Da desmesurada importância dada à informação

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvi há pouco tempo, para a Revista Ler, um ensaio sobre livros de auto-ajuda. Como em qualquer texto que se escreve, subsiste quase sempre a sensação de que o mais importante se perdeu de alguma forma, de que por inabilidade técnica ou defeito de óptica o ponto arquimédico do texto ficou de fora deste, tornando o resultado da escrita um exercício de malabarismo desapoiado e destinado a tornar-se ruína sem nunca chegar a ter sido edifício.

No caso em apreço, sinto que fiquei aquém na exposição de um conceito fundamental para compreender como os “manuais da vida” entraram de forma tão decisiva e transversal na vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Falo do conceito de informação. A fé que temos actualmente na informação radica, por um lado, no facto de esta ser um pilar das sociedades democráticas como actualmente as concebemos. Sem os meios de informação que temos a nosso dispor, a democracia não sobreviveria. Os vários escândalos, ao longo da história e um pouco por todo o lado, pelo quais se fecham e abrem ciclos políticos, mostram-nos isso de forma muito clara. Por outra parte, dá-se à informação um papel preponderante na transmissão de uma imagem do mundo e na perpetuação de uma ideia – ainda que difusa – da “cultura ocidental”. Estes dois aspectos, que em muitas ocasiões se sobrepõem, fazem com que tenhamos uma ideia altamente inflacionada do papel e dos poderes da informação.

A informação tem, por definição, um carácter neutro. Enquadra os factos, explica-os, mas escusa-se a tomar partido. É tendencialmente imparcial. Por isso, a mesma notícia, para diferentes pessoas – já para não falar em diferentes povos – espoleta diferentes reacções. A relação que cada sujeito estabelece com os factos que tem a seu dispor radica em mecanismos que ultrapassam largamente o âmbito deste texto. O mundo não é “tudo quanto é o facto”, como sustinha o Wittgenstein do Tratactus. O mundo é a forma como o sujeito se relaciona com tudo quanto há. Porque o facto corresponde à objectividade e o sujeito, passe o pleonasmo evidente, tem como forma de acontecimento fundamental a subjectividade.

Vemos isso claramente nas mais diversas escolhas que fazemos ao longo da nossa vida. Os maços de cigarros têm escrito “Fumar mata”, por exemplo. Alguém ficou surpreendido com a notícia que as embalagens veiculam? Alguém terá deixado de fumar por causa desse aforismo absolutamente anónimo inscrito em formato lápide? Estou em crer que não, e o facto de a informação escrita estar a ser substituídas por imagens – mais ou menos asquerosas, mais ou menos ridículas – parece suportar essa evidência. No livro “A Morte de Ivan Illitch”, o protagonista diz, a certa altura, lembrar-se de um silogismo lógico aprendido na escola “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Caio, que até então sempre fora uma entidade abstracta e destituída de qualquer poder, malgrado o alcance aparentemente universal do silogismo, torna-se, para um Ivan Illitch moribundo, um espelho, onde Caio é doravante um reflexo do malogrado Ivan Illitch. A mesma informação, em tempos radicalmente diferentes, tem efeitos radicalmente diversos.

Com os livros de auto-ajuda, laboramos no mesmo erro: o de atribuir à informação uma propriedade que ela não tem, a de ser uma espécie de toque de Midas pela qual o sujeito, em contacto com ela, muda. Não funciona assim e, por um lado, ainda bem, porque acaso a informação fosse de facto alguma coisa de semelhante a código de programação capaz de nos transformar por sermos expostos a ela, qualquer sujeito poderia ser reprogramado para qualquer efeito.

Na Grécia antiga, lugar do primeiro pensamento sistematizado sobre a natureza e forma de “uma vida boa”, a informação era apenas uma forma de veicular o pensamento e não, de todo, a componente fundamental de um programa – muito mais vasto e ambicioso – de reeducação do ponto de vista natural. Os epicuristas propunham, aliás, pouquíssimas orientações axiológicas mas muito treino. Não bastava ler um livro para um sujeito se tornar epicurista. Era preciso treinar. Praticar o epicurismo. Tornar-se epicurista era frequentar a escola de Epicuro, viver à maneira de Epicuro e morrer como Epicuro.

O que um livro de auto-ajuda propõe, pelo contrário, é uma solução rápida baseada na ilusão de que as fórmulas podem agir no sujeito como as rotinas informáticas agem nas máquinas. E isto equivale a alguém pretender conseguir ensinar karaté por meio de um livro. Não é assim que funciona. E mais cedo ou mais tarde, percebemos isso.

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