplan, consultora alemã, queria participar no projecto e terá feito um donativo político de 50 mil contos à Emaudio. O problema foi o facto da Weidleplan não ter sido a escolhida. Como o dinheiro não foi devolvido, a empresa decidiu enviar o fax, visando Carlos Melancia, a pedir a devolução do dinheiro. O documento acabaria por ir parar às páginas d’O Independente. O caso dá-se em plena campanha eleitoral para as presidenciais, e segundo Carlos Morais José e António Duarte, havia a tentativa de manchar a campanha de Mário Soares com os ecos de Macau. “Aquando da telenovela do caso TDM, que, por ironia, viria a ser arquivado em tribunal, em finais de 1992, o jornalista do Expresso, Joaquim Vieira, contou-me, em Lisboa, que tinha a sua caixa de correio inundada de documentos e fotocópias que saíam do palácio e da própria TDM. E já havia quem enviasse faxes”, relatou o ex-assessor de Melancia. Carlos Morais José, director do Hoje Macau, à época correspondente em Macau d’O Independente, acompanhou o caso de perto e recordou-o na revista Face. “A verdade é que estávamos em ano de eleições presidenciais. (…) tornava-se óbvio que o ataque a Melancia tinha como alvo Soares.” E dá exemplos. “Tudo ficou ainda mais claro, numa daquelas ingenuidades jornalísticas que contam com a ingenuidade do leitor. Capa: “Caça ao tesouro”. Assunto: a obra de arte no cofre de Melancia, que os investigadores do Ministério Público tinham encontrado, eventualmente, o facto de ter sido assim feito um hipotético pagamento. Disparate: na mesma página, o resultado de uma sondagem que dava a Mário Soares uma margem mais que favorável nas eleições presidenciais. Era tudo tão claro como a água”, escreveu. O Ministério Público nunca chegou à Presidência da República, e Soares até conseguiu ser reeleito. Melancia acabaria por ser absolvido em tribunal, em 1993, das suspeitas de corrupção passiva. Mas um olhar para as primeiras páginas d’O Independente na altura permite ver uma óbvia associação de Mário Soares a todos estes processos. Ele saberia de tudo e quase todos os intervenientes seriam próximos do Presidente. Contudo, a justiça nada conseguiu provar. A ligação mais recente de Soares com Macau diz respeito a Ng Lap Seng. A revista Visão publicou, há mais de um ano, um artigo a ligar o milionário chinês, actualmente em prisão domiciliária nos EUA por suspeitas de corrupção, à Fundação Mário Soares. Todos, incluindo Carlos Monjardino, ligado à Fundação, afirmam não conhecer Ng Lap Seng, mas o seu nome está lá. E a biografia de Joaquim Vieira sobre Soares afirma que todos os que deram donativos fazem parte da fundação. Um mistério ao qual Soares nunca respondeu.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasMacau 26/12/2016 [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m vício (já o Henry Miller tem um livro intitulado Leituras na Retrete): nunca me enfio na casa-de-banho sem me munir de um livro sacado ao acaso da estante que, no corredor, lhe fica em frente. Calhou-me Macau, um livro de poesia do brasileiro Paulo Henriques Britto, que, com este livro, ganhou o antigo prémio Telecom, hoje denominado Oceanos. Usa-se a palavra “Macau” num único poema, que pertence à série Sete sonetos simétricos, onde se lê: «(…) esse minúsculo/império sem território, Macau/sempre à mercê do latejar de um músculo (…)». Para além da ironia, do leve tom cómico-marítimo que atravessa o livro, não há nenhuma outra referência ou justificação para o título do livro. Contudo, diz-se num poema anterior a este, em Bagatela para a mão esquerda: «À mão esquerda é vedado/ o recurso falso e fácil/ de dispensar a partitura/ a fraqueza (dita força)/ do hábito. (…) (No entanto ela escreve coisas/da mais esconsa eloquência:/atropelar o sentido/ ao contrapêlo da pauta/ é a sua ciência.)». Talvez então Macau represente esse exercício de «pensar contra si próprio» que tem um símil no obrigar-se a escrever à canhota, como exercício de disciplina espiritual, e que simbolizaria muito do não-dito da gesta portuguesa: um louco exercício de descobrir um fundamento fora de si mesmo, ainda que seja nos antípodas. E talvez o quarto de Dez Sonetóides Mancos forneça a chave do livro: «Também já estive aí, no não-lugar/onde você agora não se encontra./Também não me encontrei.//Aliás foi justamente contra/a tal necessidade de seguir alguma/rota que jurei lutar. Lutei, perdi,/ e pronto: agora estou aqui,/ a alguns centímetros do meu próprio umbigo.// Se tudo correr bem, também a tua derrota/ vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.» Este poema é de uma fascinante ambivalência. Por um lado, ao nível mais geral do âmbito do livro, pode ler-se como uma desconstrução sacana de algo que inclusive não nomeia: a Saudade, esse sentimento que os portugueses inventaram para se ejectarem fora-do-lugar onde se encontram, num intangível e oblíquo esplendor ideal, descobrindo-se embora a alguns centímetros do seu próprio umbigo, pois, afinal, quem a si mesmo escapa? Por outro lê-se como auto-derrisão, no sentido de os homens (e o poeta idem) estarem condenados ao auto-engano (a procura da tal rota ou sentido para a vida) e a buscar nos não-lugares as suas miras. Neste sentido, Macau significará o mesmo que Madagáscar, no meu imaginário, quando escrevi: «Os meus binóculos varrem as águas na direcção de Madagáscar. Enclavinhada na linha do meu olhar desponta a ilha. Enorme, o recorte da sua costa reflecte invertida a costa de Mozambique – é mar que nasceu de cesariana! Não se vê, a ilha, mas já lá pus os pés e é um bom lugar para morrer, mais belo e intenso que o lado de cá. Escolhi voltar, mas a semente do que daqui não vejo frutificou: eis-me prenhe do que em mim doravante se chama Madagáscar, um cenário onde ainda respiram piratas e lemingues, ideal para uma topografia do sonho. Vim para África recuperar o primeiro olhar, desapropriar o nome. Terei alguma vez a coragem de o mudar? Identifico-me totalmente com essa figura mítica de São Sebastião de Maranhão que se perdeu nas selva amazónicas, com o seu cortejo de elefantes, serpentes de prata, carroças cheias de tesouros, flores e palmas por toda a parte, pajens, alabardeiros e formosíssimas escravas – só não me identifico mais porque, azar de rosto humano, o processo histórico me negou as escravas.» Macau: um livro absolutamente a redescobrir. 28/12/2016 Quatro da manhã. Toca o telefone. Nem tenho tempo de atender, vai abaixo. O número não pertence a nenhuma das operadoras telefónicas oficiais em Moçambique. É um 87, dizem ser uma linha que só usa a polícia. Não faço ideia. Ao fim de cinco tentativas, na calada da noite, resolvo atender. É a voz de uma mulher, que me fala em changana, ou ronga, sei lá. Digo-lhe logo que é engano, e corto a chamada. Ela insiste, à quarta vez atendo de novo, explico que não falo a língua dela – ela não parece importar-se. Calo-me e durante cinco minutos ouço o tom lamentoso de alguém que está na agonia de algo, a respiração sai-lhe sôfrega – pede-me ajuda? Fala português, pergunto. Inglês? A toada continua, numa língua que desconheço, parece-me aflita, isso é certo, mas tudo nos separa – e de repente é noite, diria o Ungaretti. Uma vez, nos idos de 80, fiz uma interrupção no jornalismo e trabalhei na RTP. Numa série de humor miserável. Era «script girl» – anotador. Na edição da série (a montagem, como então se chamava), via-me metido nas catacumbas do Lumiar, onde ao longo de um corredor penumbroso se sucediam os gabinetes para a montagem. E o meu trabalho, em oito horas penosas, consistia em consultar o meu dossier de 20 em 20 m para responder à pergunta monocórdica do realizador: António, o take 431 é o take 431? Eu consultava os meus apontamentos para responder, Confere. Ao fim de uma hora via-me verde de agonia, três horas depois a cabeça latejava. O meu único entretém era o corrupio no telefone público, encastrado na parede do corredor em frente ao meu gabinete, e permanentemente ocupado por uma miúda de estalo, que era script-girl como eu. Naquele dia as coisas não lhe estavam a correr bem. Estava sôfrega e ansiosa, devido a uma decepção. E às tantas ouço-a gritar, Tu não me podes fazer isso! E sai do telefone numa corrida, deixando o auscultador pendido. Tive de me levantar para ir pousá-lo no bocal e antes, a curiosidade mata, levei-o ao ouvido, no intuito de ouvir a voz do animal que magoava uma lasca daquelas. E ouço do outro lado, “Ao segundo sinal serão 12 horas, 42 minutos e treze segundos…” Era o Serviço do Tempo. Ela já não estava muito boa da cabeça, e aquela era a sua evasão. No dia seguinte demiti-me.
Angela Ka PolíticaMacau e Hong Kong | Stanley Au sugere soluções para divergências sociais O antigo deputado à Assembleia Legislativa falou ao jornal Ou Mun da necessidade de mudanças ao nível social e político. O homem forte do Delta Ásia defende a importação de trabalhadores [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]tanley Au, presidente do Banco Delta Ásia e antigo deputado nomeado por Edmund Ho, fez algumas sugestões para Macau no contexto do 27.o documento de ano novo publicado no jornal Ou Mun. O também presidente da Associação de Pequenas e Médias Empresas de Macau sublinhou a necessidade de mudanças sociais e políticas, sobretudo ao nível da reforma da administração pública, leis eleitorais e responsabilização ao nível dos altos cargos do Governo. Na secção do jornal de língua chinesa, intitulada “As minhas palavras íntimas sendo parte da geração mais velha”, Stanley Au mencionou “a epidemia de populismo” que tem surgido em todo o mundo, tendo falado do caso de C.Y. Leung, o Chefe do Executivo de Hong Kong, cujas pressões terão afastado uma nova candidatura às eleições deste ano. “Neste panorama político, com o acréscimo das disputas políticas agudas em Hong Kong e com a polarização de ricos e pobres em Macau, surgiram em ambas as sociedades diferentes níveis de divergências”, escreveu. Por forma a limitar essas divergências e promover uma sociedade harmoniosa, Stanley Au sugeriu uma drástica reforma no actual modelo de administração pública, com base nas tendências políticas e económicas do mundo, bem como nas acções políticas nacionais e opiniões públicas. O empresário defendeu ainda que o Governo deve “ficar de pé no planalto moral e tornar-se um exemplo para os outros, ensinando os jovens a amar o seu país e as suas regiões administrativas especiais”. Para Stanley Au, os detentores dos principais cargos políticos em Hong Kong e em Macau devem assumir em pleno as suas responsabilidades, por forma a não desapontarem a população novamente. Em relação às actuais estruturas políticas, o ex-candidato ao mais alto cargo de Macau, em 1999, pede a revisão das leis eleitorais para o Chefe do Executivo e para a Assembleia Legislativa (AL), para que mais pessoas, “com sabedoria e perspicácia”, possam participar na Administração e na discussão dos assuntos políticos. Para Stanley Au, a comissão eleitoral para o Chefe do Executivo deve votar com base nos critérios de alta competência, tendo ainda coragem para assumir responsabilidades. Deve ainda ser capaz de reunir diferentes sectores sociais e ser inclusiva das diferentes vozes da sociedade. Importar é preciso Na área da economia, Stanley Au defendeu que devem existir mais medidas para apoiar as PME e deve ser feita uma abertura do mercado aos trabalhadores não residentes, por forma a diminuir as disputas que têm vindo a ocorrer em Macau e em Hong Kong. Stanley Au acredita que os não residentes podem abrir os seus negócios em Macau, por forma a criar “uma estrutura social mais plena e para que as empresas tenham mão-de-obra suficiente para manterem as operações”. A importação de trabalhadores também pode “aumentar a qualidade dos recursos humanos e do próprio trabalho, criando ganhos mútuos”. O presidente da associação que representa as PME pede uma diversificação da economia com medidas mais concretas e viáveis, tendo frisado que isso irá permitir a sobrevivência das empresas de pequena dimensão. Ao nível da formação, Stanley Au indicou que a sua associação, em conjunto com a Associação do Desenvolvimento Social e da Cultura Delta Ásia, irá criar o “Instituto das PME” para a formação de profissionais nesta área. “Quanto a isso, o Governo deve dar apoio”, rematou.
Hoje Macau SociedadeCEPA | Exportações de Macau para a China caíram A diminuição não é preocupante, mas indica que não há um dinamismo local em torno do acordo de cooperação com a China. Para valores mais elevados talvez seja necessário contar com o que vem de fora [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s exportações de mercadorias com isenção de taxas aduaneiras de Macau para o interior da China atingiram 97,18 milhões de patacas no ano passado, traduzindo uma ligeira diminuição, indicam dados oficiais. No cômputo de 2015, o valor das exportações de mercadorias com isenção de direitos aduaneiros de Macau para a China atingiu 101,4 milhões de patacas. De acordo com dados publicados no portal do CEPA – Acordo de Estreitamento das Relações Económicas e Comerciais entre o Interior da China e Macau –, sob alçada da Direcção dos Serviços de Economia, Dezembro foi o melhor mês, com o registo de 12,3 milhões de patacas, enquanto Agosto o pior, com 4,7 milhões de patacas. No mês passado, aquando de uma visita a Lisboa, o secretário para a Economia e Finanças de Macau, Lionel Leong, e três secretários de Estado do Governo português analisaram a possibilidade de entrada de produtos alimentares portugueses na China precisamente através do CEPA. O governo de Macau manifestou, por essa ocasião, o “desejo” de que “Portugal possa também ponderar a entrada, de modo semelhante ao CEPA, no mercado português, dos produtos da China interior, processados parcialmente em Macau”. O CEPA tem como objectivo “promover a prosperidade e o desenvolvimento comum do Interior da China e da Região Administrativa Especial e reforçar a cooperação mútua económica e comercial”, estabelecendo “um relacionamento semelhante a parceiros de comércio livre, num país com duas regiões aduaneiras autónomas”. Desde a entrada em vigor do acordo, em Janeiro de 2004, têm vindo a ser assinados vários suplementos, com vista ao alargamento das áreas, produtos e serviços. Até Dezembro último, o valor acumulado das exportações de mercadorias com isenção de direitos aduaneiros atingiu 764,44 milhões de patacas. No plano do comércio de serviços, no mesmo período, foram emitidos 612 certificados de prestador de serviços de Macau, quase metade dos quais relativos a serviços de transporte (agenciamento de carga/ logística/ conservação/ armazenamento).
Paul Chan Wai Chi Macau Visto de Hong Kong VozesAssinalar o regresso de Macau à soberania chinesa [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano, em que se celebra o 17º aniversário do regresso de Macau à soberania chinesa, a Associação de Novo Macau não organizou nenhuma manifestação para se manter a par da nova realidade social. Em vez disso, apostou no incentivo à consciência cívica, exortando os jovens residentes que atingiram a idade de 18 anos a recensear-se, já que as próximas eleições para a Assembleia Legislativa estão à porta. Só através do voto podem os macaenses escolher as pessoas certas para deputados e ajudar a diminuir os efeitos negativos da corrupção eleitoral. O Governo da RAEM não cancelou o mega-espectáculo realizado no Estádio de Macau, e a Associação de Novo Macau não se opôs. Os macaenses puderam desfrutar da actuação de artistas famosos de Hong Kong pela módica quantia de 50 patacas. As pessoas pareciam estar felizes, embora a verdadeira felicidade seja ainda uma miragem. Em Macau os preços do sector imobiliário e dos alugueres de casas não desceram, apesar dos ajustes económicos na China. Os macaenses parecem ter-se habituado à inflação e aos transportes públicos sobrelotados. Por seu lado o Governo continua a valorizar a diversidade do desenvolvimento no discurso, mas não nas acções. Com lojas por alugar na Rua de São Paulo e com a desvalorização contínua do Yuan, os macaenses parecem ficar à margem do “tal desenvolvimento”. A forma como as pessoas se sentem inconscientemente felizes não é decididamente bom sinal. Durante a cerimónia do hastear da bandeira e no banquete celebrativo oficial, que assinalaram o Dia do Regresso de Macau à Soberania Chinesa, o hino nacional chinês fez-se ouvir. No hino existe um verso que diz, “quando a Nação chinesa atinge os momentos de maior perigo”. Por enquanto em Macau as pessoas ainda não chegaram aos momentos de maior perigo. Mas se continuarem indiferentes, depois não será tarde demais? Na verdade, o dia de Macau deveria ser assinalado em retrospectiva e reflexão. No último fim de semana fui a Hong Kong devido a alguns compromissos. Um deles era uma conferência académica promovida pela Universidade de Pedagogia de Hong Kong e subordinada ao tema “A Juventude das RAEs de Hong Kong e Macau: Identidade, Educação para a Cidadania e Participação Cívica – Conferência de 2016”. Estiveram presentes muitos académicos de Hong Kong, da China continental, de Macau e Taiwan, nos quais se incluía o Professor Byron Weng, jurista de grande reputação. A conferência versava o sentimento de identificação da juventude de Hong Kong e de Taiwan com a China continental. Concluiu-se que estes jovens se sentem cada vez mais afastados da China, apesar de toda uma série de reformas políticas. Para ultrapassar este problema, deve ter-se em consideração os aspectos culturais da China, mais do que propriamente os aspectos políticos. Os académicos chineses consideraram unanimemente que o conceito de “Um País, Dois Sistemas”, requer modificações de forma a ajustar-se às novas realidades sociais. No entanto, os académicos vindos de Macau insistiram na preservação do conceito original, ou seja, “Hong Kong governado pelos seus habitantes, Macau governado pelos seus habitantes e desfrutando de um elevado grau de autonomia”. Após aturadas discussões, a visão idealista dos macaenses conquistou a aprovação da maioria dos participantes. No domingo compareci no seminário “Pensar a Missão dos Cristãos e a Problemática de uma Sociedade em Ruptura”. O Professor Associado Chan Ka Lok, da Universidade Baptista de Hong Kong, ex-membro do Conselho Legislativo da cidade, foi um dos oradores. O Professor Ka Lok fez uma intervenção sobre “a reconstrução da sociedade civil”, advogando que esta deve partir das comunidades. A visita de dois dias a Hong Kong valeu o esforço, mas deixou-me exausto. Macau necessita de promover a educação cívica e de criar uma sociedade civil sólida. Discursos vazios de sentido são prejudiciais para os países e também para Macau.