A arte de cuspir

[dropcap]P[/dropcap]ermitam-me fazer uma breve apresentação ao título deste segmento: expectoração. Expectorar: expelir pela boca. Mas se esquartejarmos a boca, expelimos pelos dedos. Se uma linguagem colonial desenvolve o discurso, os objetos estreitam, tornam-se mais fugidios. O pós-modernismo, anti-lírico, temido. Em que época estamos, afinal? Qual é o ano com qual nos maquilhamos, ocupamos rostos inéditos, repetimos lutas e repetimo-nos enquanto terreno nu, sedutor na retificação do passado mas infértil porque absurdo. Sentado ao computador com o perfil aberto, um Sísifo a empurrar um pedregulho que lhe reflete a imagem. Uma selfie de Sísifo como ecrã de bloqueio do iPhone. Expectorar é o mesmo que cuspir axiologias.

Um homem trabalha há quarenta e oito horas a pôr cimento em tijolos nos subúrbios de Pequim, dirige-se para a residência comunitária onde tem uma cama num beliche, apanha a linha púrpura que custou mais de mil milhões de yuans por metro. Está sujo, exausto, não toma banho há vários dias, transpira há várias décadas, não dorme porque não existe sono que lhe chegue. Desce com sacos de massa de cimento pelas escadas até ao metro, passa pelos seguranças que já não olham para as pessoas, indiferentes, democráticos na indiferença e em mais nada. O homem encontra-se com outros migrantes da construção civil. Vêm de províncias rurais, remotas, pobres.

Na reluzente, límpida, organizada carruagem do metro com voz de menina-moça kawaii (ke ai), a fazer avisos vários.

Uma jovem de cabelo azul com um rolo na franja afunda a cara no telemóvel. Usa uma app que lhe diz em que partes dos filmes pode ir à casa de banho sem perder nada de especial.

No banco da frente, quatro estudantes do secundário com sapatos da gucci e óculos de armação coreana, ouvem Lil Wayne, não falam coreano nem tão pouco inglês.

Os homens pousam os sacos de massa de cimento como quem pousa o cansaço, como quem assume com um estrondo que nada espera da vida. Indiferentes a modalidades narrativas, o homem exausto puxa o escarro, a voz fofa anuncia a ligação da linha púrpura com a linha verde, quase a chegar a Chaoyang. Entra mais gente. Gente como areia. O homem escarra um escarro a vários decibéis de Lil Wayne com as últimas notícias sobre as novas parcerias comerciais de Xi em África num led. Se um homem fétido escarra numa carruagem de metro em Sanlitun em hora de ponta, terá realmente escarrado?

A expectoração pendurada pelos órgãos, derretida à saída do tasco, baijiu escarlate no focinho do escritor a quem a expectoração mete nojo. Um inventário artificial de palavras sempre disponíveis porque não é casado. O escritor-filósofo define o homem como uma galinha sem penas mas só o migrante entende Diogenes, come a galinha, cospe as penas. O verdadeiro kynikos não aparece nas tertúlias de loiros hispters solitários, inebriados de exoticidade. Aqueles que tocam Punk Rock no Templo: topopoligamos de cerveja artesanal em punho em hutongs onde se defeca com uma intimidade intimidante com o chinês desconhecido, agora íntimo. Tão descontraído que nos faz vergonha ao pudor prepotente.

Escarra enquanto defeca e nós só desejamos conseguir fazer o mesmo, atingir esse patamar onde só chega o autêntico. Expctoração-distúrbio acusada de autonegligência involuntária só porque dispensa confortos. Todo o conforto é inútil.

19 Jun 2020

Um elogio ao chinês

[dropcap]A[/dropcap] minha suposta profissão é a de escritor. Digo suposta porque encarar a escrita seriamente corresponde, em última análise, a não alimentar qualquer importância quanto as consequências pragmáticas que dela advêm, nomeadamente (mas não só), a indispensável componente financeira. Escrever não dá dinheiro. Reformulo:

é muito improvável que se consiga viver de royalties, especialmente se nos restringirmos ao anémico mercado português e se considerarmos unicamente a escrita literária – que é sempre mais fácil de definir pelos exemplos daquilo que não o é. Haverá quem o consiga, mas contam-se certamente pelos dedos da mão.

Preferia que assim não o fosse e que pudéssemos quase todos quantos escolhemos escrever viver da escrita. Mais a mais, a escrita exige tempo, respiração, leitura, muita leitura. Não se coaduna facilmente – embora quase sempre tenha de o fazer – com a exigência de uma profissão ocupando oito horas diárias. Por tudo quanto ouvi e vi desde sempre, nunca achei que me seria possível viver da escrita. Escrevo porque quero. A cada um o seu veneno.

Uma das parcas vantagens da escrita é ser-se traduzido e com isso poder ir a sítios a que de outro modo só se iria em documentários. E uma coisa que tenho verificado um pouco por toda a parte nas cidades da Europa onde me tem calhado estar (sobretudo França e Alemanha), logo no aeroporto, é a omnipresença da língua chinesa. Não só nas sinaléticas onde antes pontuava somente o inglês, mas em anúncios de todo o tipo, de ofertas disto e daquilo a incentivos vários ao tax refund e restantes modalidades de captação da divisa turística. É assim em Paris, em Frankfurt ou em Lisboa. Presumo que também o seja na maior parte das cidades em que o chinês-versão-turista vem largar uns cobres. Há coisa de vinte anos apenas – talvez menos – a quase totalidade dos turistas do extremo oriente a visitar a europa eram os Japoneses, afamados por comprarem artigos por prateleira e pela obsessão praticamente patológica que nutriam de documentarem fotograficamente a sua presença. As suas férias, dir-se-ia, começavam de facto quando, regressados ao Japão, abriam o álbum de fotos pela primeira vez para os seus convidados.

Por motivos felizmente alheios ao turismo, ando a (tentar) aprender chinês. Do ponto de vista gramatical e sintáctico, não é uma língua difícil. Infelizmente, tudo o resto o é. É uma língua tonal, coisa com a qual não estamos habituados a ter contacto (o mandarim tem quarto tons, o cantonês tem seis, fazendo com o primeiro contacto com o cantonês lembre uma multidão de pessoas a tentarem cantar dentro de um autocarro circulando numa estrada pejada de lombas). A escrita é ideográfica, pelo que a dificuldade não é ser-se incapaz de perceber o que se lê – como, por exemplo, para mim, o dinamarquês – mas o próprio acto de ler. Há de facto uma razão para a nossa expressão idiomática “isso para mim é chinês”.

Mas é uma língua fascinante. Para começar, não tem nem existe “sim” ou “não” em chinês. A concordância ou discordância faz-se verbalmente – afirmando ou negando o verbo da frase na qual vem expressa a pergunta, regra geral. Os verbos não flexionam em tempo, pessoa, número, etc. Parece-me, eu que tenho o chinês ainda apenas pelos tornozelos, uma língua de legos: as palavras encaixam umas nas outras sem deformação, quadradinhas, prontas a serem usadas de formas inteiramente diferentes e com outros sentidos noutras frases. Legos talvez não seja a melhor imagem. Tetris, que aos legos não se perde.

Tivesse eu nascido a tempo de começar agora a aprender uma língua estrangeira na escola, ia aprender chinês (isto partindo do princípio de que os nossos governantes dão alguma importância à língua da (brevemente) maior economia do mundo, falada por mil milhões de pessoas, e a instituem, nem que facultativamente, nos currículos escolares). Porque o inglês se aprende por contágio, na internet, e as restantes línguas europeias por paixão ou no erasmus – e estes, por vezes, coincidem em tempo e espaço.

28 Jun 2019