Jerusalém: Israelitas matam em Gaza com festa simultânea na nova embaixada dos EUA

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m chocante contraste, as forças israelitas mataram na segunda-feira pelo menos 55 palestinianos e feriram mais de 1.200, enquanto a alguns quilómetros de distância Israel e EUA faziam uma festa para inaugurar a embaixada norte-americana em Jerusalém.

Segunda-feira foi, de longe, o dia com mais mortes na violência transfronteiriça, desde a devastadora guerra em 2014 entre Israel e o Hamas, o que debilitou ainda mais as já de si frouxas perspetivas para o dito plano de paz de Donald Trump.

Ao longo do dia, manifestantes na Faixa de Gaza incendiaram pneus, provocando grossas colunas de fumo, e atiraram pedras e bombas incendiárias às tropas israelitas do outro lado da fronteira.

Os militares israelitas, que têm estado sob forte criticismo internacional pelo uso excessivo da força contra manifestantes desarmados, garantiram que o Hamas tentou bombardeá-los e alvejá-los, a coberto dos protestos, e divulgaram vídeos que mostravam os palestinianos a cortarem partes da fronteira constituída por arame farpado.

Os protestos da segunda-feira culminaram mais de um mês de manifestações semanais contrárias ao bloqueio da Faixa de Gaza. Mas a mudança da embaixada norte-americana, de Telavive para Jerusalém, fortemente criticada pelos palestinianos, acrescentou mais combustível.

Não houve praticamente qualquer menção à violência em Gaza na sumptuosa cerimónia de inauguração da embaixada, que é uma atualização de um posto consular situado apenas a 80 quilómetros de distância.

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e outros dirigentes juntaram-se a uma delegação norte-americana, com membros do Governo e apoiantes republicanos e cristãos evangélicos.

O genro e conselheiro de Donald Trump para o Médio Oriente, Jared Kushner, chefiou a delegação, que integrava a sua mulher, Ivanka Trump, o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, e quatro senadores republicanos. Presentes estiveram também o financiador dos republicanos Sheldon Adelson e os pastores evangélicos Robert Jeffress e John Hagee.

“Um grande dia para Israel!”, tinha afirmado antes Trump, em mensagem distribuída através da sua conta na rede social Twitter.

Mas a quantidade de mortes e a condenação generalizada da mudança de embaixada no mundo árabe aumentaram as dúvidas sobre a ambição de Trump intermediar o que já classificou como “o acordo do século”. Ao fim de mais de um ano no poder, Trump ainda não apresentou qualquer proposta do há muito prometido plano de paz.

Trump afirmou que reconhecer Jerusalém como capita de Israel é admitir a realidade de o Governo israelita estar ali localizado e a ligação antiga dos judeus à cidade. Insistiu que a decisão não tem impacto nas futuras negociações sobre as fronteiras finais da cidade.

Mas, para israelitas, como para palestinianos, o gesto norte-americano é visto como um alinhamento com Israel na questão mais sensível neste velho conflito.

“Que dia glorioso. Recordem este momento. Isto é história”, disse Netanyahu, durante a cerimónia de inauguração.

“Só se pode construir a paz baseada na verdade e a verdade é que Jerusalém tem sido e sempre será a capital do povo judeu, a capital do Estado judaico”, acrescentou o primeiro-ministro israelita.

Os palestinianos, que veem Jerusalém-Leste como a sua capital, cortaram relações com o Governo de Trump e consideram que os EUA são incapazes de servirem como mediadores.

Israel capturou Jerusalém-Leste na guerra de 1967 e anexou a área, uma decisão que não foi reconhecida internacionalmente.

O Presidente palestiniano, Mahmoud Abbas, furioso com a questão da embaixada, disse que “vai recusar” qual acordo de paz proposto pelo governo de Trump.

O chefe des Estado palestiniano apelou também à comunidade internacional para condenar o que disse ser “um massacre” pelas tropas israelitas em Gaza.

Ao cair da noite, pelo menos 55 palestinianos, incluindo vários menores, foram mortos, informou o Ministério da Saúde de Gaza, que mencionou ainda a existência de 1.204 feridos, dos quais 116 com feridas graves ou em estado crítico.

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e a chefe da política externa da União Europeia, Federica Mogherini, fizeram apelos semelhantes, para que Israel respeitasse “o princípio da proporcionalidade no uso da força” e mostrasse contenção, e que o Hamas garantisse que os protestos permanecessem pacíficos.

O dirigente da agência da ONU para os direitos humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, lamentou “a matança chocante de inocentes”.

Por seu lado, o Presidente da França, Emmanuel Macron, condenou “a violência das Forças Armadas israelitas contra os manifestantes” palestinianos.

O Egito, um importante aliado de Israel, condenou a matança dos manifestantes palestinianos, enquanto a Turquia chamou o seu embaixador nos EUA e em Israel, depois do que classificou como um “massacre” de palestinianos na fronteira de Gaza. O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, em Londres, acusou mesmo Israel de “terrorismo de Estado” e de “genocídio”.

A África do Sul também chamou o seu embaixador para consultas.

Durante a cerimónia na embaixada em Jerusalém, Kushner colocou a culpa nos manifestantes palestinianos.

“Como temos visto nos protestos no último mês e mesmo hoje, os que provocam a violência são parte do problema e não da solução”, disse.

Israel justifica o bloqueio da Faixa de Gaza, imposta por Israel e pelo Egito depois do Hamas ter assumido o controlo do território em 2007, é necessária para impedir o Hamas de aumentar as suas capacidades militares.

Mas o bloqueio dizimou a Economia de Gaza, criando um desemprego de 40% e permitindo um fornecimento diário de eletricidade de apenas algumas horas.

Os militares israelitas quantificaram em 40 mil os manifestantes nas ações de segunda-feira, salientando “a violência inédita” dos manifestantes em relação aos dias anteriores.

Desde que as ações de protesto dos palestinianos começaram em 30 de março último, já morreram 105 palestinianos.

O tempo dos acontecimentos de segunda-feira é profundamente simbólico para israelitas e palestinianos.

Os EUA argumentam que escolheram o dia para coincidir com o 70.º aniversário da fundação de Israel.

Mas o dia de hoje, terça-feira, também marca o que os palestinianos designam por ‘nakba’, ou catástrofe, uma referência às centenas de milhares de pessoas que fugiram ou foram expulsas de suas casas durante a guerra de 1948, subsequente à criação de Israel.

Para hoje está planeado um dia de luto e funerais massivos.

A maioria dos dois milhões de habitantes de Gaza são descendentes de refugiados e os protestos têm sido feitos sob o slogan de ‘A Grande Marcha do Regresso’ para as, há muitos perdidas, casas onde é agora Israel.

15 Mai 2018

Israel | Dezenas de países boicotam inauguração de embaixada em Jerusalém

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ezenas de países, entre eles a maioria dos europeus, não assistiram ontem a uma cerimónia do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita para assinalar a inauguração hoje da embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém.

O evento conta com a presença do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e da delegação norte-americana enviada para a inauguração, que já chegou a Israel e inclui a filha do Presidente dos Estados Unidos Ivanka Trump e o seu marido e assessor presidencial, Jared Kushner.

Está prevista a assistência de um milhar de pessoas e foram convidados 86 embaixadores e encarregados de negócios, 40 dos quais aceitaram, mas a maioria dos Estados europeus não estará presente por não concordar com a mudança da embaixada de Telavive para Jerusalém, que rompe o consenso da comunidade internacional.

Entre os países que não estarão presentes encontra-se a Espanha, o Reino Unido, a França e Itália, embora tenham confirmado a sua presença os representantes da Roménia, Hungria, Áustria e República Checa, confirmou o Ministério dos Negócios Estrangeiros num comunicado.

O Presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou a mudança da embaixada em Dezembro, quando reconheceu Jerusalém como a capital de Israel, suscitando críticas da maioria da comunidade internacional e a ira dos palestinianos. Estes reivindicam Jerusalém oriental, ocupado em 1967 e posteriormente anexado por Israel, como a capital de um desejado Estado da Palestina.

14 Mai 2018

ONU : Projecto contra Jerusalém como capital de Israel

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m projecto de resolução contra o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital de Israel está a ser preparado na ONU para demonstrar o isolamento dos norte-americanos no Conselho de Segurança, disseram ontem fontes diplomáticas. Os Estados Unidos da América, Estado-membro permanente do Conselho de Segurança e principal defensor de Israel, têm o direito de veto sobre todas as resoluções submetidas à votação e utilizou-o várias vezes no passado. “O importante é ter o apoio de 14 dos 15 membros do Conselho de Segurança” para este futuro texto, disse à agência de notícias AFP, sob anonimato, uma fonte diplomática palestiniana.

Na sexta-feira passada, os Estados Unidos estavam totalmente isolados do Conselho de Segurança durante uma reunião de emergência, convocada depois de o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ter anunciado o reconhecimento unilateral de Jerusalém como capital de Israel. Todos os outros membros do Conselho de Segurança criticaram esta decisão.

Vários deles denunciaram a violação das resoluções anteriores da ONU, enfatizando que a questão de Jerusalém deveria fazer parte de um acordo negociado entre israelitas e palestinianos, como solução do conflito existente entre os dois povos.

O embaixador palestiniano na ONU, com o estatuto de observador, Riyad Mansour, disse à AFP que o texto de resolução proposto pediria aos Estados Unidos que “anulasse” a sua decisão.

Mas de acordo com várias fontes diplomáticas, “a linguagem”, em última análise, mantida no projecto poderia ser mais matizada para assegurar o apoio dos 14 países membros do Conselho de Segurança da ONU.

O objectivo final é não descartar completamente os Estados Unidos, mas sim pressionar para que o projecto de paz que prometeram, desde que o republicano Donald Trump chegou ao poder há quase um ano, leve em conta os interesses dos palestinianos.

Desde a criação de Israel, em 1948, a comunidade internacional absteve-se de reconhecer Jerusalém como sua capital. Israel anexou a parte oriental de Jerusalém em 1967 e aprovou uma lei declarando que é a sua capital “indivisível”. Esta anexação nunca foi reconhecida pela comunidade internacional e os palestinianos consideram Jerusalém Oriental como a capital do futuro Estado da Palestina.

15 Dez 2017

Ricardo Ben-Oliel (continuação)

Como é que um judeu de família da Europa central nasce em Cabo Verde e cresce e forma-se em Portugal?

Tudo por força do acaso . Minha mãe, nascida na Alemanha, encontrava-se em Milão, na companhia da irmã e do cunhado, quando Mussolini deu aos judeus ordem de expulsão. Teriam de abandonar a Itália dentro de um mês, sob pena de repatriamento. Por sorte, um familiar deles que à data se encontrava em  Cabo Verde, conseguiu obter-lhes licença de entrada. Meu pai, também judeu, que tinha negócios em Cabo Verde, encontrava-se no porto do Mindelo quando o navio em que minha mãe viajava aí chegou. Ainda por força do acaso, conheceram-se logo após o desembarque. Meses  depois estavam casados. Passados anos, já meus pais tinham três filhos, e por razões de escolaridade decidem mudar-se para Lisboa. Aí estudei desde a primária até ao final da licenciatura em direito.

O que te levou a deixar Portugal e passar a viver em Israel?

Esta é uma das mais  complexas  respostas a dar. E que respeita à mais  difícil decisão da minha vida. Não fui para Israel por razões económicas ou políticas, que são as que geralmente dão origem à  emigração. A razão foi ideológica. Corpo aqui (Lisboa), espírito lá (Israel), até que decidi reencontrar-me, partindo. Foi em Dezembro de 1973. Sabes que estou a escrever uma novela em que tento responder a esta tua pergunta?

Isso é uma boa notícia! A propósito do que me respondes, de não haver uma razão politica na tua mudança para Israel, qual era a relação do Estado Novo com os judeus?

O Estado Novo, é sabido, sempre teve uma relação ambígua para com muitos. Até  para com a  Igreja. Não admira que, em certa medida, o mesmo tenha sucedido com os judeus. Mas há que distinguir entre dois períodos diferentes: até ao final da Guerra e o pós-guerra. Grosso modo, diria que na primeira fase, apesar de sérios ziguezagues e mesmo graves deslizes, houve uma relação de cooperação. Judeus chegaram de comboio dos países ocupados. As autoridades criaram vários locais de acolhimento. Lisboa torna-se um porto de passagem para milhares que buscam outras bandas. A minha própria família materna encontra um abrigo em Portugal. Estes factos não podem de modo algum ser ignorados. Terminado o conflito, o relacionamento é de franco, bom entendimento. Eu conheci de perto a comunidade israelita de Lisboa, na década de sessenta e princípios dos anos setenta, nela também tive certas funções directivas. O presidente da comunidade,  Prof. Moisés Amzalak, que veio a ser presidente da Academia das Ciências, foi íntimo de Salazar. Contou-me que Salazar chegou a consultá-lo para efeito de nomeação de ministros. O Prof. Kurt Jacobson chegou a vice-reitor da Universidade de Lisboa. O doutor Samuel Ruah, se bem me recordo, foi médico de Salazar. Tratava-se de uma pequena comunidade, julgo que não teria mais de mil membros, onde vários se distinguiram no mundo da medicina, do direito, da economia. Intramuros não se falava de política. Nem bem, nem mal. Tal não impediu que só em 1977 tenham sido estabelecidas relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel, e que só em 1991 venha a ser instalada a primeira embaixada de Portugal em Telavive. Aí as considerações já eram completamente outras, e Portugal diligenciou em não afectar os seus interesses no mundo árabe.

E como foi todo o processo de adaptação a Israel, à língua, à escrita, pois tornaste-te um académico respeitado nesse país?

Vê que colocas a questão em termos de passado , como se o meu processo de adaptação tivesse já terminado. Não é assim. Ele está ainda em curso, e assim será. Apesar dos meus quarenta e tal anos em Israel, e de me ter tornado um académico conhecido como  catedrático de direito, tenho ainda muito a aprender. A aprendizagem da língua, da escrita – e isto apesar de ter muitíssimas centenas de páginas publicadas em hebraico – da cultura, dos costumes das várias etnias que habitam o país, exigem um trabalho constante, perseverante. Sou um imigrante, terei de aceitar a minha função de ponte entre o passado e as gerações futuras. Os meus filhos já estarão integrados. Os meus netos ainda melhor.

Quando começaste a escrever?

Tinha os meus doze, treze anos. Fazia-o um tanto às escondidas. Escrevia histórias curtas que às vezes dava à minha irmã para ler. Nunca publiquei o que quer que fosse nos jornais juvenis à data existentes.

E conhecias a tradição literária judaica ou somente a ocidental?

No  período que precedeu a aliá (emigração) a minha leitura visou essencialmente  a compreensão da Torá, do Talmud, da Kabalá. Interessava-me captar o máximo sobre a identidade judaica, a Weltanschauung do povo judeu. No campo estritamente literário, certamente que me eram muito familiares os nomes de Chaim Bialik, Shmuel Agnon, Amos  Oz, entre outros. Mas não nego que muito aprendi sobre a particular sensibilidade e olhar crítico judaico  lendo escritores judeus ocidentais, tais como Stefan Zweig, Isaac Babel, Saul Bellow, Hannah Arendt , Elie Wiesel , Salinger, Philip Roth, e tantos  mais, sobretudo o grande Kafka.

17 Jul 2017

Ricardo Ben-Oliel (Contista que vive há 40 anos em Israel”

Ricardo Ben-Oliel

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]icardo Ben-Oliel é aquilo a que podemos chamar de um autor tardio. Se não na escrita, pelo menos na publicação. Em 2013, e já com mais de sessenta anos, publica na Abysmo o seu primeiro livro, um conjunto de contos intitulado Silêncio. Com formação em direito e muitos anos de estudo de música e piano, aos vinte e oito anos de idade muda-se de vez para Israel onde passa a viver e a exercer o cargo de professor universitário de direito, até aos dias de hoje. A sua escrita está impregnada do lugar onde habita, contrariamente a muitos escritores emigrados ou exilados, que tantas vezes escrevem tão-somente acerca de onde vieram e não acerca de onde estão. Não se veja, contudo, nesta minha afirmação uma qualquer crítica velada, mas tão somente uma constatação, até porque não sabemos o que seja melhor para aquele que escreve e para o leitor, se uma escrita acerca da prisão de onde se fugiu ou uma escrita acerca da prisão a onde se chegou. Assim, Ricardo Ben-Oliel neste seu segundo livro – O Quarto Trancado Onde Nem A Morte Entrava – e apesar de ter dois contos, os primeiros, que são passados em Portugal, remete-nos para um livro tão não-Ocidental como o seu primeiro livro, Silêncio, onde se lia à página 26:

Muito gosto eu dessas largas avenidas que há pelas capitais europeias. Sobretudo numa manhã límpida e azul. // A vida parece tornar-se, aí, mais fácil e leve. Prometedora. Alegre. São as esplanadas, os arvoredos, as largas montras envidraçadas a oferecerem um quase-tudo. Há um luxo disseminado, uma conjugação de esforços a criar um cenário optimista, uma risonha mentira consensual.

Trata-se efectivamente de uma visão de alguém que vem de fora da Europa, da calma e segura Europa das últimas décadas, das décadas do pós-guerra. E tal como algumas funções da vida nos ficam coladas à pele, como escreve o autor logo na segunda página do primeiro conto deste livro – “Era ele o magistrado-mor. Ou melhor, fora-o durante o tempo de uma vida; e quando tal acontece, é sabido que a função fica colada à pele como a crosta de uma insarável ferida.” – também um país ou uma zona geográfica nos fica colada à pele, quando aí vivemos mais de quarenta anos, como é o caso de Ricardo Ben-Oliel em Israel, nesse singular país, nessa singular região do planeta Terra. Quem tem a experiência de viver anos fora da Europa, em continentes e em países onde a violência faz parte da paisagem, não pode deixar de se sentir em casa ao ler estes contos. Aqueles que vivem o seu quotidiano sem tiros, sem sangue na rua, ou a sua possibilidade a cada instante, podem chegar a estes contos com alguma desconfiança. Não pelas descrições de violência, que as não tem, mas, por um lado, pelo ambiente contínuo de preocupação que se faz sentir nestes relatos e, por outro, pela omnipresença de um passado recente de dor, de fim do mundo que une as pessoas retratadas. Estas contínuas preocupação e memória colectiva da vivência ou iminência do fim do mundo percorrem todos os contos deste livro. Mas veja-se este exemplo no último conto do livro, já nas suas últimas páginas, e a que voltaremos mais tarde:

Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…

Posso afirmar mais: a iminência do fim do mundo percorre todos os contos deste escritor, que até agora tem apenas dois livros publicados, contando já com este que aqui nos traz. Assim como também a precisão e a beleza da linguagem, aqui acerca de um vilarejo no Alentejo:

O vilar era um desses à maneira de pueblo blanco, onde as calçadas angustas serpeiam, libidinosas, por entre o casario. Baixo e acotovelado. Quase até ao castelo. Este, recortado como um brinquedo, pleno de infantil altivez, vinha do tempo em que os reis eram todos Sanchos e Afonsos. Mas, quando olhado de perto, já o mesmo parecia acanhar-se do seu pano de muralhas remendado, das ameias por terra esquecidas.

Aqui, e apesar de em um vilarejo alentejano, o assunto é algo tão universal e intemporal quanto é o humano:

Estirado na sua enxerga, as mãos sob a nuca, deleitava-se o velho magistrado com a quietação em redor, enquanto para si repetia, com sentido júbilo, já nada ter a ver com o vulgar mundo em que se sua e labuta. Finalmente, dava corpo ao grande sonho da sua vida. Que era pará-la, sustê-la, a ela e à morte também. // Conseguira quanto almejara. O gozo da imobilidade. A paragem no tempo.

As fronteiras que limitam a escrita deste autor, e que podemos ler logo de início no primeiro conto, são estas: um olhar de além-Ocidente e inquietações bíblicas. O território que é limitado por estas fronteiras mostra-nos uma linguagem precisa e bela como raramente se encontra em nossa língua. Leia-se, por exemplo, e logo nas primeiras páginas do livro, para além do já aqui transcrito:

Em baixo, para sul, uma lasca de rio verde-lodo, por onde, assim se dizia, coleavam, incessantes, as cobras-d’água.” ou “Num repente, assustou-se. Eram estilhaços a embater na pequena ventã. Uma chusma deles. Incessantemente. Uns tantos caíam inertes à altura do parapeito; outros aí se quedavam revirados, de patas no ar, num último esforço. Saltões. Os gafanhotos. De novo a morte, disse para consigo. Passou a espiá-los. Com o escoar dos dias, a ressequirem mais e mais.

Ou ainda:

Ficou-se a ouvir o zunido do vento suão. Era um silvo que crescia e recuava, que ganhava fôlego, e que o perdia, que se esgueirava pelas ruelas do povoado, para logo trepar montes e espraiar-se pela planície longa. Mas que voltava, como o respiro de um fogoso gigante a vogar no espaço. Vento fugido. Vento cigano.” e ainda mais esta “Comprara-o no mercado quinzenal. De caule franzino, folhas parcas, raiz bebé. Um pé de limoeiro. Vieram plantá-lo ao fundo do quintal. Mas mal começaram a rasgar a terra, logo deram com objetos duros e estranhos. Envoltos em terra mais que ressequida. Resquícios soltos, uma mandíbula, ainda uma outra, uma tíbia, logo uns fanecos de vasilhame. Ficou uma tarecada dispersa pelos cantos, aos montículos.

Muitos são também os momentos em que a metafísica se levanta, como já vimos anteriormente, mas veja-se mais um exemplo em que a linguagem para além da beleza e da precisão, levanta os pés do chão. Veja-se, e ainda nas primeiras três páginas: “Havia muito que a morte o intrigava. Que o atormentava até. Sobretudo pelo mutismo que se lhe segue. Qual o enigma por detrás daquela insondável, provocante quietude, tão próxima e tão remota, qual a razão para logo tudo se silenciar? Era quanto o alto magistrado inquiria em momentos de maior cogitação, que os tinha. O “após” sempre fora para ele o grande mistério, sobretudo depois que um dia…

Tudo é uma verdadeira relíquia. E não só pela linguagem, mas também pelo mundo que se abre diante de nós daquilo que fomos, ainda não há tanto tempo atrás, pois desde o tempo em que o conto nos mete até agora, passou-se não mais do que uma mão de décadas. E veja-se esta maravilha, onde a metafísica se torna bela só para se rir de nós, humanos:

Seguiu-se a audiência, quem lá estava era a Laldinha, em tempos rica de curvas, quem diria ser a mesma quando ao peito já só trazia penduradas como que duas alforrecas dadas à costa, veja-se no que a natureza dá volvidas as idades (…)”.

No segundo conto, Sorrindo ao Cristo-Rei ou Simplesmente Perversa, a precisão e beleza da linguagem não nos abandona. Quase de início deparamo-nos com este curto parágrafo:

Passeamos junto ao rio, que ondula molemente. Súbito, é um sol de Agosto que se liberta de umas nuvens vagabundas e que nos ataca, esbraseado, impiedoso.

E estamos no meio de um passeio com um homem e uma mulher, o narrador Leo Blaustein, e Dafna. Um passeio de domingo ao Cristo-Rei. E o logo de seguida “Temos duas esplanadas à escolha. Uma lá mais ao fundo, de onde vem um intolerável banzé electrónico (…)”, mostra-nos claramente já não tratar-se de um outro tempo, como no conto anterior, mas deste nosso tempo de barulho ensurdecedor. Este conto corta-nos a direito. O modo como o narrador nos mostra o humano nas suas actividades de lazer, hoje, e ao mesmo tempo ligando-as sempre a uma ontologia, e como tal de sempre, é magistral. Leia-se as seguintes passagens:

Decorridos uns momentos, há um casal de jovens que se aproxima, a quebrar o letargo envolvente. Sentam-se diante de nós. Ela, elegante nos seus jeans, coçados à moda, e de uma deslumbrante cabeleira fulva; ele, atrapalhado na vestimenta, cabelos na vertical, olhos protuberantes e mortiços à Homer Jay Simpson.

Saltando um parágrafo, o narrador massacra-nos com aquilo que tantas vezes acontece na vida e só quem está a viver esse acontecimento não vê:

Então é o jovem quem, depois de fotografar o cenário, desata a disparar a máquina sobre a companheira – um clique, e mais outro, outro ainda, depois um último, já de muito perto – enquanto ela volteia instantemente os já desgrenhados cabelos áureos. Depois, é-lhe encontrada a mão. Porém, não obstante os carinhos, era notório o cunho de efemeridade que emanava daquela ralação, esteticamente tão díspar.

O autor sempre a lembrar-nos que a vida só a sabe quem a não vive. Só aquele que a observa pode julgar e saber convenientemente, ou mais aproximado da verdade humana, aquilo que acontece. Nunca aquele que vive. Nunca se sabe o que se vive. Há ao longo de todo este conto uma espécie de “Mil e Uma Noites”, e aqui então a narrativa retrocede no tempo, não como entretenimento do sultão, mas como artifício de pôr o outro a escutar a sua história. O artificio é simples, o mesmo usado na sedução, fazer parecer que vai beijar, contar, mas adiar continuamente o beijo e derramar a história um pouco mais para diante, ao ponto de Dafna chegar a perguntar-lhe directamente:

Mas diz-me uma coisa, Leo: será que, de facto, tencionas responder à minha pergunta, ou apenas entreter-me com mais uma das tuas histórias?

Este beijo que Dafna tanto espera, a resposta à sua pergunta logo no início do conto – “Importas-te de me esclarecer o porquê desse teu sorriso?” – será tão mais adiada quanto a maestria do contador. Assim, e tal como Sherazade vai adiando a sua morte, ao contar histórias ao sultão, também Leo vai adiando a resposta na certeza de com isso ter toda a atenção de Dafna, que é também um modo de adiamento da morte. Porque todos precisamos de contar a nossa história àqueles de quem gostamos. Porque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita.

4 Jul 2017