Megafone

[dropcap]P[/dropcap]ara que fique claro de uma vez por todas. O jornalista não é um megafone, papagaio, caixa-de-ressonância, porta-voz, moço de recados ou qualquer outro meio oficial de difusão informativa.

Apesar das crises éticas nascidas da mercantilização da comunicação, da vertigem do clickbait, do controlo dos meios de informação por grandes grupos económicos e de todos os mercadores que tentam vender verdades pessoais, não é muito complicado explicar qual o propósito da profissão. Por isso, dedico esta humilde página à sensibilização de quem ainda não percebeu com clareza qual o propósito do jornalismo.

Na semana passada, realizou-se o tradicional almoço entre Chui Sai On e os directores dos meios de comunicação de Macau que antecipa as festividades do Ano Novo Chinês. Depois de garantir que o Governo tem todo o respeito pela liberdade de imprensa, o Chefe do Executivo reiterou uma ideia que me deixa perplexo sempre que a ouço.

Num golpe de profunda incongruência, passo a servir momentaneamen te de megafone do Governo com um par de citações proferidas por Chui Sai On. Mas prometo que são por uma boa e pedagógica causa. Aqui vão dois breves trechos do discurso do homem que está no topo da hierarquia política do território: “O Governo da RAEM respeita a liberdade de expressão dos residentes de Macau, respeita a liberdade de imprensa e de publicação e ouve as opiniões e as sugestões dos órgãos de comunicação social.” Importa esclarecer que a comunicação social tem como missão informar, esmiuçar a realidade e trazer ao de cima factos de valor informativo, em vez desta bizarra função de órgão consultivo. Mas estas não foram, no meu entender, as palavras mais problemáticas do discurso do Chefe do Executivo.

“O Governo continuará, como sempre o fez, a apoiar vigorosamente o sector no desenvolvimento da sua actividade, para que os profissionais do sector possam, num bom ambiente social, desempenhar cabalmente as funções de canal de comunicação entre o Governo e a população e proporcionar serviços informativos mais diversificados ao público, com a fim de juntos contribuirmos para o desenvolvimento da RAEM.” Este é o parágrafo mais preocupante, com a irónica agravante de ter sido proferido depois do enaltecimento do princípio “um país, dois sistemas” e da liberdade de imprensa.

Sejamos claros. Este não é, nunca foi, nem nunca será o papel do jornalismo. Aliás, a missão do jornalista é o completo oposto desta perigosa asserção. Se fossemos meros veículos de propaganda, servis megafones do poder, qual a necessidade da liberdade de imprensa? Que sentido faria defender a independência do jornalismo? Aliás, se formos um mero canal de comunicação, uma espécie de relações públicas do Governo, para que serve o GCS?

Colocando de parte tiques autocráticos, importa recordar que a imprensa é o quarto poder. Tem o direito e obrigação de fiscalizar os poderes instituídos e trazer ao de cima a verdade, independentemente do incómodo que possa causar a quem manda. Outro dos títulos frequentemente usados para descrever o papel do jornalista é o “cão de guarda” do poder. Reparem que não é um chihuahua de de colo. Faz parte das nossas mais essenciais incumbências vigiar o poder para que este não se torne absoluto, corrupto e à margem da factualidade.

Não nos interessa criticar, dar sugestões, ou o quer que seja no campo opinativo, apesar da comunicação social estar impregnada de opinião, devidamente separada e identificada fora do campo noticioso. A nossa função é informar.

Naturalmente, faz também parte do nosso ofício noticiar o que é proposto ou anunciado pelo Governo. Neste capítulo, a profissão dita que se dê contexto ao que está a ser proferido, que se denunciem hipocrisias e se desmascarem mentiras ou deturpações da realidade.

O desejo ardente de ser chato e as paixões ideológicas não fazem parte do nosso ADN profissional. A busca pela verdade não tem propósitos subjectivos, nem pretende atacar ninguém. A veracidade não é emotiva, não quer fazer amigos nem tem apetência para servir de megafone para as vozes com mais alcance nas esferas de comando.

21 Jan 2019

O excesso de tudo

• “Qual a sua opinião sobre a situação na Síria?”
• “Acha que devemos dar voz, no seio da democracia, aos movimentos políticos de matriz anti-democrática?”
• “Como vê o conflito no Iémen? E o papel da Arábia Saudita na geopolítica do Médio Oriente?”
• “O futuro treinador do Benfica deveria ter que tipo de perfil?”
• “É um anacronismo anunciado falarmos de «trabalho humano» num tempo em que a Inteligência Artificial parece cada vez mais ser capaz de fazer qualquer tipo de tarefa?”
• “Depois do Bosão de Higgs, que nos falta descobrir a nível de partículas elementares?”

[dropcap]C[/dropcap]om o advento da Internet, a informação massificou-se. O que não tornou especialmente fácil a tarefa de analisá-la convenientemente. Ao acréscimo da quantidade de dados não correspondeu qualquer incremento na capacidade de processamento do humano. Continuamos a ser as criaturas excepcionais mas excepcionalmente limitadas que éramos antes da World Wide Web. Pelo contrário; a desproporção entre o acesso rápido e maciço à informação e a nossa módica capacidade de analisá-la tornou-nos coxos. E não se vê como colmatar a lacuna que só agora se fez ver.

É comum assistirmos, no decurso de um noticiário televisivo, a uma ou mais rubricas de comentário, normalmente de cariz político ou generalista. Quando estas são de teor político, o convidado é quase sempre um senador do regime, ou seja, um tipo que activamente contribuiu para a erosão do estado-de-coisas no rectângulo sem nunca mostrar o ensejo ou a capacidade de alterar a percentagem de inclinação negativa do declive. A maior parte das vezes até foi parte activa na sua acentuação. O sucesso em Portugal não se mede pelos resultados obtidos. Os critérios pelos quais se afere o sucesso e correspondente visibilidade mediática são da ordem do oculto.

Quando o comentário é de índole generalista, o convidado – muitas vezes um senador ou figurão do regime, as únicas criaturas com passe vitalício e dispensa de exame de comentador – é inquirido sobre os mais diversos temas. Como procurámos caricaturar no início deste texto, é a guerra na Síria, a validade científica da homeopatia, a relação preço-custo dos vinhos chilenos ou a recente alunagem chinesa. Ninguém, a não ser duas ou três pessoas que se escusam a aparecer publicamente, sabe alguma coisa interessante e esclarecedora de matérias tão diferentes e específicas. A verdade é que o comum dos mortais, preocupado em conseguir fazer da vida um terreno menos inóspito, também não. E é por isso que a coisa passa e la nave va. Se cada um de nós conseguisse alçar o pescoço além do horizonte da mediocridade difusa, a nudez do rei apareceria sem qualquer esforço de focagem.

A grande petulância do desconhecimento nunca foi a da sua admissão. A ignorância confessa sempre foi – e é-o sobretudo nestes tempos – um sinal de lucidez: é normal não se saber de um assunto, ora por este ser extremamente complexo ora por falta de interesse ou de tempo para estudá-lo. O que nunca foi normal foi saber um pouco de tudo sobre tudo, e este é precisamente a aura que preside ao nosso tempo e que de algum modo reflecte, em jeito de acto falhado, a aura da nossa época: o de não sermos capazes de admitir que enquanto indivíduos – o grande credo da modernidade – estamos votados a saber muito pouco e a contar para muito pouco. Ao contrário do que prometiam as nossas mães, não somos especiais.

Haverá excepções, homens e mulheres que sozinhos empurram continentes história adentro. E talvez a evolução, no sentido lato, seja de facto a marca filigranar que une os indivíduos excepcionais ao longo do tempo. Mas isso não resolve nada, em termos de aquietar o espírito. Nós, os que porfiam para se manter à tona, não somos excepções. E saber que há tanta coisa que poderíamos ser mais do que somos só nos parece esmagar ainda mais.

7 Jan 2019

Jebi | Autoridades receberam 72 pedidos de informação

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Gabinete de Gestão de Crises do Turismo (GGCT) recebeu 72 pedidos de informação de residentes sobre o tufão Jebi que afectou recentemente o Japão, aponta um comunicado. A maioria dos pedidos era referente aos voos que fazem a ligação entre aquele país e Macau. Entretanto, cinco residentes que estiveram retidos no aeroporto de Kansai, em Osaka, já foram retirados e o GGCT não recebeu qualquer pedido de assistência. A assitência aos passageiros afectados com o cancelamento de voos de Kansai está a cargo da Air Macau, para que os regressos sejam efectuados através dos Aeroportos de Narita ou Fukuoka.

7 Set 2018

16 anos do jornal Hoje Macau

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os tempos actuais, a palavra “jornal” começa a ter um sabor arcaico. Face às novas tecnologias, este objecto de papel parece ter perdido grande parte da sua importância e, dizem, cada vez menos pessoas se dão ao trabalho (ou ao prazer) de desfolhar estas páginas impressas.

No “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ninguém tinha acesso a jornais, muito menos a livros. Apenas o líder tinha acesso a uma biblioteca e é comovente (e perigoso) o efeito num cidadão das obras completas de Shakespeare.

Mais ou menos o mesmo se passa agora: a informação netificada, instantânea, de origem obscura, ultra-efémera, de importância menor, por um lado; e por outro os jornais sobreviventes, enquanto espaço de jornalismo, análise e crítica. Claramente, o Hoje Macau, no dia em que faz 16 anos, assume-se como pertencendo à segunda categoria.

Queremos ser um jornal e não uma fonte anódina de informação em segunda mão.

Queremos reflectir sobre os factos, analisá-los, de modo a abrir ao leitor a possibilidade de pensar neles ou mesmo de os recusar.

Queremos exercer um pensamento crítico no fluxo incessante de notícias e estender essa crítica, sem rodriguinhos, aos que entendem colocar os seus interesses pessoais acima dos interesses colectivos.

Queremos servir Macau e as suas gentes do modo que entendemos mais eficaz, no limite das nossas possibilidades: fazendo um produto digno, capaz de não envergonhar a comunidade que por aqui se exprime em português, seja como primeira ou segunda língua.

É inegável que a língua portuguesa faz parte integrante e fundamental da identidade de Macau, mas cabe-nos a nós garantir a sua importância, a sua permanência e futuro.

E queremos, sobretudo, que o Hoje Macau seja uma referência cultural activa (no sentido lato), na medida em que se assume como bastião da língua portuguesa e das culturas lusófonas.

De algum tempo para cá, este jornal tem dedicado parte significativa das suas páginas a assuntos literários, artísticos e culturais, no sentido de desafiar os nossos leitores a arriscarem os seus passos por caminhos belos e profundos.

Há mais de dez anos que publicamos semanalmente traduções de clássicos chineses, de poesia, de ensaios fundamentais para a compreensão do País do Meio. É um trabalho inovador, arriscado e, como quase sempre, talvez mal compreendido. Mas é esta a via pela qual pretendemos prosseguir.

São 16 anos desiguais que se confundem com a existência da RAEM, também ela perturbada por inúmeros acontecimentos paradoxais e bastas contradições. Mas hoje sentimos estar mais certos do que nunca das nossas capacidades de existir por aqui como um produto singular, único, irrepetível, incopiável, e de mostrar uma outra cidade ao mundo — esta amálgama de culturas, tradições e modernidade que Macau encarna sem pudor nem consciência.

É este, finalmente, o seu encanto e esperamos trazer alguma dessa magia para estas páginas. Sob pena de espelharmos um mundo baço, onde a escolha vacilaria entre a estupidez e o tédio.

5 Set 2017

Da desmesurada importância dada à informação

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvi há pouco tempo, para a Revista Ler, um ensaio sobre livros de auto-ajuda. Como em qualquer texto que se escreve, subsiste quase sempre a sensação de que o mais importante se perdeu de alguma forma, de que por inabilidade técnica ou defeito de óptica o ponto arquimédico do texto ficou de fora deste, tornando o resultado da escrita um exercício de malabarismo desapoiado e destinado a tornar-se ruína sem nunca chegar a ter sido edifício.

No caso em apreço, sinto que fiquei aquém na exposição de um conceito fundamental para compreender como os “manuais da vida” entraram de forma tão decisiva e transversal na vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Falo do conceito de informação. A fé que temos actualmente na informação radica, por um lado, no facto de esta ser um pilar das sociedades democráticas como actualmente as concebemos. Sem os meios de informação que temos a nosso dispor, a democracia não sobreviveria. Os vários escândalos, ao longo da história e um pouco por todo o lado, pelo quais se fecham e abrem ciclos políticos, mostram-nos isso de forma muito clara. Por outra parte, dá-se à informação um papel preponderante na transmissão de uma imagem do mundo e na perpetuação de uma ideia – ainda que difusa – da “cultura ocidental”. Estes dois aspectos, que em muitas ocasiões se sobrepõem, fazem com que tenhamos uma ideia altamente inflacionada do papel e dos poderes da informação.

A informação tem, por definição, um carácter neutro. Enquadra os factos, explica-os, mas escusa-se a tomar partido. É tendencialmente imparcial. Por isso, a mesma notícia, para diferentes pessoas – já para não falar em diferentes povos – espoleta diferentes reacções. A relação que cada sujeito estabelece com os factos que tem a seu dispor radica em mecanismos que ultrapassam largamente o âmbito deste texto. O mundo não é “tudo quanto é o facto”, como sustinha o Wittgenstein do Tratactus. O mundo é a forma como o sujeito se relaciona com tudo quanto há. Porque o facto corresponde à objectividade e o sujeito, passe o pleonasmo evidente, tem como forma de acontecimento fundamental a subjectividade.

Vemos isso claramente nas mais diversas escolhas que fazemos ao longo da nossa vida. Os maços de cigarros têm escrito “Fumar mata”, por exemplo. Alguém ficou surpreendido com a notícia que as embalagens veiculam? Alguém terá deixado de fumar por causa desse aforismo absolutamente anónimo inscrito em formato lápide? Estou em crer que não, e o facto de a informação escrita estar a ser substituídas por imagens – mais ou menos asquerosas, mais ou menos ridículas – parece suportar essa evidência. No livro “A Morte de Ivan Illitch”, o protagonista diz, a certa altura, lembrar-se de um silogismo lógico aprendido na escola “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Caio, que até então sempre fora uma entidade abstracta e destituída de qualquer poder, malgrado o alcance aparentemente universal do silogismo, torna-se, para um Ivan Illitch moribundo, um espelho, onde Caio é doravante um reflexo do malogrado Ivan Illitch. A mesma informação, em tempos radicalmente diferentes, tem efeitos radicalmente diversos.

Com os livros de auto-ajuda, laboramos no mesmo erro: o de atribuir à informação uma propriedade que ela não tem, a de ser uma espécie de toque de Midas pela qual o sujeito, em contacto com ela, muda. Não funciona assim e, por um lado, ainda bem, porque acaso a informação fosse de facto alguma coisa de semelhante a código de programação capaz de nos transformar por sermos expostos a ela, qualquer sujeito poderia ser reprogramado para qualquer efeito.

Na Grécia antiga, lugar do primeiro pensamento sistematizado sobre a natureza e forma de “uma vida boa”, a informação era apenas uma forma de veicular o pensamento e não, de todo, a componente fundamental de um programa – muito mais vasto e ambicioso – de reeducação do ponto de vista natural. Os epicuristas propunham, aliás, pouquíssimas orientações axiológicas mas muito treino. Não bastava ler um livro para um sujeito se tornar epicurista. Era preciso treinar. Praticar o epicurismo. Tornar-se epicurista era frequentar a escola de Epicuro, viver à maneira de Epicuro e morrer como Epicuro.

O que um livro de auto-ajuda propõe, pelo contrário, é uma solução rápida baseada na ilusão de que as fórmulas podem agir no sujeito como as rotinas informáticas agem nas máquinas. E isto equivale a alguém pretender conseguir ensinar karaté por meio de um livro. Não é assim que funciona. E mais cedo ou mais tarde, percebemos isso.

8 Mai 2017

Guerras de propaganda

[dropcap]N[/dropcap]ão se fala muito dele, não tem a visibilidade de um canal de televisão internacional como a BBC, a CNN ou mesmo a Russia Today, mas existe no serviço de acção externa da União Europeia (UE) um departamento que tem como função denunciar, contrariar e refutar a propaganda russa. Chama-se East StratCom Task Force – um nome que parece saído de um filme de espionagem, à boa maneira de James Bond. Imbuído de uma lógica que se assemelha à da Guerra Fria, produz duas newsletters por semana, Disinformation Digest e Disinformation Review, quer em inglês quer em russo, em que não apenas elenca aquelas que terão sido as notícias falsas da semana produzidas pela Rússia, como também reforça os pontos de vista da União sobre assuntos prementes. Esta semana, por exemplo, as publicações, distribuídas online, falavam da propaganda “desconstruída” em torno de Aleppo, e da campanha contra as ONGs em curso na Rússia.

Como se viu durante a recente campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos da América (EUA), as notícias falsas vieram para ficar. Abundam nas redes sociais; no Facebook, por exemplo. Recordo-me particularmente de uma, posta a circular há pouco mais de seis meses, que iria arrumar com as hipóteses de António Guterres ser eleito secretário-geral das Nações Unidas. Tratava-se da alegada apresentação da candidatura de uma mulher – tal como preconizava o ainda secretário-geral Ban Ki-moon –, diplomata filipina, que receberia o apoio de toda a Ásia (China incluída). O pior destas “notícias”, melhor seria se lhes chamássemos boatos, é que são partilhadas e comentadas, passando a fazer parte do conhecimento comum de muitos cidadãos. São alcandoradas ao estatuto de facto. Como a suposta notícia de que Donald Trump teria dito há duas décadas, que a ser candidato presidencial sê-lo-ia pelo partido republicano – “informação” que seria desmentida mais tarde.

A generalização destes boatos veio tornar a vida dos jornalistas ainda mais difícil. São apenas os profissionais da comunicação social se vêem forçados a proceder à verificação de um número cada vez maior de alegados factos, como também vão ter de relatar amiúde a própria existência do boato. A divulgação de que ele corre nas redes sociais pode permitir uma melhor compreensão das narrativas que se pretendem fazer passar e da realidade que se procura construir, isto sem se ter a certeza sobre quem está por detrás do processo, cuja origem é quase sempre impossível de determinar. Mais: os governos passaram a acusar-se uns aos outros – particularmente os Estados Unidos e a Europa, de um lado, e a Rússia, do outro – de “assaltos” informáticos e de ataques cibernéticos, com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo. É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo.

Contrariar a lógica de quem quer danificar a imagem de políticos da UE e afectar os valores que são tradicionalmente comuns a uma maioria dos Estados-membros não é uma tarefa fácil. Os ataques cibernéticos que se sucedem um pouco por todo o lado contribuem para ajudar a construir um inimigo – o que facilita a explicação da derrota. Foi assim nos EUA, tem sido assim nos países que se preparam para eleições em 2017, como a Alemanha, a França e a Holanda.

É como se o Muro de Berlim não tivesse vindo abaixo Angela Merkel, por exemplo, disse há dias que vamos todos ter de nos habituar “a vi- ver com eles”. E são quase impossíveis de confirmar de uma forma independente. Os jornalistas limitam-se a citar os porta-vozes dos governos que acusam outros da autoria de roubo de informação e da autoria de notícias falsas. De serem criminosos, portanto.

Os governos passaram a acusar-se uns aos outros de “assaltos” informáticos com o objectivo claro de destruir a “imagem” do inimigo.

Foi assim no rescaldo das eleições nos EUA, em que as autoridades norte-americanas apontaram o dedo à Rússia de Putin de ter estado na origem do furto de informação ao responsável pela campanha eleitoral de Hillary Clinton à presidência dos EUA, John Podesta. Sublinhe-se Putin, pois a acusação dos serviços secretos norte-americanos foi clara: um ataque desta ordem não poderia ter sido feito sem uma ordem expressa do Kremlin.

Dada a incapacidade de a comunicação social provar a fiabilidade das afirmações postas a circular pelos governos – saber-se-á alguma vez se foi Putin quem ordenou o ataque ou se a fuga dos e-mails da campanha de Clinton, divulgados pelo Wikileaks, partiu de dentro da própria estrutura de apoio à antiga secretaria de Estado? –, esta nova guerra torna impossível ao cidadão comum acreditar no quer que seja. É como se de repente tivéssemos passado a viver num mundo de realidades paralelas, saltando de uma para outra ao ritmo do zapping televisivo ou dos sítios que frequentamos na internet. Saúda-se naturalmente a liberdade de escolha, a liberdade de informação. O problema é que a informação nunca foi pura nem foi nunca totalmente objectiva. A informação sempre foi e sempre será enformada por quem a produz e obedece a uma lógica que escapa, em muitos casos, quer ao jornalista quer ao leitor. É como se o trabalho jornalístico estivesse ferido de morte. Parece que os tempos em que era possível acreditar num ou noutro jornalista fazem já parte da história. Há muitos anos, o relato independente do jornalista em cenário de guerra era essencial para se ter uma visão menos contaminada do que se estava a passar. Agora, acreditar que é possível acreditar não ajuda muito, pois torna-nos em simples receptores de informação, como se o processo comunicacional se resumisse à administração de um vacina, na sequência da qual passássemos todos a pensar o mesmo.

Este estado de coisas aproveita a quem? Numa primeira leitura, a Putin. Ao pôr em evidência os podres da democracia “ocidental”, o Presidente russo estaria não apenas a vingar-se pela divulgação dos Panama Papers, que, ao porem em evidência o modo de funcionar dos oligarcas russos, terão sido percepcionados no Kremlin como um ataque proveniente de Washington, mas também a sublinhar uma equivalência moral entre o “ocidente” e a Rússia. Todo este caldo de cultura – a incerteza, as instituições frágeis – seria o enquadramento perfeito para justificar uma liderança autoritária do tipo da de Putin. Mas esta é apenas a leitura que é feita por alguns analistas “ocidentais”

21 Dez 2016