História | Académicos detalham apoios a Portugal depois de ciclone em 1941

Três académicos da Universidade Politécnica de Macau debruçaram-se sobre a operação de solidariedade promovida pela comunidade chinesa de Macau para apoiar vítimas de um ciclone que fustigou Portugal em 1941. O apoio partiu de instituições como a Associação de Beneficência Tung Sin Tong ou do Hospital Kiang Wu, em parceria com o Governo

 

Em Fevereiro de 1941, um poderoso ciclone afectou Portugal e deixou um rasto de destruição em todo o país, numa altura em que todas as atenções estavam viradas para as várias frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial. Macau, à luz da neutralidade assumida no conflito pelo Governo de António de Oliveira Salazar, não estava directamente envolvida na guerra, mas acabou por se tornar num território de acolhimento para milhares de refugiados chineses que tentavam escapar à ocupação japonesa de Xangai e Cantão. O êxodo levou a população local a triplicar, atingindo-se a fasquia de meio milhão de habitantes.

Mesmo enfrentando uma grave crise social, Macau não deixou de enviar dinheiro para as vítimas portuguesas do ciclone, como prova a investigação intitulada “Angariação de Fundos pelos Chineses de Macau para a Reconstrução do Ciclone de 1941 em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial: Perspectiva da Escolha Pública”, da autoria dos académicos Baoxin Chen, Xi Wang e Kan Chen, da Universidade Politécnica de Macau (UPM).

A elite chinesa de Macau da época, em conjunto com o Governador de Macau, Gabriel Maurício Teixeira, enviou um total de 31.075.23 dólares de Hong Kong, o equivalente a 310.752,3 dólares de Hong Kong tendo em conta o câmbio actual, após uma campanha de angariação de fundos. Entidades como a Associação de Beneficência Tung Sin Tong e Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu participaram nestas iniciativas.

Segundo os autores da investigação, a concessão de donativos por Macau “ilustra a vontade da elite chinesa e do Governo de Macau de procurar capital político e poder em resposta à crise [gerada pela] guerra”. Trata-se ainda de um “evento de caridade diplomática internacional pouco conhecido e que é relevante para as relações luso-chinesas”, lê-se no artigo.

“Apesar deste ter sido o momento mais difícil da Segunda Guerra Sino-Japonesa, a elite chinesa de Macau mobilizou forças sociais e angariou fundos para ajudar na reconstrução” após a passagem do ciclone, algo que foi “amplamente apoiado e mereceu a cooperação da população chinesa de Macau”.

Tratou-se de “uma actividade política civil” que mostra “o comportamento e o processo de escolha do público no fornecimento e distribuição de bens públicos e na elaboração de regulamentos adequados a fim de influenciar a escolha da população e maximizar a utilidade social”. Para os académicos, a campanha de recolha de donativos constitui um “extraordinário acontecimento histórico da diplomacia internacional das relações luso-chinesas em tempo de guerra” que “foi inadvertidamente esquecido”, consideram os autores.

Cartas guardadas

O estudo foi desenvolvido graças a uma bolsa atribuída pela própria instituição de ensino e só foi possível devido ao acesso que os investigadores tiveram às chamadas “Cartas de Crédito”, provas documentais em português e chinês dos donativos atribuídos, e que estavam à guarda de Luo Jing Xin, coleccionador ligado à Sociedade de Colecção de Nostalgia de Macau.

Segundo o artigo científico sobre esta investigação, a primeira parte das “Cartas de Crédito” está em chinês e conta com 52 páginas, enquanto a segunda parte contém 36 páginas em português. Os autores fizeram ainda uma pesquisa intensiva entre jornais chineses da época, que relataram este episódio e publicitaram a campanha de recolha de fundos. Uma cópia destas “Cartas de Crédito” está hoje à guarda do Centro de Estudos Culturais Sino-Ocidentais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UPM.

Os investigadores descrevem que os representantes da elite chinesa dirigiram-se ao Governador assim que souberam da tempestade, apresentando “condolências às vítimas a fim de mostrarem simpatia em nome do povo chinês”, tendo dito que “os chineses de Macau estavam dispostos a ajudar as pessoas que tinham ficado sem casa devido ao ciclone, para que pudessem sentir o calor e a preocupação por parte da sociedade chinesa do outro lado do mundo”.

Foi ainda referido por estes representantes da comunidade chinesa que “a angariação de fundos iria beneficiar os compatriotas portugueses em sofrimento”, além de proporcionar “às autoridades de Macau uma oportunidade para demostrar a sua lealdade e capacidade de governação do Governo português”.

Dois meses de recolha

Foi então criada uma comissão de angariação de fundos depois da aprovação do Governador Gabriel Teixeira, e publicado no jornal Va Kio, dia 27 de Março de 1941, um artigo onde se descreviam “os enormes prejuízos causados pelo ciclone em Portugal e a situação de vida das pessoas”. Lia-se, na peça, o seguinte: “O ciclone varreu todo o território de Portugal. Por onde se passava havia telhas, árvores e casas destruídas até à ruína, tendo depois seguido [o ciclone] directamente para a vizinha Espanha”.

Apelava-se ao ressurgimento do “Grande Espírito Tradicional Chinês, ‘仁義’ (Ren Yi)”, relativo aos sentimentos de benevolência e rectidão. No artigo apelava-se ainda à ajuda da população, para que a comissão pudesse “reunir os donativos suficientes para prestar ajuda e apoio necessários aos que sofrem”.

A 22 de Março de 1941 o comité reuniu pela primeira vez para discutir o formato da recolha de donativos. O encontro foi presidido pelo presidente da Associação Comercial de Macau, Ko Ho Ning, com representantes das associações do Hospital Kiang Wu e da Tung Sin Tong. Foi então criado o “Comité de Ajuda dos Chineses para a Catástrofe do Ciclone Português”, presidido por Ko Ho Ning.

A 25 de Março organiza-se uma segunda reunião na Associação Comercial, onde se chegou a um “consenso sobre a estrutura organizacional, o funcionamento e as questões de implementação da angariação de fundos”. Nesta reunião, determinou-se que o Banco de Cantão, localizado na Rua Cinco de Outubro, e o Banco Tung Tak, na avenida Almeida Ribeiro, seriam as principais agências a guardar os donativos, recolhidos em Outubro e angariados entre 22 de Março e 23 de Maio. Neste processo “os chineses de Macau demonstraram um enorme fervor filantrópico”, destacam os académicos.

Para angariar dinheiro, organizaram-se bazares de beneficência, competições desportivas ou espectáculos de teatro de ópera cantonense, nomeadamente por parte do Teatro Tai Ping, à época bastante conhecido tanto em Macau como em Hong Kong.

O estudo revela que a comunidade chinesa de Macau, “de todos os estratos sociais” foi “a principal fonte de donativos”, contribuindo com 14.156,94 dólares de Hong Kong [câmbio da época], o que constituiu cerca de metade do dinheiro recolhido. Além das associações já referidas, participaram nesta recolha de fundos “celebridades e comerciantes conhecidos que se refugiaram em Macau durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, bem como o Governador de Macau e funcionários do Governo”. São destacados no estudo donativos de Zhou Yong Neng, que chefiava a delegação do Kuomitang em Macau, ou Sir Robert Ho Tung.

Esta campanha de recolha de fundos não tinha apenas objectivos de apoio social, mas também uma forte mensagem política, “não se tratando de uma mera actividade de auxílio e de caridade, mas de um acto deliberado com requisitos políticos específicos”, com diversas implicações.

“Naquela época eram inseparáveis as relações sociais entre Portugal e Macau e havia o objectivo comum de proteger Macau”, apesar das diferenças socioculturais entre portugueses e chineses e o grande distanciamento geográfico.

A elite chinesa acreditava que “China e Portugal tinham um destino comum ligado ao desenvolvimento histórico” e, numa altura em que Macau e a comunidade chinesa enfrentavam os dissabores da guerra, “os dois lados não eram apenas parceiros a enfrentar uma crise, mas também uma força vital na protecção de uma pátria comum – Macau”.

Os investigadores acreditam que esta ideia “permitiu que o evento de angariação de fundos corresse bem e reunisse mais contributos sociais”, apesar de constituir “um desafio”.

Segundo uma reportagem do jornal Público de 12 de Fevereiro do ano passado, que cita o meteorologista Paulo Pinto, “nunca houve tamanha destruição” em Portugal como a tempestade registada nesse ano de 1941. Não se sabe ao certo quantas vítimas o ciclone deixou, mas terão sido mais de uma centena de mortos e centenas de feridos.

Adélia Nunes, geógrafa portuguesa e autora de um dos poucos estudos sobre o incidente, relatou ao jornal que “foi uma situação catastrófica para o país”, tendo o ciclone atingido também Espanha.

31 Jan 2024

Dia da Vitória na Rússia e na Europa

No dia 8 de Maio de 1945, a Alemanha assinou a rendição em Berlim, e a paz foi declarada às 0:00 horas de 9 de Maio. A rendição da Alemanha pôs fim à II Guerra Mundial na Europa. Assinalado a 8 de Maio na Europa e a 9 de Maio na Rússia, o “Dia da Vitória” celebra o anseio dos povos por uma paz duradora e a paixão com que defendem as suas pátrias.

Antes do desmembramento da União Soviética, Moscovo e Kiev celebravam o “Dia da Vitória” a 9 de Maio, porque inúmeras vidas humanas se perderam durante a invasão Nazi nestas duas cidades. Em Fevereiro de 2022, a Rússia enviou tropas para a Ucrânia para levar a cabo operações militares especiais para, alegadamente, salvaguardar a segurança nacional, enquanto a Ucrânia afirma fazer face à invasão russa para defender a sua soberania territorial. Embora a China e as Nações Unidas tenham dado o seu melhor para promover as conversações de paz entre os dois países, infelizmente a guerra ainda continua. Lamentavelmente, ambos os países alegam que combatem para defender a segurança nacional. Se a guerra continuar, acredito que acabará por provocar cada vez mais danos à segurança nacional dos dois países. Entre a guerra e a paz, os líderes sensatos sabem por qual optar.

Haverá inevitavelmente fricções, e mesmo guerras, entre países. Tomemos como exemplo a China e o Vietname. A China lançou um “contra-ataque defensivo” ao Vietname do Norte em 1979. O exército chinês entrou no Vietname e ocupou a cidade de Lang Son, uma importante base militar vietnamita. Mas o exército chinês não avançou para invadir Hanói (capital do Vietname), mas, em vez disso, retirou após a missão estar cumprida. A guerra entre estes dois países começou a 17 de Janeiro e terminou basicamente a 16 de Março, pelo que durou apenas dois meses. O conflito de curta duração entre a China e o Vietname não destruiu as economias dos dois países, nem abalou gravemente a sua relação.

Fazer uso da sabedoria política na guerra é muitas vezes mais compensador do que a confrontação militar. No entanto, devemos respeitar as questões remanescentes de incidentes ocorridos entre países ao longo da história, relacionadas com a defesa da integridade territorial e da soberania. O Departamento de Educação da História da Imprensa Popular da China fez as seguintes explicações sobre o “Tratado de Nerchinsk” (o primeiro tratado assinado entre a China e a Rússia) mencionado nos materiais didácticos para alunos do ensino secundário que produziu em 1994: em primeiro lugar, o “Tratado de Nerchinsk” é um tratado equalitário (foedus aequum), que colocou ambas as partes em pé de igualdade. Em segundo lugar, diz respeito à fronteira oriental entre a China e a Rússia, e refere que as vastas áreas ao sul da Cordilheira Stanovoy, os rios Amur e Ussuri, incluindo a Ilha Sacalina, são todas zonas territoriais chinesas.

Hoje em dia, se disséssemos que o acordo fronteiriço sino-russo referente ao “Tratado de Nerchinsk” ainda era válido, deixaria de haver paz entre a China e a Rússia. O Império Romano, o Sacro Império Romano-Germânico, o Império Mongol, o Império Otomano, o Império Russo e a Dinastia Qing tornaram-se parte da história. Não devemos aspirar à glória do passado, mas sim a trabalhar em conjunto para criar um futuro melhor para a humanidade. Ao comemorar o Dia da Vitória, os russos não se devem esquecer que o propósito de obter a vitória é manter a paz. O falecido primeiro-ministro israelita Rabin foi um bom chefe militar, mas acabou por procurar a paz através de negociações. Este líder que enveredou pelo caminho da paz merece ser homenageado na Praça de Telavive.

11 Mai 2023

II Guerra | Seul pondera criar fundo para apoiar trabalhadores forçados por empresas japonesas

O Governo da Coreia do Sul anunciou hoje estar a considerar a criação de um fundo doméstico para compensar os coreanos forçados a trabalhar para empresas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial.

O plano, revelado durante uma audiência pública organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi recebido com duras críticas pelos antigos trabalhadores forçados e seus representantes legais, que exigiram que as indemnizações viessem do Japão.

Uma dirigente do ministério, Seo Min-jung, disse que a prioridade é providenciar as compensações o mais rápido possível, lembrando que muitas vítimas de trabalho forçado já estão mortas e que a maioria dos sobreviventes tem mais de 90 anos.

Seo, diretora do ministério para a Ásia Pacífico, disse que os pagamentos poderiam ser geridos pela Fundação para Vítimas de Mobilização Forçada do Japão Imperial, com sede em Seul.

Shim Kyu-sun, presidente da fundação, disse que as indemnizações poderiam ser financiadas por empresas sul-coreanas que beneficiaram de assistência económica japonesa quando os dois países normalizaram os laços diplomáticos na década de 1960, incluindo a gigante do aço POSCO.

Tribunais coreanos condenaram em 2018 empresas japonesas a pagar indemnizações a antigos trabalhadores forçados coreanos. Gigantes japonesas como a Nippon Steel e a Mitsubishi Heavy Industries recusaram-se a cumprir as decisões judiciais.

Mas Seo Min-jung disse que “as empresas japonesas reduziram grande parte de sua atividade económica na Coreia do Sul e retiraram ativos, por isso nem está claro se um processo de liquidação seria suficiente para compensar os demandantes”.

A dirigente ministerial disse ainda que funcionários do governo irão encontrar-se pessoalmente com as vítimas e familiares para explicar os planos de pagamento e obter o seu consentimento. Seo admitiu que seria “impossível” obrigar as empresas japonesas a desculparem-se pelo trabalho forçado, que por décadas foi uma das principais causas do impasse diplomático entre a Coreia do Sul e o Japão.

“Seria importante que o Japão sinceramente mantivesse e herdasse as comoventes expressões de desculpas e remorso que já expressou no passado”, disse a dirigente.
O Presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol, um conservador que assumiu o cargo em maio, reuniu-se com o primeiro-ministro japonês Fumio Kishida em novembro.

Na primeira reunião entre os chefes de governo dos dois países em três anos, ambos expressaram o compromisso de resolver rapidamente questões bilaterais “pendentes”, numa referência implícita à disputa do trabalho forçado.

A Coreia do Sul e o Japão mantêm disputas decorrentes da ocupação colonial japonesa, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente devido à escravidão sexual vivida por mulheres sul-coreanas e imposta por soldados japoneses.

12 Jan 2023

E tudo o vento levou

[dropcap]O[/dropcap] fim da Segunda Grande Guerra e a queda do muro de Berlim pareciam anunciar uma era de paz e prosperidade global. Embora a guerra da Jugoslávia e as atrocidades cometidas nos Balcãs avivassem a memória recente nos quais a esperança era ténue e frágil, era uma situação de excepção e não a regra. O mundo ocidental parecia ter chegado ao fim de uma longa e penosa caminhada, ao longo da qual tinha largado a canga do imperialismo colonial e a apetência bélica. A própria União Europeia, titubeando aqui e ali mas basicamente certa da necessidade de transformar a Europa multicelular numa potência global capaz de se sentar à mesa com os adultos, era a prova de que se podia fazer algo do sangue derramado no passado que não fosse mais sangue.

Fast Forward até 2020: o Brexit é uma realidade inelutável, os nacionalismos grassam um pouco por todo o lado e tirando uma ou outra excepção, é nítida a falência dos partidos que construíram a Europa. O zeitgeist da época é profundamente anticientífico, as livrarias transformaram-se em bricabraques onde se vendem toda a sorte de compêndios esotéricos, guias de dietas e manuais de auto-ajuda e pululam as teorias da conspiração. A própria ciência tem de adoptar – de forma absolutamente contranatural – uma postura de permissividade face às múltiplas tontices infundadas que se vão sucedendo. Na maior parte dos países as terapias alternativas estão enquadradas legislativamente e configuram muitas vezes uma possibilidade complementar de tratamento no sistema de saúde pública, embora haja zero evidências da sua eficácia terapêutica.

As pessoas estão aparentemente fartas da civilização. Querem regressar a um estado de “harmonia com a natureza”. Fazem uma selecção do conhecimento disponível e privilegiam apenas aquele que se conforma com a sua visão do mundo. Recusam tudo o resto, rotulando-o de excesso civilizacional cujo propósito é afastar-nos da origem a que pertencemos. O tédio da civilização não é novo. Baudelaire escreve sobre a difícil relação do homem com a cidade moderna. O movimento New Age dos anos setenta constitui-se por via da recusa de tudo quanto era símbolo da supremacia americana. A humanidade burguesa comporta em si um adolescente irado e cheio de certezas negativas que nunca mais cresce e sai de casa.

O fenómeno das redes sociais acaba por ser o megafone de que toda a esta gente meio perdida precisava. Um tipo num arrabalde de Berlin percebe que espalhados por todo o planeta existem pessoas que, como ele, acreditam nos efeitos maléficos das vacinas. “Pessoas despertas”, como cada um dos maluquinhos conspirativos se auto-intitula. Todos aqueles que aceitam os fundamentos científicos que nos permitiram basicamente duplicar a esperança de vida no Séc. XX são “o gado”, a massa informe a caminhar autista para o matadouro do controlo que “eles”, os poderosos, instituíram. Estas pessoas, como é óbvio, não trabalham com lógica. A enciclopédia delas é o youtube. O critério de verdade é a conformidade com o que passaram a pensar. E tudo piora quando têm filhos e resolvem submetê-los a uma infância de acordo com as suas crenças.

Sou absolutamente a favor da liberdade de cada um pensar, escolher e agir de acordo com a sua consciência dentro de um quadro leis equilibradas e justas. Daí se impõe que não se possa proibir um cidadão de optar por resolver o seu divórcio mal digerido com o professor Karamba e não com um psicólogo. Mas não proibir não é o mesmo que incentivar. E o que o Estado tem feito, nomeadamente com o enquadramento legal das terapias alternativas e com a promoção académica das mesmas, é muito mais do que permitir. É conferir uma aura de legitimidade a saberes que se escusam a passar pelo crivo do método científico. É dar a medalha a quem atalhou a corrida.

12 Jun 2020

Eva Koralnik conta como sobreviveu ao Holocausto

O fim do Holocausto assinala-se no próximo dia 27 de Janeiro. Eva Koralnik esteve ontem na Universidade de Macau para partilhar a sua história que, ao contrário de muitas, teve final feliz. Aos sete anos, altura em que começou o extermínio dos judeus que viviam na Hungria, conseguiu, com a mãe e a irmã recém-nascida, fugir para a Suíça. Com a memória ainda fresca, a sobrevivente conta como, de um dia para o outro, uma vida normal se transformou num pesadelo

[dropcap]C[/dropcap]orpos enchiam as ruas da bela Budapeste”. É assim que Eva Koralnik recorda uma parte da sua infância no momento em que decorria o extermínio de judeus na Hungria, em 1944. Na altura tinha sete anos, mas a memória não lhe falha, até porque “foi um período muito intenso”.

Filha de pai húngaro, Willi Rottenberg, e mãe suíça, Berta Passweg, Eva Koralnik nasceu na capital húngara em 1936. Durante esse período a lei suíça estava repleta de discriminações, uma delas viria a ser determinante para a história da família: uma mulher suíça que casasse com um estrangeiro perdia a nacionalidade. Um detalhe legal que se tornou fundamental quando a mãe de Eva se mudou para Budapeste, para seguir o negócio de família no sector dos têxteis, onde viria a conhecer e casar com um húngaro.

Eva Koralnik foi a primeira filha, nascida num hospital que se tornou uma recordação maldita. “Quando os russos já estavam a libertar Budapeste, os nazis foram ao hospital e mataram toda a gente: enfermeiras, médicos, doentes, bebés”, apontou perante um auditório cheio de estudantes, na Universidade de Macau.

No dia 19 de Março de 1944, o seu pai regressou do trabalho “com uma cara muito triste e disse só três palavras: eles estão aqui!”. Apesar de ter apenas sete anos, Eva Koralnik percebeu que algo terrível estaria a acontecer.

FOTO: DR

O objectivo das tropas era “matar o maior número de judeus, o mais depressa possível”. “A guerra estava quase no fim. Portanto, estavam com pressa”. Um imperativo fatal, a tempos agigantado pelo facto que “os nazis húngaros, por vezes, eram ainda mais cruéis que os alemães”, referiu.

A Hungria, que tinha uma comunidade de cerca de 800 mil judeus, foi o último território a ser ocupado pelas tropas de Hitler. Entre Maio e Julho de 1944, foram executados mais de 450 mil judeus.

Estrelas amarelas

Assim que começou a ocupação foram aprovadas várias leis, “umas atrás das outras”, que limitaram severamente a vida dos judeus. “Primeiro, todos os judeus passaram a usar uma estrela amarela. A minha mãe coseu-me uma no casaco”, recorda. Além disso, “os judeus só podiam sair à rua duas horas por dia, durante a hora de almoço, quando as lojas estavam fechadas, não se podiam sentar em parques de jardim, não podiam usar eléctricos, à excepção da última carruagem”.

A par das restrições reinava o medo. “Sabíamos que todos os camiões que ouvíamos passar levavam pessoas para uma estação ferroviária onde eram enfiadas em vagões com destino a Auschwitz e às câmaras de gás”, recorda.

A palavra “selecção” ainda ecoa na memória de Eva Koralnik nos dias de hoje pelas razões mais funestas. “Quando as pessoas chegavam a Auschwitz, eram seleccionadas para dois destinos: uns iam directamente para as câmaras de gás, em especial mulheres, crianças e idosos e outros, enquanto os homens eram escolhidos para trabalhar”, explicou.

À medida que os aliados se aproximavam de Budapeste, perto do final da guerra, os bombardeamentos tornaram-se um acontecimento diário. “Dormíamos vestidos porque a qualquer momento podiam soar as sirenes para irmos para a cave”, recorda. Nessa altura, já não havia carruagens para levar as pessoas para os campos de concentração e quem fosse encontrado pelos nazis, era atado, baleado e atirado para o Danúbio.

“A minha tia, assim como centenas de outras pessoas, fizeram a chamada marcha da morte. Como já não havia forma de os transportar, estas pessoas andaram durante dias em direcção à Áustria. Quem colapsava era logo baleado”, recordou.

Entretanto, a sua família foi separada quando o pai de Eva foi levado para um campo de trabalhos forçados. “Levaram todos os homens jovens, vestidos com uniforme e braçadeira que os identificava como judeus, para recuperar os caminhos de ferro dos comboios que levavam as pessoas para Auschwitz”, descreveu. Eva recorda ainda as palavras que ouviu mais tarde do pai sobre as mulheres que tentavam dar-lhes os seus bebés na esperança de que fossem salvos.

Rumo à Suíça

Ao mesmo tempo que o genocídio acontecia, centenas de pessoas juntavam-se em frente do consulado suíço, em Budapeste, para tentar arranjar um visto. O perigo da viagem não assustava quem preferia arriscar a travessia da Áustria, liderada pelos alemães, em busca de uma oportunidade de sobrevivência. Era neste consulado que trabalhava Harald Feller, um diplomata mais tarde reconhecido como um dos “justos entre as nações”, distinção dada àqueles, não judeus, que ajudavam as pessoas a fugir ao genocídio. Oskar Schindler e o português Aristides de Sousa Mendes são nomes que também figuram nessa lista.

“O homem do consulado que nos salvou prometeu fazer o seu melhor para negociar com os alemães a passagem segura até à Suíça para a minha mãe e mais três senhoras. Como não sabia se as conseguiria encontrar no dia em que conseguisse o visto, arranjou um esconderijo para as três”. Foi nesse local, situado no centro de Budapeste que esperaram seis semanas e onde a irmã mais nova de Eva acabou por nascer. “A minha mãe tirou a minha estrela amarela e fingimos não ser judeus porque isso poderia custar-nos a vida. O certificado de nascimento da minha irmã até hoje diz Vera Rothenberg, religião protestante. Isso salvou-nos”, recordou.

Os vistos chegaram no dia 2 de Outubro de 1944. Até à Suíça, mãe e filha tinham pela frente 800 quilómetros de terror. “As carruagens vinham cheias de soldados e a minha mãe tinha medo que eu falasse com eles e lhes dissesse que éramos judias. Estava num medo constante, com uma recém-nascida nos braços e sem comida”, apontou.

Percalços pelo caminho

Chegadas a Viena começaram os percalços. “Surgiram quatro agentes da Gestapo, perguntaram se vínhamos de Budapeste e disseram para irmos com eles”. O destino era o Hotel Metropole (sede da Gestapo), que tinha na cave uma autêntica câmara de horrores onde os presos eram torturados e mortos.

No entanto, nessa noite esperava-as um autêntico milagre: 44 mulheres judias passaram a noite nesse hotel e saíram vivas. “Os documentos falsos valeram-nos um tratamento simpático. Lembro-me bem dos agentes da Gestapo, com as suas botas brilhantes e os pastores alemães na trela. Era muito assustador. Deram-nos quartos lindíssimos e alimentação. A minha mãe estava angustiada porque não sabia se a comida estava envenenada. Eu dormi muito bem, adorei o sítio, mas as mulheres não pararam de andar de um lado para o outro cheias de medo”, descreveu Eva.

Na manhã seguinte, seguiram viagem. “Esperávamos chegar à Suíça nessa noite, mas isso não aconteceu. O comboio parou a 10 quilómetros da fronteira”. Mais uma vez, o receio de serem apanhadas e mandadas de volta instalou-se. “Muitas pessoas já ali tinham chegado antes para tentar passar a fronteira, mas acabaram por ser levadas para os campos de concentração”, disse. A noite acabou por ser passada na localidade de Feldkirach, onde contaram com a ajuda do chefe da estação. “O mestre da estação teve tanta pena de nós – devíamos ter uma aparência miserável, cansadas e esfomeadas – que nos trouxe chá e deixou-nos dormir em cima das mesas”. Na manhã seguinte conseguiram, finalmente, passar a fronteira.

O início da vida na Suíça não foi fácil. A família juntou-se à avó. O pai de Eva acabou por sobreviver ao campo de trabalho, e dois anos depois conseguiu regressar à Suíça. “Não nos queriam dar o passaporte. Éramos identificados como apátridas, mas em 1960 conseguimos obter passaporte suíço”, recorda com alegria. Eva estudou e licenciou-se em tradução, curso que lhe abriria a porta para trabalhar num processo judicial histórico que encerrou um dos capítulos mais dramáticos da sua vida.

Palavras com sentido

A palavra holocausto não existia nessa altura, acrescentou Eva Koralnik. “Estávamos apenas a vive-lo, mas não existia um nome”. As palavras conhecidas, além de selecção, eram “câmaras de gás, extermínio e deportação”. O que existia, sublinha, era o medo. “Apenas vivíamos no medo diário e as nossas ocupações era encontrar comida e esconderijo”.

Agora há um nome. Chama-se Holocausto e o seu fim é assinalado no próximo dia 27 de Janeiro. Mas as preocupações com o ressurgimento de movimentos de segregação racial não são exclusivo do passado. Esta Europa que agora se mostra cada vez mais virada para a extrema-direita é uma preocupação para quem passou por um dos lados mais escuros da história do velho continente.

“Enche-me de medo que tenhamos esta tendência de viragem à extrema-direita por toda a Europa”, confessou a sobrevivente. Para Eva, o que se está a passar neste momento “não é uma acção contra os judeus, mas é dirigira a todos os estrangeiros”. “Isto é uma situação assustadora”, rematou referindo-se às conquistas de poder e de popularidade de Le Pen na França, Órban na Hungria, aos movimentos que ganham protagonismo na Polónia e em Itália.

A única forma de fazer frente a esta situação, considera, é estudar história e saber o que a Europa passou de maneira a que não se repita. “Temos que estar muito atentos para que não se volte a repetir o que aconteceu no Holocausto”, sublinhou.

O processo Eichmann

Em 1961, durante o julgamento histórico, em Jerusalém, de Adolf Eichmann, conhecido como um dos “arquitectos” do Holocausto, Eva Koralnik trabalhou como tradutora na sala de imprensa do tribunal. “Foi um trabalho muito duro”, apontou enquanto recordava o momento em que traduzia as palavras do responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de concentração. “Eichmann estava numa cela de vidro para que as pessoas não o matassem a tiro, ou tentassem agredi-lo, mas o pior era quando chamavam as testemunhas que tinham escapado dos campos, mas que tinham de ir a tribunal contar o que lhes tinha acontecido”, apontou. Tratavam-se de depoimentos de pessoas que viram os filhos serem assassinados. A determinada altura, o arguido tentou defender-se referindo que nunca havia visto sangue e que, como tal, estava inocente. “Não viu o sangue porque fez tudo a partir da secretária”, apontou Eva Koralnik. Adolf Eichmann foi condenado à morte por enforcamento.

18 Jan 2019

As memórias de um homem “com uma lucidez extraordinária”

[dropcap]O[/dropcap] livro de Morishima Morito foi publicado pela primeira em 1950 e, até ao ano passado, não havia qualquer tradução para outra língua estrangeira. Coube à japonesa Yuko Kase realizar a tradução da obra. Paulo Ramos, editor do livro, afirma que o embaixador “revela uma lucidez extraordinária e mostra-se contrário à política seguida pelo Governo militar do seu país”.

Com António de Oliveira Salazar discutiu inúmeros assuntos durante o seu mandato como embaixador. “Durante estas reuniões foram debatidas duas questões principais: a ocupação de Timor-Leste pelos Japoneses e a situação em Macau”, disse Paulo Ramos ao HM.

Em 1946 Morito acaba “desiludido com a maneira como o Governo geria a diplomacia e o Ministério dos Negócios Estrangeiros” e acaba por abandonar a carreira diplomática. Enveredou pela política nipónica, tendo sido deputado pelo Partido Socialista japonês. Morishima Morito faleceu em 1975.

“Pearl Harbor – Lisboa – Tóquio: memórias de um diplomata” teve uma primeira edição sem fins comerciais, sendo que a segunda edição está disponível em livrarias, mas num circulo restrito. A chegada da obra às livrarias de Macau ainda carece de confirmação.

“Este é daqueles livros de que me orgulho mesmo muito de ter editado: pelo conteúdo, pelas revelações e, acima de tudo, pela perspectiva de um grande diplomata sempre consciente de que o seu país caminhava para o abismo”, concluiu Paulo Ramos.

27 Dez 2018

A morte do cônsul e a quase ocupação de Macau pelos japoneses na II Grande Guerra

Em 1945 o cônsul japonês Yasumitsu Fukui, destacado para Macau, foi assassinado por um gangue chinês. A morte esteve ligada a uma tentativa de ocupação de Macau pelos japoneses, que iria servir para a defesa de um possível ataque dos americanos via Hong Kong. Este e outros relatos constam nas memórias do embaixador japonês em Lisboa durante a II Guerra, Morishima Morito, recentemente traduzido para português, e que poderá chegar às livrarias

[dropcap]N[/dropcap]o tempo em que Macau sofria as consequências da chegada de milhares de refugiados de Hong Kong e da China, devido à ocupação japonesa nos dois territórios, ocorreu um assassinato que poderia ter causado um incidente diplomático entre o Japão e Portugal e que esteve ligado a uma vontade dos japoneses de ocuparem Macau.
A história é revelada no livro de memórias do embaixador japonês em Lisboa durante a II Guerra Mundial, Morishima Morito, de nome “Pearl Harbor – Lisboa – Tóquio: Memórias de um diplomata”, e que foi traduzido para português em finais do ano passado. Pedro Ramos, responsável pela publicação e editor da Ad Litteram, garantiu ao HM que já está em conversações com Macau para que a obra possa estar disponível no território.
No livro, ao qual o HM teve acesso, lê-se que “em 1945, no início do inverno, o cônsul Yasumitsu Fukui, acreditado em Macau (…) foi assassinado a tiro por um gangue chinês”, começa por contar Morishima Morito, que enviou posteriormente um telegrama ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) do Japão.
Neste telegrama pedia-se a “emissão formal de um pedido de desculpas por parte do Governo português a propósito deste incidente”, além de uma mobilização “de todos os meios possíveis de busca e detenção dos autores e das pessoas responsáveis pelo ataque e puni-los quando forem presos”. Nesse documento pedia-se também a Lisboa o pagamento de uma indemnização, um valor que seria abatido na dívida cobrada pelo Governo de António de Oliveira Salazar aos japoneses por terem ocupado Timor-Leste.
A ideia para esse acordo partiria do próprio Morishima Morito. “Cheguei à conclusão de que, neste caso, não se deveria exigir uma indemnização ao governo português, porque haveria fortes probabilidades de tal exigência o levar a apresentar pedidos de indemnização pelos actos de violência cometidos pelas tropas nipónicas em Timor.”
Nessa fase, o embaixador chegou a dialogar com Teixeira de Sampaio, secretário-geral do MNE em Portugal, para se dar início às conversações. Quando a II Guerra Mundial chegou ao fim, “o Governo português estava inclinado a propor uma indemnização fosse abatida nas indemnizações de vidas pelo Japão a propósito dos actos que os seus militares tinham cometido em Timor”.

Os motivos políticos

No meio deste processo, chegou-se à conclusão que a morte do cônsul japonês tinha ocorrido por questões políticas, uma vez que este não tinha inimigos no território, recordou Morito nas suas memórias.
“Fukui tinha o hábito de participar todos os dias numa sessão matinal de ginástica organizada pela comunidade nipónica. Nesse dia, ao regressar da sessão, foi assassinado por chineses que o atacaram e balearam.”
Na altura o Governo de Macau chegou a elaborar um relatório sobre este assassinato, que acabou por ser classificado como “um crime comum”, uma vez que ocorreu “durante um trajecto da sua vida particular [de Fukui]”.
“Num caso destes a responsabilidade das autoridades só pode ser invocada por negligência, por exemplo, se o cônsul tivesse sido ameaçado e prevenido as autoridades, pedindo-lhes expressamente protecção, e estas tivessem decidido não tomar quaisquer medidas de vigilância. Porém, não foi este o caso.”
Morito escreve que o cônsul era uma “pessoa cordial e leal que se dava muito bem não só com os colegas e residentes japoneses mas também com a população chinesa em geral”, pelo que “não era possível que alguém tivesse qualquer tipo de rancor contra ele”. Neste sentido, o embaixador defendeu que existiram “motivos políticos bastante fortes” para a morte.
Esses motivos são relevados no mesmo capítulo, sobre uma “conspiração” que estaria a ser preparada pelos japoneses para uma ocupação sobre Macau.
Depois deste incidente, Teixeira de Sampaio avisou os japoneses de que estariam a ocorrer situações que violavam a soberania do Estado português. No telegrama, lia-se que “em Macau, as forças japonesas não avisaram o Governador do território e destacaram o coronel Sawa (chefe dos serviços secretos do exército) que está a formar pessoal”.
Lia-se também que “é do conhecimento público que o coronel Sawa tem andado a prender e a executar chineses sem ter poderes para tal”. “No entanto, tendo em conta a situação actual das relações bilaterais entre as duas nações, o Governo de Macau está a dar um consentimento tácito a estes incidentes frequentes.”
Perante isto, Morito percebeu “pela primeira vez que estava desvendado o mistério do assassinato do cônsul Fukui”, uma vez que depois da sua morte ocorreram “disparos contra as instalações do Consulado-geral do Japão, trocas de tiros entre japoneses e chineses e outros confrontos”.

A tentativa de ocupação

As memórias de Morishima Morito revelam que chegou a existir “um plano do exército japonês para ocupar Macau”, o que levou Teixeira de Sampaio a enviar um telegrama onde solicitava “muito discretamente a atenção das autoridades nipónicas”.
O referido telegrama dava conta de que, em Macau, os japoneses não teriam avisado o Governo do destacamento do coronel Sawa, à data chefe dos serviços secretos do exército japonês, e que estaria a formar pessoal. “É do conhecimento público que o coronel Sawa tem andado a prender e a executar chineses sem ter poderes para tal”, o que, na visão de Teixeira de Sampaio, se tratava “obviamente de uma violação da soberania do Estado português”.
“Tendo em conta a situação actual das relações bilaterais entre as duas nações, o Governo de Macau está a dar um consentimento tácito a estes incidentes frequentes”, escreveu o secretário-geral do MNE. Para Morito, “estava desvendado o mistério do assassinato do cônsul Fukui”, uma vez que, depois da sua morte, ocorreram mais incidentes tal como “disparos contra as instalações do Consulado-geral do Japão, trocas de tiros entre japoneses e chineses e outros confrontos”.
Começa-se então, a pensar na ocupação do pequeno território a sul da China. “Começava a ser discutida com mais insistência a possibilidade do envio de um destacamento militar para Macau, cujo objectivo seria a protecção dos cidadãos japoneses residentes, pois não se podia contar apenas com o Governo de Macau para manter a segurança pública na eventualidade de uma ofensiva militar norte-americana em Hong Kong.”
De seguida, impôs-se um bloqueio a Macau, uma acção que “provocou um grande sofrimento a cerca de 300 mil chineses, cuja vida quotidiana se tornou bastante difícil devido ao aumento dos preços, sobretudo dos produtos alimentares, e à escassez de alimentos no mercado”.
Na visão de Morishima Morito, “poder-se-ia concluir, perante as circunstâncias, que a crise diplomática entre o Japão e Portugal não era tanto a questão de Timor, mas centrava-se nos problemas em torno de Macau”.
O embaixador sugeriu depois o encerramento “imediato da agência do coronel Sawa” e o “levantamento imediato do bloqueio a Macau”. Só depois dessa decisão é que as autoridades japonesas nomearam Masaki Yodogawa como novo cônsul, uma vez que este “dominava bem a língua portuguesa e acompanhara o observador português a Timor pouco tempo antes”. No final da II Guerra, Sawa seria acusado de crimes de guerra e executado pelos chineses.

27 Dez 2018

Japão | Reafirmado compromisso pacifista no aniversário da rendição

O Japão comemorou ontem o 73.º aniversário da sua rendição na II Guerra Mundial, um evento que terminou com o conflito, numa cerimónia em que o primeiro-ministro e o imperador reafirmaram o compromisso pacifista

 

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Japão “iniciou um caminho de respeito pela paz depois da guerra e ajudou a construir um mundo melhor”, disse o primeiro-ministro, Shinzo Abe, num evento realizado no Estádio Nippon Budokan, em Tóquio, perante cerca de seis mil pessoas. Abe sublinhou que “para não se repetir a tragédia da guerra” o seu país deveria “olhar modestamente a História” para manter o seu compromisso pacifista. “Vamos tentar resolver os problemas que geram conflitos e faremos o possível para garantir um mundo em que as pessoas possam viver em paz”, defendeu, acrescentando que este compromisso será seguido pelas novas gerações.

O primeiro-ministro japonês, mais uma vez, evitou mencionar no seu discurso as agressões do Exército Imperial Japonês aos países vizinhos desde o início do século XX, uma atitude criticada pela China e Coreia do Sul, aqueles que mais sofreram com o imperialismo japonês. Sinais de arrependimento foram uma constante no evento desde 1994, mas Shinzo Abe tem evitado incluir tal menção nos seus discursos desde que chegou ao poder em Dezembro de 2012.

Última missão

O imperador Akihito, naquela que foi a sua última participação no evento antes da abdicação prevista para o final de Abril de 2019, enviou os pêsames a “todo o povo japonês por todos aqueles que perderam as suas vidas”. “Revendo o passado com profunda reflexão, desejo com afinco que não se repita a guerra”, afirmou Akihito. “Nestes 73 anos após o fim da guerra, o nosso país tem desfrutado de paz e prosperidade graças aos esforços constantes do povo japonês. Porém, lembrando aqueles momentos difíceis, eu não posso evitar sentir-me emocionado”, disse o imperador, de 84 anos.

Os participantes da cerimónia, entre eles cerca de cinco mil familiares dos mortos durante a guerra, realizaram um minuto de silêncio pelos 2,3 milhões de soldados e 800 mil civis que perderam a vida, uma contabilidade que inclui as vítimas de Hiroshima e Nagasaki.

16 Ago 2018

Elementos do bem e do mal

Jales Coutinho

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]ogo depois da libertação (Janeiro de 1945), um médico e um químico, colegas de cativeiro no campo para judeus de Monowitz, redigem um relatório, provavelmente a pedido dos soviéticos, sobre a organização higiénico-sanitária naquele Lager.

Leonardo De Benedetti e Primo Levi continuaram pela vida fora a dar testemunho dos onze meses ali vividos. Monowitz era um dos cem campos dependentes do centro administrativo de Auschwitz. Era um bom campo, dirá Levi noutra ocasião, por ser um Arbeitslager, um campo de trabalho forçado, e não um de extermínio. A média de vida ali era de três meses. Quando as forças se esvaíam, uma inspeção rápida despachava os homens para as câmaras de gás num campo próximo.

O relatório é publicado numa revista médica em 1946. Mais ou menos por essa altura Primo Levi decide dedicar-se à literatura. Também a escrita testemunhará o que viveram, ele e todos aqueles com que se cruzou. Não mais deixará de investigar os detalhes dessas vidas, para as resgatar do olvido. Igualmente a formação em Química intervirá nessa demanda. No relatório iniciático e em relatos subsequentes explica o funcionamento das câmaras de gás (os chuveiros) e dos fornos crematórios do campo de Birkenau. Pelas válvulas das câmaras, descreve, era libertado o Zyklon B, um pó inicialmente usado para desratizar os porões dos navios.

*

Sam Kean é um exímio contador de histórias da história da ciência. Seja o código atómico, o código genético, o cérebro, o ar que respiramos, tudo lhe vem servindo para coleccionar casos e histórias de exemplo e proveito. Fritz Haber é uma das suas personagens paradigmáticas, por encarnar a dualidade fundamental da ciência, o bem e o mal. Um daqueles casos (frequentes) em que uma descoberta ou invenção brilhante é reconvertida em agente de destruição. Consta que Arquimedes usou espelhos para atear o fogo aos navios dos romanos; dizia-se que a dinamite de Alfred Nobel era apenas para abrir estradas e túneis…

Haber tornou-se mundialmente famoso ao produzir amoníaco com o nitrogénio (elemento 7). Daí vieram os fertilizantes, que salvaram (e salvam) milhões de seres humanos da fome. A história aparece já no primeiro livro de Sam Kean (2010), dedicado à tabela periódica dos elementos químicos, livro de que saiu agora aliás uma edição para leitores jovens (abril de 2018). No seu mais recente livro (2017), dedicado à atmosfera terrestre, o caso de Haber regressa e merece ainda mais atenção.

O ar que respiramos é composto em 78 por cento por moléculas de nitrogénio (uma molécula do gás de nitrogénio tem dois átomos de nitrogénio). Nem sempre foi assim. A primeira atmosfera da Terra era essencialmente hidrogénio e hélio, sobras ainda do (pequeno) big-bang que originou o nosso sistema solar, há 4,6 mil milhões de anos.

Depois, com os planetas rochosos ainda meio pastosos, a (segunda) atmosfera da Terra formou-se principalmente dos gases vindos do seu interior: vapor de água e dióxido de carbono, gases sulfúricos, vapores metálicos. Talvez os constantes choques de asteroides e cometas tenham reconfigurado muitas vezes a atmosfera e o planeta, incluindo os lagos e os oceanos que se formavam; talvez asteroides e cometas tenham acrescentado outros gases à atmosfera…

A terceira atmosfera da Terra formou-se há 2,5 mil milhões de anos. Os choques de asteroides e cometas tornaram-se raros, a crosta do planeta arrefeceu, solidificou em rocha dura. O magma no interior continuou a libertar gases, que se acumulam em alguns pontos e acabam por explodir. Formam-se os vulcões, pelos quais os gases continuam a ser expelidos para a atmosfera, incluindo alguns gases ricos em nitrogénio.

O nitrogénio acumula-se na atmosfera porque os seus dois átomos, fortemente unidos, não se misturam com outros átomos. Apesar de vivermos num oceano de nitrogénio, e de ele ser indispensável em todas as nossas células, o nosso organismo não o consegue assimilar diretamente do ar; como faz com o oxigénio, por exemplo, através dos pulmões.

O desenvolvimento de algumas bactérias capazes de cindir os dois átomos (ligando-os aos átomos de hidrogénio, criando naturalmente amoníaco) estabiliza um ambiente favorável à vida de plantas e animais. Essas bactérias vivem nas raízes de algumas plantas e em alguns tipos de solo, trocando o nitrogénio por outros nutrientes. Os animais metabolizam o nitrogénio alimentando-se das plantas.

Na linguagem colorida de Kean, só no início do século XX uma espécie de não-bactérias foi capaz de fazer o mesmo: produzir amoníaco.

A tentativa de se criar um estrume químico já vinha de meados do século XIX, e foi isso mesmo que uma empresa pediu a Haber em 1905: uma nova maneira de se obter amoníaco, para se produzirem fertilizantes. Comprimindo moléculas de nitrogénio e hidrogénio com pressões centenas de vezes superiores à pressão atmosférica, experimentando metal atrás de metal como catalisador, acertando o nível das altas temperaturas, Haber conseguiu finalmente obter as primeiras gotas de amoníaco.

A industrialização do processo foi entregue a Carl Bosh, um engenheiro químico. A produção de fertilizantes a partir do amoníaco não parou de crescer, até hoje. Como se dizia na altura, Haber conseguira o milagre de transformar o ar em pão.

Ah!, suspira Kean, se esta história pudesse terminar aqui…

Com o início da guerra, Haber entrega-se às tarefas militares. Dirige a produção em larga escala de amoníaco para o fabrico de explosivos de nitrogénio (capturado no amoníaco). Mas tem outros projetos em mãos, um deles o de desenvolver uma arma química superior às dos ingleses e franceses, que desse a vitória à Alemanha. Haber vira-se então para o cloro (17), com o qual produziu e fez testar no campo de batalha vários gases altamente tóxicos, e sobretudo aterradores, como o gás mostarda. Kean diz que o ser humano guarda um medo primitivo à falta de ar, à asfixia por um ar venenoso.

No meio de protestos, e de denúncias pelos seus pares de vários países, com o labéu de criminoso de guerra, Haber recebeu o Nobel em 1919 (de Química, relativo a 2018). Nunca foi formalmente acusado, ao contrário de Bosh, que continuou a boicotar o acesso dos Aliados à tecnologia do amoníaco mesmo depois do Tratado de Versalhes.

Haber dissimulou a sua indústria de guerra, garantindo que estudava maneiras de destruir os gases em reserva ou de os reconverter em pesticidas. Assim se inventou o Zyklon A.

Com a chegada de Hitler ao poder, o destino de Haber estava traçado. Não aceitou ter de despedir os cientistas judeus, ele próprio com raízes judaicas. O seu laboratório foi encerrado e a sua fortuna confiscada. Morreu em 1934, em fuga, tentando que algum país o acolhesse. Daí a uns anos, os nazis tinham desenvolvido a segunda geração do pesticida, o Zyklon B.

*

«Tinha numa gaveta um pergaminho miniatura com caracteres aprimorados que dizia que se conferia a Primo Levi, de raça hebraica, a licenciatura em Química com 110 e louvor. Portanto, era um documento dúbio, semiglória e semizombaria, semiabsolvição e semicondenação. Estava naquela gaveta desde julho de 1941 e novembro já terminara. O mundo caminhava para a catástrofe e à minha volta nada acontecia. Os alemães espalharam-se pela Polónia, pela Noruega, pela Holanda, pela França, pela Jugoslávia, e penetravam nas planícies russas como faca na manteiga. Os Estados Unidos não se mexiam para ajudar os ingleses, que continuavam sozinhos. Eu não encontrava trabalho e estoirava-me à procura de uma ocupação qualquer desde que fosse paga; no quarto ao lado do meu, prostrado por causa de um tumor, o meu pai vivia os seus últimos meses.»

Sexto capítulo. Como todos os 21 capítulos do livro, tem por título o nome de um elemento: “Níquel”. É a tabela periódica de Primo Levi: O sistema periódico, 1975 (Dom Quixote 2017). Lembranças sobretudo do antes e do depois; as do cativeiro estão já essencialmente no seu primeiro livro: Se isto é um homem, 1947 (Livros RTP 2018).

Levi vai arranjar logo a seguir um emprego, o seu primeiro emprego depois da licenciatura, meio secreto, ligado aos militares, numa mina de extração de amianto, que já derrubara uma montanha. Tarefa, analisar os restos das rochas deixados pela extração, para ver se havia algum níquel. Entusiasma-se, pelo menos estava a viver na montanha, faz todas as experiências possíveis. Um leve pensamento que por vezes o assalta, o de estar provavelmente ao serviço da produção de armas para o governo italiano, não o inquieta. Mas o níquel é residual, nada a fazer, senão procurar outro emprego.

Lembra as suas primeiras tentativas literárias, dois contos meio fantásticos (“Chumbo”, “Mercúrio”), cola-os a seguir, ficam aqui «entre estas histórias de química militante». Também «sonhava escrever a saga de um átomo de carbono». Escrevê-la-á muitos anos depois, é o último capítulo (“Carbono”).

Desde 1942 em Milão, os sete amigos de Turim enfrentam agora a realidade. Itália ocupada, juntam-se aos partigiani, três são presos. Em novembro de 1944, Levi está no Lager; o único conto (“Cério”) em que regressa ao cativeiro, ao laboratório da fábrica de borracha sintética, a Buna-Monowitz, local de trabalho para que fora selecionado. Já todos estão à espera dos «russos libertadores», há só que vencer a fome. «Roubava tudo, exceto o pão dos meus companheiros.» Encontra uns pedaços de ferrocério num armário. Descobre que podem servir como pedra de isqueiro; rouba-os, um pedaço de cada vez; molda-os; troca-os por comida.

Anos depois da guerra, já anos 1960, na correspondência comercial da fábrica de vernizes que dirige (penúltimo capítulo, “Vanádio”), aparece-lhe um nome… «Müller. Numa minha anterior encarnação havia um Müller.» Acaba por escrever-lhe, e confirmar, o seu «colega produtor de vernizes» fora o responsável pelo laboratório de Buna-Monowitz. Müller tinha uma boa «(louca!)» opinião sobre a fábrica de Buna (que não chegou a entrar em funcionamento), a fábrica destinava-se a «proteger os judeus». Gostara do livro (o de 1947, edição alemã) que Levi lhe enviara, também tinha umas notas daquele período, queria conversar sobre o passado, encontrar-se com ele…

 

8 Mai 2018