A actualidade de “Terra em transe”, de Glauber Rocha

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m 1964 um regime militar derruba o governo democrático do presidente João Goulart e institui a ditadura. Em 1967, Glauber Rocha filma Terra em Transe – que nesse ano vence o Prémio da Crítica no Festival de Cannes – e traça uma estranha fábula acerca do Brasil, que pode ser estendida à América do Sul.

O país desta fábula chama-se República de Eldorado. É um filme político, claro. Mas é também um filme de uma beleza sinistra. O preto e branco do filme parece nunca nos mostrar o seu lado branco. O branco aparece sempre carregado de algum cinzento. O céu parece nunca brilhar. Aqui, não reconhecemos o país do sol, como por muitos é conhecido. O filme não tem as cores da terra do sol, tem as cores da asfixia, as cores de uma força militar imposta. Não pelo preto e branco, mas pelo preto e branco deste filme de Glauber Rocha. Se na semana passada já tínhamos falado aqui de um preto e branco especial, o de Jim Jarmusch em Stranger Than Paradise – e também no posterior Down By Law –, onde o branco e o preto contrastam no seu esplendor, acentuando os branco e preto, apesar do granulado da película, este preto e branco de Glauber também se destaca mas nos antípodas do filme de Jarmusch, os branco e preto quase se esbatem num eterno e omnipresente cinzento.

Tudo é ou parece ser cinzento. O único branco do filme é o casaco do vereador populista Vieira (José Lewgoy). E os planos de Glauber são asfixiantes, a despeito dos horizontes tropicais que de quando em quando fecham as cenas filmadas nos exteriores. A forma em si mesma, o modo como o filme é filmado, faz-nos sentir presos, fechado naquele Eldorado que parece não ter solução. O espectador não pode deixar de se sentir parte daquele país, parte daquele modo claustrofóbico de viver. E este não ter solução, acerca de Eldorado como metáfora do Brasil, pode ser estendido a toda a América do Sul.

Recentemente na Colômbia, numa retrospectiva sobre a obra de Glauber Rocha, no Festival de Cinema de Cartagena, o FICCI (Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias), a jornalista portuguesa Cláudia Marques Santos conta-nos que à saída da exibição de um dos filmes, um jovem aluno de filosofia, de 21 anos, dizia: “Eu diria que o cinema do Glauber Rocha é muito importante, permite-nos olhar para nós mesmos, permite que nos vejamos ao espelho. Nós vivemos actualmente a violência. Não é apenas memória.” (Jornal Público, 20 de Maio de 2018) E se esta actualidade é verdadeira na Colômbia, muito mais a é no Brasil. Infelizmente, para além das qualidades poéticas dos filmes de Glauber Rocha, as suas alegorias políticas e sócias continuam actuais. Ainda na reportagem da jornalista portuguesa, podemos ler o que uma jovem estudante de cinema, também 21 anos, diz à saída de outro filme de Glauber: “Rocha representa muitas coisas que existem também na Colômbia: a corrupção, muitos políticos falsos, muitos lobos vestidos de ovelhas.” (Ibidem) E neste filme, Terra em Transe, os interesses acima de qualquer suspeita atravessam o filme de cabo a rabo. Mas para atentarmos melhor na actualidade do filme, veja-se esta sequência, já na parte final, em que Sara (Glauce Rocha), que é professora e revolucionária, dialoga com Paulo Martins (Jardel Filho), que é jornalista, poeta e amigo do tecnocrata Porfírio Diaz (Paulo Autran), numa rua, no meio dos populares e de alguns políticos:

“ Sara: Veja, Vieira não pode falar.

Paulo: E por mais de um século ninguém conseguirá.

Sara: Você jogou Vieira num abismo.

Paulo: Eu? O abismo está aí, aberto. Todos nós marchamos para ele.

Sara: Mas a culpa não é do povo. A culpa não é do povo. A culpa não é do povo.

Paulo: Mas saem a correr atrás do primeiro que lhes acena com uma espada ou uma cruz.

Sara: (segurando um cidadão) O povo é Jerônimo. Fala Jerônimo. Fala.”

Faz-se silêncio. O filme, ele mesmo, fica mudo por um curto instante, até que um dos políticos se aproxima de Jerônimo, lhe põe uma mão sobre o ombro e diz: “Não tenha medo, meu filho! Fale! Você é o povo.” E volta a afastar-se, deixando a câmara sobre Jerónimo. E o plano vai abrindo e mostrando aqueles que o envolvem: a igreja, os militares, os políticos, os idealistas revolucionários. De repente, ele fala directamente para a câmara: “Eu sou um homem pobre, um operário. Sou presidente do meu sindicato. Estou na luta das classes. Acho que está tudo errado. Eu não sei mesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem do presidente.” Neste momento, Paulo aproxima-se dele por trás e tapa-lhe a boca. Dirige-se para a câmara, ainda com a mão na boca de Jerônimo, e diz: “Estão a ver o que é o povo? Um imbecil. Um analfabeto! Um despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?” Hoje, esta cena é arrepiante. Oracular. Hoje, é impossível não ver em Jerónimo, Lula da Silva. Aquele homem do povo, analfabeto, dirigente sindicalista com a boca tapada é Lula da silva. “Já pensaram um Jerônimo no poder?” E esta frase continua actual! E à beira das eleições no Brasil, não podemos deixar de tremer ao escutar esta frase “Mas saem a correr atrás do primeiro que lhes acena com uma espada ou uma cruz.”

A cena de Jerônimo com a boca tapada pelo jornalista e poeta Paulo é posteriormente interrompida por um anónimo do povo (o actor Flávio Migliaccio), com a camisa toda rasgada e de pé descalço, que diz, também em forma de oráculo: “Um momento! Um momento, minha gente! Um momento! Eu vou falar agora. Eu vou falar. Com a licença dos doutores, seu Jerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo. O povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar.” É de imediato interrompido e acusado de extremista. É morto.

Em Eldorado é clara e assustadora a diferença, o abismo que separa os ricos dos pobres. Os primeiros nas suas torres de marfim e os últimos de pés rapados. E à volta de todos uma profunda ignorância. A ignorância, a fome, a violência. Escreve a jornalista Cláudia Marques Santos, infelizmente com acerto: “Nunca ter vindo à América do Sul é já ter vindo à América do Sul. Graças ao cinema de Glauber Rocha.” (Ibidem)

O filme foi evidentemente proibido durante a ditadura militar. E, em Portugal, também foi proibida a sua exibição até à queda da ditadura salazarista em 1974. Eldorado, infelizmente, continua a assombrar-nos. Inesquecível, o rosto de Paul Autran, com os cabelos ao vento, bandeira negra numa das mãos e um crucifixo na outra. Um filme magistral, de uma beleza sinistra, que faz corar a ética, depois de forçá-la a ver-se a si mesma ao espelho. Actual como a infelicidade.

26 Jun 2018