António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFranguinho no churrasco 03/05/18 Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via. Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas. E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco. Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros. Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia. Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê. Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver. Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção. Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se. Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote. Espero que seja falso. Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão. O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca. Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou? Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições? Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal? Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini. A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político. 04/05/18 A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora. Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas: O GRILO O grilo não só de ouvido eu cri-qu´ria sabê-lo não só de gaiola cati vá-lo mas dáctilo grafá-lo copiar seu abc de pobre o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a. Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama. E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia. Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasArcas São um simulacro recente as paredes com orifícios para arrumação que define o nosso «modi operandi» logístico; nada que nos faça já recordar qualquer modalidade de emparedamento: as paredes não ouvem mas muitas falam quando existem demolições e sismos, isto para não abarcar ainda os tectos falsos, os soalhos tapados, toda uma arquitectura de construção acumuladora de coisas que deviam pela sua natureza não ser reveladas. Por isso e ao longo do tempo usámo-las para agrupar elementos, sempre com ferrolhos, fechaduras, como de um cofre se tratasse. Elas eram uma espécie de condomínio fechado tanto pela magnitude das suas proporções como pela sigilosa presença dos seus conteúdos, não havendo habitação que não as tivesse para usos vários que ninguém obviamente ousava indagar. A sua remoção era difícil mas tinha a particularidade de não serem anexos e não estarem escondidas. Esta forma de “arcar” era para os antigos escravos que as moviam com o peso dos seus interiores constituindo assim uma particularidade móvel. E, voltando a algumas, a mais recente e impressionável será mesmo a Arca de Fernando Pessoa, cujas dimensões reduzidas conseguiu englobar a mais vasta obra da poesia portuguesa e páginas inteiras do mais soberbo ensaio. As Arcas têm fundos, não são objectos que simulem apenas uma aparência, e quem anda de um local para outro leva a sua Arca de forma inteira, nem que tenha de deixar as outras peças soltas nos exíguos lugares por onde passa. Uma espécie de outra Arca, a da Aliança, pois ambas continham apenas palavras: uma, o decálogo, a outra – muitas outras – de versos, eram depósitos de palavras de Deus dado que os poetas são receptáculos também dessa voz e não raro vejo-o a acompanhar a sua Arca como o rei David num contentamento estonteante que no nosso poeta era coisa rara. David dançava enquanto ela se movia; Pessoa pensava enquanto ela se mudava mas a beleza era mesmo por que não estavam fixas. E se uma era constantemente preenchida já a outra transportando em pedra a palavra, preenchia os requisitos imutáveis de uma Arca que não se expande. Pessoa deixou bem clara a definição entre Mala e Arca ao analisar Nossa Senhora no seu «Guardador de Rebanhos», que pastores eram estas gentes todas. Claro que em ambos os casos estamos distantes das belas ânforas de bondade uterina. Aqui, entre o que se traz e o que guarda, vai uma longa fila de sucessivos revezes femininos. O feminino tende a juntar muita coisa em espaços fechados – coisas de natureza vária – o que faz que se podendo ser apenas uma mala, não haja tal incómodo, mesmo assim vociferam as línguas que lá também cabe tudo. Mas a Arca onde coube mesmo quase tudo e não era de todo uma Mala, foi a Arca de Noé! Todos sabemos que as diversas alterações climáticas do planeta deram movimentos às águas sempre que a Terra mudava ligeiramente de eixo. Falam-nos disso todas as Civilizações e uma das mais belas constatações é sem dúvida o poema épico da Mesopotâmia «Gilgamesh», a primeira das obras literárias mundiais e que nos dá conta exactamente de um dilúvio, obra esta que tanto influenciou o Gênesis. Hoje esta Arca está no monte Ararat, a de Fernando Pessoa foi vendida e está no Brasil, e a da Aliança crê-se que se encontra debaixo do que é agora o Domo da Rocha o edifício mais sagrado do Islão. Há salteadores para as «Arcas Perdidas», há iniciativas prestes a saírem do seu conforto para as contemplar, fazem-se réplicas, pergunta-se pelas madeiras, mas só as Arcas reencontradas saberão transmitir-nos o segredo das suas funções. A do poeta saiu da sua terra, a da Aliança, está por assim dizer em terreiro inimigo, a outra descansa em ruína entre o Irão e a Turquia. Para réplica temos a «Nau Catrineta», que devia ser um sinal à “navegação” para não fazer esquecer a importância das Arcas. Tal era a semelhança entre a tripulação, que ambas soletravam para mim, algures, a mesma história. – Uma história de encantar! Hoje ouvimos falar em Arcas, mas só as frigoríficas, que é uma adjetivação que tem como fim conservar: mas conservar o quê? Coisas que se estragam. Ora nas Arcas não há decomposição, elas serviam mesmo de grandes salgadeiras, mas o interior delas desvaneceu-se para o frio glacial onde a leitura está rutelada, indicando apenas a espécie dos elementos. E são feias, abrasivas, temíveis, quem se adentra numa dessas industriais pode ficar morto e hirto. Funcionam por electricidade, se ela faltar, uma Arca destas é um depósito de coisas que apodrece, é uma barriga de aluguer para o monstro voraz insaciado que é o consumo, são enfim, a mais degenerativa forma de as nomearmos. Não nos lembramos destas coisas porque “arcamos” com as forças temíveis do grande entulho mundial, nem nos fixamos na desmesura destes imensos objectos, nem consta que tenhamos já Arcas em nossas casas, mas elas foram as componentes mais respeitáveis não só do mobiliário como dos grandes arquétipos Humanos. Hoje guardamos o seu imenso fascínio no nosso imaginário e se as tivermos sabemos como são singulares as suas presenças e como elas contam todas uma história, que começou por um sonho como os antigos enxovais, ao proteger folhas e folhas de papel, de pedras, e de caravanas de animais de várias espécies. As Arcas são ainda uma aliança e todas são sem dúvida – Arcas da Aliança – entre o fazedor e a sua obra, arcar sempre com o peso da responsabilidade movida quando nelas depositamos tantos sonhos. E alguma coisa ficou da mobilidade deste trajecto no «Papamobile» que é uma espécie de trono andante muito semelhante à velha Arca. Arcas, também foi algures um deus que governou a Arcádia, emocionamo-nos perante os «Pastores da Arcádia», a bela obra de Poussin que reflecte tanta coisa… a decifração das palavras tumulares… o prodigioso momento de reflexão das personagens… Esta era ainda a cidade da Idade do Ouro, o mais emblemático mito utópico. «Arcas Encoiradas», um grande romance de Aquilino Ribeiro. «Ouvi contar que outrora», de Ricardo Reis, ardiam casas, saqueadas eram as arcas/ e as paredes/. Caminhemos nestas coisas.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs primeiros cristãos na China [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo lenda, o Apóstolo S. Tomé teria visitado a China no século I, onde dessa data há pedras gravadas com desenhos em baixos-relevos de histórias bíblicas. Já certo é os cristãos nestorianos, após fugirem da Pérsia, terem chegado à China no ano 635, sendo a sua estadia aprovada pelo Imperador Tai Zong da dinastia Tang, onde ficaram conhecidos com o nome de Jing Qiao, Religião Luminosa. É importante dizer que China é um país de Filosofia e não de religiões. Viviam os chineses no Dao, quando há cinco mil anos Fu Xi, o primeiro dos chefes ancestrais da China, explicou matematicamente essa Filosofia do Dao Jia, mas foi com Lao Zi e Kong Fu Zi que, ao sistematizarem as suas cosmovisões sobre a Natureza de Dao, dão a teoria filosófica ao quotidiano viver chinês no século VI a.n.E.. Lao Zi, sobre o espírito da vida e Kong Zi, na governação do país, fizeram-se escolas de pensar no Período dos Reinos Combatentes, durante a dinastia Zhou do Leste. Por altura da existência de Lao Zi e Kong Zi (Confúcio) encontrava-se Sidarta Gautama (conhecido na China por Shakyamuni) a filosofar o Ser Humano e percebendo pela meditação que o sofrimento advém do mundo dos desejos, pelas quatro nobres verdades tentou reorientar o Ser Humano para o estar integrado num todo e só pelo Outro se conseguiria ver, realizando-se assim pela não-forma. O Confucionismo filosofando pela ética e moral do Ser Humano, quando pensado em De (Virtude), tentou criar a ordem na sociedade, tal como mais tarde as religiões tiveram necessidade de o fazer. Com o aparecimento neste país do Budismo no século I, a população chinesa aderiu massivamente a esta religião, já que, pela falta da imagem do Espírito na Filosofia de Dao, o povo nada tinha de concreto para acreditar. Por isso os filósofos chineses, ao perceberem que estavam a perder o suporte dos seus conterrâneos, tiveram que transfigurar a filosofia e reorientá-la em religião. Assim nasceu a única religião proveniente da China, o Dauismo (Dao Jiao), onde se conjugaram imagens budistas para criar um panteão de deuses, expressão das virtudes e seu contrário, de forças mágicas com que os Cinco Elementos lavram o Ser e sem distinção com o mundo, está nesse todo acausal. Se o Budismo rapidamente se expandira no Oriente, para Ocidente não foi capaz pois, como movimento de solidariedade entre a população pobre, teve a enfrentá-lo o Judaísmo, uma Religião reformada (nessa altura) para a competição e guerra. Por isso, a Filosofia a que Jesus estava ligado, foi com Paulo transformada e no Concílio de Niceia, em 325, a mensagem do Cristianismo criada por S. Paulo ganhou ao Jesus histórico dos Alexandrinos.Toppen p nestorianska stelen O inquisidor judeu Paulo de Tarso reorientou a figura histórica de Jesus, sem nunca com ele ter privado. Paulo ao encontrar um imenso movimento ecuménico, que começava a pôr em causa as instituições tanto políticas, representadas no Império Romano, como religiosas, onde os sacerdotes com uma hierarquia hereditária se tinham afastado da procura do Verbo para apenas se representarem a si mesmos e vendo o seu poder a desaparecer, tiveram a ideia de, já que nada podiam contra esse movimento ecuménico, reorientá-lo para a religião do Livro e assim conseguir mais crentes, mas sem misturas. Paulo, que nunca conheceu Jesus, ficou encarregue dessa transfiguração. Assim, subvertendo os valores, criou o Cristianismo como meio de pela reencarnação poder criar uma segunda Religião, onde eram colocados os convertidos, já que os não nascidos judeus não poderiam entrar no Judaísmo. Como era preciso unir os infinitos deuses pagãos num Superior, nada melhor do que escrever a Bíblia, partindo da essência do Livro, aditando novos Testamentos para que houvesse referências próximas, na memória – História. (Esta versão do movimento da História das Religiões monoteístas, por não estar de acordo com o que é normalmente transmitido, poderá causar estranheza e mesmo uma certa reacção negativa a quem, como Cristão, nela não se revê, mas creia que a escrevo sem a mínima ponta de provocação, mas sim, como uma possível visão feita pelas leituras e conversas com outras doutrinas cristãs.) Igreja de S. Tomé Os Caminhos da Seda, que pela Ásia tinham levado a um contacto, a maior parte indirecto, entre as três Civilizações (Egípcia, Indiana e Chinesa), eram percorridos pelos povos que viviam entre a China e as fronteiras com o Império Romano. Nesses caminhos terrestres e pelas rotas marítimas, muitos viajantes se foram aventurando e enriquecendo através do comércio, assim como, muitos monges budistas aproveitaram e partindo da Índia foram espalhar para Oriente a Filosofia de Buda. Já o Cristianismo saiu do Médio Oriente e avançou sobre o Ocidente, sendo S. Tomé dos poucos missionários que partiu para o Oriente em missão ecuménica para evangelizar. Nos anos 50 do primeiro século, coube ao Apóstolo S. Tomé pregar o Evangelho no Oriente e saindo de Jerusalém, navegou depois pelo Mar Vermelho em direcção à Índia. No Oceano Índico, veio ter à Ilha de Socotorá, onde uma tormenta o fez encalhar. Sem barco para prosseguir viagem, aqui ficou a converter e baptizar os moradores da ilha, situada à entrada do Mar Vermelho. Após ordenar ministros do culto para que estes cultivassem e sustentassem esta cristandade, embarcou para o estreito da Pérsia onde cristianizou os Partos, Persas e Medos. Descendo depois pelo Mar Arábico rumou para Kerala, naquele tempo Malabar, no Sudoeste da Índia. Luce Boulnois refere: “Segundo uma lenda registada em Edessa, contada por um embaixador indiano que por aí passou a caminho de Roma, S. Tomé, um irmão gémeo de Cristo, também ele carpinteiro, tinha sido comprado por Abbanes, um mercador indiano, por três libras em lingotes de prata. Levado para a Índia ficou ao serviço do rei indiano Gondopharès, a quem S. Tomé de forma miraculosa construiu um palácio, convertendo assim o rei. Pregava o celibato cristão e um príncipe ao sentir que S. Tomé desviava os seus súbditos dos deveres de procriação, mandou-o matar.” “Outra lenda, indiana de Kerala, de Travencore e de Cochin, onde uma comunidade cristã remonta à chegada deste apóstolo fala do desembarque que S. Tomé fez em Malankara, próximo de Cranganore. Aí pregou e baptizou os habitantes locais, onde se construiu sete igrejas e ordenou dois sacerdotes antes de ter partido para Meliapor (Mailapore, actualmente arredores de Madras, hoje chamada Chennai). Em Meliapor, na costa de Coromandel, converteu o rei e o povo e partiu para a China. Depois voltou a Meliapor onde a inveja de brâmanes o teriam apedrejado e trespassado com uma lança.” Morreu no ano de 72, segundo a lenda, em Meliapor, onde foi sepultado. Se o apóstolo Tomé parece ter sido o primeiro a pregar na Índia, outra das hipóteses é a de o Cristianismo se ter espalhado só posteriormente pela Ásia no Oriente a partir da Pérsia e que o nome de cristãos de S. Tomé provenha do Mâr Tomé, que viveu no século VIII e não do Apóstolo. O que parecia ter poucas hipóteses de ser uma realidade, a lenda sobre a chegada à China de S. Tomé ganhou uma nova actualidade quando Wang Weifan, mestre estudioso da História do Primitivo Cristianismo assim como de Arte e Cultura Chinesa, ao analisar as pedras em baixo-relevo de dois túmulos da dinastia Han do Leste (25-220) encontradas em Xuzhou, na província de Jiangsu, nelas descobriu representados episódios Bíblicos. Se os estudos provarem que Wang Weifan tem razão, então a chegada do Cristianismo à China recua para o final do século I, quinhentos anos antes do que até hoje se pensava. Os nestorianos na China Existiam comunidades cristãs espalhadas pelo Sul da Índia e evangelizadas por S. Tomé quando os nestorianos se espalharam pelas costas do Decão, Índia e pela Ásia Central até à Mongólia. Havia outros reinos cristãos (os monofisistas) situados na Geórgia e Arménia, que se tinham separado da Igreja de Roma no Concílio de Calcedónia em 451. A primeira referência a nestorianos na China é do ano 552 quando, durante o reinado bizantino do Imperador Justiniano (527-565), dois monges nestorianos persas, que viveram longo tempo na China, daí conseguiram sair com os segredos da produção de seda. Certo foi os nestorianos terem ficado a viver na China desde a aprovação do Imperador Tai Zong (626-649) no ano de 635, como consta numa estela encontrada perto de Chang’an (Xian) e que actualmente está no Museu da Floresta de Estelas. Foram os padres jesuítas portugueses Álvaro Semedo (1586-1657) e Manuel Dias Júnior (1574-1659) quem traduziram a estela, que se revelou nestoriana e que os precedia mil anos. Na Memória da Diocese de Macau vem o seguinte: “O célebre monumento syro-sinico de Si-ngan- fú (西安府, Xian fu) descoberto em 1625, e interpretado em linguagem chinesa vulgar pelo missionário jesuíta português P. Manuel Dias, dá claro testemunho da existência do Cristianismo na China, apresentando uma narração sumária da propagação do Evangelho neste país desde o ano de 635 até 781 da nossa era. Efectivamente, em 1625, provavelmente em princípios de Março, foi desenterrada uma grande lápide de pedra, no arrabalde ocidental de Xian, no Shaanxi” que havia sido erigida pelo nestoriano Zazdbozed, do clero secular, natural da cidade de Balk no Turquestão, na reunião anual do Inverno de 780-781, como se vê do final da inscrição nela gravada: “Erigida no segundo ano do período Kien-Chung (781) da grande dinastia Tang, estando o ano em Tso-yo, no sétimo dia do primeiro mês, que foi Domingo”. No topo da lápide está uma cruz, sob a qual foram gravados nove caracteres em três colunas que dizem: “Monumento comemorativo da nobre lei de Ta-Tsin no Império do Meio”. Segundo o texto, Alopen chegou a Si-ngan-fu (Xian) em 635, vindo do país de Ta-Chin (大秦, Daqin era o nome que os chineses davam ao Império Romano) provavelmente a Pérsia; o Imperador Tai-Tsong (太宗, Tai Zong) enviou o seu ministro Fang Huang ling a recebê-lo e conduzi-lo ao palácio e, depois de se convencer da verdade da sua religião, favoreceu a sua propagação e por ordem do mesmo Imperador, foi construído, em 638, um mosteiro nestoriano; outros se construíram no reinado do seu sucessor Kao Tsong (高宗, Gao Zong) (650-683) e Alopen foi promovido a Grande Senhor Espiritual, Protector do Império. A placa de Si-ngan-fu tem gravada uma inscrição com 1780 caracteres”, segundo o Padre Manuel Teixeira. A História dos Nestorianos teve a sua origem em Antioquia, cidade na actual Turquia. Na Escola de Antioquia formou-se Nestorius, que foi Patriarca de Constantinopla de 428 a 431. Esta Escola advogava a separação das duas Naturezas de Cristo, a humana e a divina, e por consequência consideravam que Maria, a Nossa Senhora, não era Mãe de Deus, mas do Homem, Jesus. Tal ia contra o que os Alexandrinos defendiam. A Igreja de Alexandria era de tradição neo-platónica e fazia a interpretação simbólica da Bíblia, contemplando mais o Verbo Divino do que a humanidade de Cristo. O pensamento grego fundiu-se com a herança da revelação cristã e Cirilo venceu os nestorianos, em 431 no terceiro Concílio em Éfeso, com a tese (monofisista) de que em Cristo há uma só pessoa numa dupla Natureza (humana e divina). Era a Natureza de Cristo que se debatia no Concílio de Éfeso, ao qual Nestório não compareceu, tendo prevalecido a doutrina da Natureza divina de Cristo, defendida pelo Patriarca de Alexandria, S. Cirilo. Condenado pelo Concílio de Éfeso, o Patriarca de Constantinopla, Nestório foi excomungado em 431 e deposto pelo Imperador exilou-se no Egipto. A sua doutrina expandiu-se para Oriente, de Edessa, os nestorianos daí expulsos fugiram para a Pérsia. Ctesifonte (uma das quatro capitais persas) tornou-se o seu principal centro, que aceitou estes cristãos fugidos do Império Romano. Após Roma ter abraçado a Religião Cristã, na Pérsia os cristãos passaram a ser considerados inimigos e começaram a ser perseguidos. Muitos foram mortos, o que os levou a empreender nova viagem para mais longe, passando a Igreja do Oriente para a Índia e pelos países da Ásia Central, chegaram ao Extremo Oriente. Vivia o Nestorianismo (Jing Qiao) na China há mais de dois séculos quando, a 30 de Setembro de 845, por decreto do Imperador Wu Zong da dinastia Tang foram proscritas no país as religiões estrangeiras. Tal se deveu sobretudo aos templos budistas serem detentores de imensas fortunas, quando os cofres do Estado estavam na penúria. Já os cristãos nestorianos, referenciados na estela do século VIII enterrada pouco depois do Decreto de proibição das religiões, viram-se forçados a fugir para as estepes do Norte, juntando-se a algumas tribos mongóis que, por volta do ano mil foram por eles convertidas. As tribos mongóis foram unificadas por Gengis Khan e mais tarde tomaram o poder na China, como dinastia Yuan. Os irmãos Polo encontraram-se com nestorianos quando chegaram em comércio ao reino dos mongóis. Uma pedra com o nome de quatro monges nestorianos, encontrada no templo budista Yunju, no distrito de Fangshan, subúrbios de Beijing comprova a sua estadia aí, assim como um documento árabe que fala de dois monges vindos de Beijing que chegaram à Pérsia em 1275. As comunidades de nestorianos desapareciam rapidamente das costas indianas, substituídas pelas dos muçulmanos. Nos finais do século XIII, quando a paz foi restabelecida com Roma, já os nestorianos estavam a sucumbir, atacados pelo Islamismo, assim como as igrejas nestorianas na Síria e Pérsia. No entanto continuaram a existir comunidades na Índia e China até ao século XVI.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasNem em dia, nem em dia nenhum [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u pequenina e sempre com otites. Mais tarde amigdalites. Antes chorava muito, depois era tudo mais subtil e estóico, até aparecerem gânglios visíveis, febre. Assim. Numa dessas, entra-me a minha mãe abruptamente em casa de enfermeira amiga em punho, para as terríficas injecções de penicilina. Terror. Gritos. Eu, ínfima no canto mais oposto do quarto: puta, puta…Eu sabia que era uma ofensa terrível, já então. Mais tarde comecei a pensar que qualquer pessoa tem o direito de vender o que tiver e lhe pertencer. Mesmo a alma. Tudo limpo, visível. Quanto a palavrões, palavras grossas, sempre fui púdica e reservada. Mas só a partir daí. A percentagem dos que disse, mesmo para mim, situa-se claramente na segunda metade da última década. Quando a demência próxima me começou a impregnar de desespero e revolta acima de qualquer tempo ou medida. Ou quando dei a mim mesma o direito de desconstruir, desabafar, destruir o que me consome. Mas ali, era no fundo também o desespero inglório e impotente, face ao poder inevitável. De manusear a agulha. E para bem da infecção. Ainda hoje sou assim com tratamentos de choque. Eu queria mimos e que ela me dissesse, dança que vai passar. Que me desse um beijinho para passar. O beijinho para mim e a agulha para o resto. Talvez um sorriso de uma, da outra, ou de ambas. Mas a enfermeira era impenetrável e só queria apertar o êmbolo e ir à sua vida. Claro que essa enfermeira ficou para sempre uma personagem a evitar. Eu, muito pequenina, sem saber como contornar o orgulho e a vergonha. Os dois. E a ofensa. A dela e a minha. E depois a história do cão. Ou antes. Não sei.. Mas acho que foi depois. Nós tínhamos um cão, ela tinha um filho. Os dois cruzaram-se no azar de uma escada e do mau feitio do bichinho. Que de soslaio, fitou de cabeça baixa e pensamentos insondáveis, à passagem do que descia e dos que subiam, num encontro de acaso, em que só um degrau em comum e patas acima, pernas abaixo, se cruzaram dois indivíduos pequenos e de espécies diferentes. Acabou na contracção da mandíbula de um na canela de outro. Jesus… E porque a raiva, isto. E porque as vacinas contra a raiva, aquilo. E vacinas em dia não havia. Nem em dia, nem em dia nenhum. Nunca houvera. O cabo dos trabalhos e o currículo a avolumar. O meu, o da enfermeira, o do cão, o do miúdo abocanhado. Santo Deus. Não era raiva. Era só um mau feitio aleatório. E o desconforto a aumentar. É assim às vezes, com as pessoas. Peugeot, foi o primeiro carro que tivemos, lindo de morrer, nos anos sessenta. Vindo dos cinquenta, finais de quarenta. 203. Em segunda mão e mesmo à época já um carro quase démodé. Primeiro negro e depois cinza azulado ou vice- versa. Estacionado à frente da casa de tios do lado paterno. Ou em frente, mas do outro lado da estrada, da casa de tios do lado materno. O que vai dar ao mesmo. E em fundo, Beatles. A minha música de infância. Ouvida na rádio. E a rádio em todos os lugares, em pano de fundo. A ninhada era de meia dúzia mas aquele mais peludo, ruivo e um pouco frisadinho, uma raposinha minúscula, foi connosco no carro e para casa. Vindo de casa dos tios paternos e baptizado com o nome do carro novo, que é como quem diz, pelos tios maternos. Como se sintetizam dois ramos de familiares, um cão, um carro, e os Beatles. E, assim de mansinho e de caminho, falar da tia Angélica. Essa tia que tinha uma cadela e uma ninhada de meia dúzia de rafeirinhos, entre os quais escolhi o mais peludo. E um marido violento, e três filhos, e casas pequeninas, e mais tarde vários netos. Lindos de vários tons. Uma sibila pequenina que falava com cães, gatos, passarinhos e anjos. Na verdade acho que falava com tudo o que existia e não existia. E nem era que falasse muito. Vida sofrida. Mas sempre um fundo de riso por detrás dos olhos. E nas comissuras da boca. Alguma ironia. Sibilina, lembro-me. Mas de uma enorme ternura. Só muitos anos depois me dei racionalmente conta de como era condizente com o nome que tinha. Na altura só sentia. Quando deixei de lhe ouvir o nome como tal, de sonoridade metálica, e lhe reparei na força da adjectivação. E o encantamento com que a lembro desde que partiu, fechou-se num círculo doce e perfeito. E ficou Peugeot. Assim. Durante anos não sabia como lhe escrever o nome nas cartas para África, que na versão dita pelo tio, não soava ao que dizia. E mais tarde fincou o miúdo. E aterrorizava de morte o meu amigo Tó-Jó do andar de baixo. O que tornava a circulação difícil no prédio, com cenas emotivas e a porta fechar-se com força para descermos. Mais folclore que realidade. E o contacto físico nunca se deu, afinal. E havia pouco depois um gato da mesma cor e também com malhinhas brancas. E eram amigos de infância, e passavam ambos os dias a espreitar a rua em cima de um banco de marceneiro do avô que vivia na varanda. O banco. Ambos com as patinhas na balaustrada de mármore da varanda das traseiras, poucos centímetros acima do dito banco, e um dia caíram do terceiro andar. Um dia, um, outro dia qualquer, sem nada a ver, o outro. O gato não voltou. O cão, por entre gritos de transeuntes, este cão parece que caiu daí de cima…pois, não seria do céu, estarrecido do voo, encharcado como se saído do banho – os nervos – de cabeça baixa, queixo esfolado e aquele seu ar meio zangado meio infantil, deu a volta ao quarteirão a correr e veio para casa. E o que haja de filosófico aqui, nada. Ou talvez só a queda dos bichos. Do terceiro andar. Não do céu. Não como revelação ou descida aos infernos. Mas queda no mundo, talvez não a do gato. Fuga ou distracção. Uma gata gira que passou em baixo, a natureza e o apelo. E a do cão, não sei foi queda também. Talvez se tenha atirado ou caído. De fúria. Que tinha mau feitio. Um caiu e não voltou. O outro caiu e voltou. Por razões que se prendem com as razões que os fizeram cair ou mergulhar e que nunca se saberão. Como do café com leite na caneca da manhã, nunca se saberá se quer ser bebido, e sabendo-se que a questão não se coloca porque não se trata de um ser mas de uma coisa sem atributos ontológicos, reflexo na sua existência material e só, da vontade que é minha, poupa-se grandes dilemas. Até aí. Daí para a frente no dia, é difícil não adoptar a posição do outro lado do espelho. E nessa altura, por isso paradigmática ainda não encetara esta obsessão por entender as coisas. Este enorme porquê que me invade a alma e me ocupa sem produto que valha a pena. Até àquele dia em que me caiu a ideia de morte em cima. Uma noite. De aniversário. E tudo se desfez num rumo de altos e baixos em função dessa noção implícita, umas vezes, explícita e avassaladora, de outras. O que é esta realidade que procuro entender exaustivamente, para além dos factos? Factos, acontecimentos que sabem bem ou que fazem mal. Factos, como interruptores de sentimentos, mas que parecem estar ligados a circuitos errados. Os interruptores e os sentimentos, diferentes circuitos. Sempre. Não ligam e desligam senão a emoção certa, que é contrária aos sentimentos ou de sinal oposto. Por vezes. Ou ao querer. Começa a doer esta possibilidade de leitura por camadas, sentidos, interpretações e causas. Os porquês que atormentam para além da simples verificação dos factos objectivos, escorreitos e inequívocos. Factos, deixei que ter vontade de passear o meu cão. Moí-me de remorsos pelos anos fora. Hoje, como gostaria de ter um cão que pelas suas necessidades básicas me arrastasse todos os dias naquelas longas caminhadas que me fazem bem à alma. Para despoluir de tantas ideias. De tantas palavras. E depois, há a questão dos sonhos. Ao longo da vida sonhei deveras comovida que voltava. Ele. Perdido um dia mais do que outros nas ruas, e que não voltou. Mas voltou em sonhos muitas vezes. E é isso que os sonhos têm de diferente das fantasias. É que mesmo por dentro da ficção do sonho, sabe-se que um cão não volta passados vinte, trinta anos. Não volta passados quarenta anos. Um dia passou a colocar-se, em termos oníricos a sensação difusa de uma camada de realidade, se nos sonhos se pode chamar-lhe isso Sabe-se isso no sonho embora ele esteja ali, a voltar dos confins da memória, do remorso e das ruas. Porque um dia se deixou de ter paciência para o acompanhar à rua. E ele ia e vinha. Ia e vinha. Ia e vinha, e demorava numa volta cada vez mais larga, talvez a descobrir mundo. E ia e vinha e ia e vinha. E um dia não veio. Só voltou, bem mais tarde em sonhos.