Rosa Coutinho Cabral Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuConto 2 Tenho um olimpo de bolso onde moram o clássico, o moderno… Coro: Sou solidário: como, sem alguém que o assista, sem um sócio que o esguarde, infeliz, sozinho sempre, padece de moléstia que não cede… Neoptólemo: Começo pelo início: somos gregos, se é isso o que desejas conhecer. Filoctetes: Que som subtil! Depois de tanto tempo, ouvir desse rapaz a doce música. Estou deitada de costas de olhos postos no céu, como se ele fosse o grande atlas de todas as cidades que planeei conhecer nestes contos. O céu, não sei onde termina, mas sei que é do tamanho do meu olhar. Lá se projectem as imagens do Olimpo, que contemplo da humilde plateia planetária. Está tudo ali desde a primordial angústia, o primitivo som, o original risco, a grávida palavra, o primigênio grão semeado, o inconfudível símbolo orto-gráfico, a paradigmática sedentarização, a linguagem que nos permite, entre outros, ao trágico e à cidade. Anseio que se soltem na tela do destino todos os pequenos olimpos que os humanos guardam no bolso, libertando performativamente a figuralidade, entre passados, presentes, e futuros, na valsa da realidade que nenhuma linguagem pode captar totalmente. O baile, devassando poeticamente a experiência, remete as obras para a empiricidade e para as imagens, que se instalam na crosta volúvel e caprichosa da Terra, o singular acontecimento que nos move no mundo. Em profundidade, a cena ganha a cor dos belos cabelos de Ariadna quando entrega a Teseu o fio que, mais do que salvá-lo no labirinto, o salva da natureza que ela representa e, traindo-a, o herói afirma a isonomia e a polis. Vendo isso, Dionísio, deus da potência e do irracional, casa-se com a princesa abandonada por Teseu e dá-lhe filhos. Mais tarde, mata-a, projectando para sempre no céu a constelação da figura trágica de Ariadna. O labirinto pode ser Dionísio, mas pertence ao touro -“besta que desatrela a vida e que a afirma na legitimidade da ocupação do seu labirinto”- como segreda Deleuze. Certo é ser um lugar sempre inaugural: cada vez que se avança, entre figuras, fantasmas e corpos, a natureza incontrolável da experiência renova-se nas entradas, corredores e clareiras, onde afinal não nos perdemos, mas retornamos nietzscheanamente. Numa voluntariosa afirmação, Sófocles, o cidadão da polis grega, e Godard, saído da multidão contemporânea, entram em cena, opondo dramaturgicamente a cidade que ganha, à cidade que nos perde. A imagem é refractada e desfocada pelo choro que inquieta as urbes quando a tradição se quebra, e novas linguagens emergem. A Tragédia, quando a cidade está na aurora da sua positividade com o nascimento da Polis Grega; o Cinema, quando a cidade moderna enfrenta o seu primeiro momento de crise e negatividade, como é a Paris de Baudelaire e Benjamin. Neste devir solta-se um testamento que não é destinado ao futuro, como desconfia Char, mas deixa herança desde que romperam na terra a divisão entre os que veem e os que actuam, criando uma comunidade específica: a dos espectadores, separados fisicamente do palco ou do ecrã. A luz baixa, e dois offs – que os textos também os têm – juntam-se à cena. Aristóteles (OFF): A plateia é a comunidade de cidadãos… Barthes(OFF): … que provavelmente conhecem as tragédias que vão assistir. Como se uma grande faca tombasse sobre a experiência, a mão grega corta ontologicamente com a totalidade mítica do mundo. Numa paideia cívica sem precedentes a Tragédia exorta a universalidade racional da acção humana e persuasão dos cidadãos pela palavra, no espaço público da polis. Vernant e Barthes confirmam que as perguntas dramatúrgicas expressam o novo quadro cívico e se distanciam das antigas respostas míticas. O fio de Ariadna ligava, afinal, dois mundos cuja separação foi mobilizada politicamente na Tragédia, celebrando com os contemporâneos a superioridade do novo mundo grego. Como um tremor de terra, 2000 anos depois, a crescente velocidade tecnológica acelera e instabiliza a experiência, esfacelando o espaço público clássico, actualizando um modo de ver adequado à vivência moderna: tempo descontínuo, espaço fragmentado, montagens rápidas de imagens e sons, numa estética do choque. O cinema é a escola desta nova forma de percepção, “aquilo que os gregos designavam por estética”. Benjamin deixa claro que a “percepção da colectividade humana transforma-se ao mesmo tempo que o seu modo de existência”. Benjamin(OFF): A plateia do cinema é uma multidão que perde a capacidade de contemplação e se conforma em ser um colectivo de espectadores distraídos e alienados. Num mesmo lance, defrontam-se as raízes do clássico e do moderno e estremeço porque sou ávida desta dilogía em que balança a positividade e negatividade da civilização ocidental, desde o seu berço à sua forma contemporânea. O cinema representa o “inconsciente visual” da sua época, como “um caleidoscópio dotado de consciência dos “perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” e a função política do cinema, “não está em condicionar espectadores distraídos, mas em descondicionar espectadores manipulados. O grande cinema é crítico, não mobilizador”, palavras de Benjamin com ressonância criativa em Godard, que se inspira também na vontade do filósofo de conceber uma obra a partir de arquivos, citações, montagem, constelações, e que se ergue de novo no palco deste meu pequeno olimpo. Godard: o cinema foi a fábrica do século XX e do mundo contemporâneo! Vernant: A tragédia foi a fábrica do século V e do mundo grego! Do homem trágico que morre de temor de não viver na cidade. Num interlúdio trágico as figuras valsam neste céu de veludo que somos nós a pensar. Porque o pensamento está sempre a recomeçar.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasJean-Luc Godard na reabertura da Cinemateca [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Filme, que conquistou a Palma de Ouro Especial quando estreou na recente edição do Festival de Cannes 2018, teve até ao momento em todo mundo poucas projecções e continua a reflexão do realizador sobre o cinema e o estado do mundo. É de referir que em 1968 – a ano fronteira na história das mudanças sociais e políticas em Paris que inflamou o mundo moderno – Jean-Luc Godard com François Truffaut, Polanski, Milos Formam, impediram a abertura do Festival que nesse ano foi cancelado. Talvez a prova de que o cineasta é também um performativo, o grande performativo, diga-se na arte contemporânea. Na sessão completamente esgotada, vi o filme sentado nas escadas , seguiu-se com continuado interesse o filme guerrilha, trabalho de montagem, sobreposição de imagens e sons, que o como o próprio filme explicita é construído com “Textos, Filmes, Quadros, Música, Todos Eles”. “O elenco inclui títulos de livros, escritos, filmes, pinturas, músicas, canções, fotografias, autores, um motor de busca. Em off, continua a ouvir-se Godard. A última afirmação é “e mesmo que nada tivesse sido cumprido como nós havíamos esperado isso em nada alteraria as nossas esperanças” [1]. São muitos os filmes neste filme, o que não é surpreende num cineasta cujo trabalho assenta na citação, na auto-citação, no cinema como matéria do próprio cinema, que de forma radical assume a frase Elian Kazan, “o cinema é a fala do mundo” e a asserção de André Bazin quando afirma que o“ cinema é uma arte impura” . O que faz JLG na sua mesa de montagem, como cria, organiza a produção de sentido nas suas mais recentes obras? “às imagens satura, pinta, queima, imprime outro ritmo, retoma, sobrepõe, dilata, comprime, interrompe. Sacode, até bruscamente, fazendo saltar os formatos de imagem. Aos sons sacode, a mesma brusquidão nas passagens de uma a outra pista da banda, desregula no volume, vozes ora sussurradas, ora baixas, ora altas, ora para se ouvirem em grande plano, ora para se ouvirem em plano de fundo, ora um ora duas ora uma em duas a fôlegos diferentes. E interrompe, entrecorta com silêncios momentâneos mas recorrentes, fá-las conviver com sons docemente musicais ou estridentes como bombas. [2]“ São muitos os filme citados; Jonhy Guitar, Le Petit Soldat, Young Mr. Lincoln, Le Mépris,Eisenstein, Ophuls, outros, vários, todos convocados retrabalhados, misturados com outros textos em outras sequencias produzindo novos sentidos novas reflexões. O filme estrutura-se em cinco partes, como cinco são os dedos da mão, e como a mão pode e é, afirma-o Godard, o único território da liberdade e morte do homem. Importa referir que a Guerra, o sangue, a luta, a violência percorre todo este “Livre D´Image”, a guerra está aí, é dito várias vezes, não vão os espíritos mais adormecidos acordarem em sobressalto e sem aviso prévio. A parte 1, chama-lhe “Remakes”, e em variações Rima(s)kes. A parte 2, “As Noites de São Petersburgo”, título do romance de 1821 de Joseph de Maistre. A parte 3, tem como titulação “Estas flores em carris ao vento confuso das imagens” do livro da Pobreza e da Morte de Rilke. A quarta – “O Espírito das Leis”. Tratado político de Montesquieu em 1748 (a capa da edição francesa surge num dos planos). E a quinta , chama-lhe “Região Central” centrado não sobre a região desértica do Canadá como no filme de Michael Snow, mas centrado na Arábia, petróleo e dominação, a parelha com que se tem constituído o mundo no séc. XX e ainda , em grande parte, no séc. XXI. https://www.youtube.com/watch?time_continue=22&v=t2QU_P5ubjw [1] Folha de sala da Cinemateca / texto assinado por Maria João Madeira [2] Folha de sala da Cinemateca / texto assinado por Maria João Madeira