João Santos Filipe Manchete SociedadeEstudo | Estudantes de Macau valorizam ética, moral e respeito pelas opiniões Um grupo de cinco investigadores questionou os estudantes universitários em Macau, Hong Kong, Taiwan e o Interior sobre os comportamentos necessários para que se possa afirmar que alguém é um bom cidadão. Em Macau, os alunos destacaram a adopção de condutas éticas e morais e o respeito pelas opiniões dos outros Uma conduta ética e moral, o respeito pela opinião dos outros e a tolerância pela diversidade são os comportamentos mais importantes para os estudantes universitários em Macau, na altura de definir o que é “um bom cidadão”. A revelação faz parte de um estudo com o título “A Percepção dos Estudantes Universitários Sobre o Bom Cidadão na Grande China: Um Estudo Comparativo entre Taiwan, Hong Kong, Macau e Interior”, publicado este mês na revista académica Compare. Através de questionários, os estudantes foram interrogados sobre 17 comportamentos e a importância para definição do que é um “bom cidadão”. A avaliação dos comportamentos foi feita com base numa escala de um a quatro, em que um significava discordo totalmente e quatro concordo totalmente. Para os alunos a estudar em Macau, os campos “uma conduta ética e moral”, “o respeito pela opinião dos outros” e “a tolerância pela diversidade” foram considerados os mais importantes, com uma pontuação média de 3,52 pontos, 3,48 pontos e 3,38 pontos, respectivamente. Apesar da importância que o respeito pela diversidade merece aos estudantes do ensino superior em Macau, o valor é o mais baixo dos quatros locais estudados. Os estudantes em Taiwan são os que mais valorizam o respeito pela diversidade, com um valor de 3,68 pontos, seguidos pelo Interior (3,44 pontos) e Hong Kong (3,40 pontos). No pólo oposto, “o respeito pelo Governo”, a “participação nas discussões políticas” e a “participação em manifestações pacíficas” foram os comportamentos menos valorizados em Macau, com pontuações de 2,98 pontos, 2,84 pontos e 2,79 pontos, respectivamente. Mais conservadores Ainda em comparação com os alunos das outras regiões, os autores concluíram que na RAEM há uma perspectiva mais “conservadora” e “redutora” no entendimento do que é um bom cidadão. Por exemplo, os autores destacam que os alunos em Hong Kong e Taiwan dão uma maior ênfase à participação nos assuntos públicos, do que os congéneres de Macau. No caso dos alunos na RAEHK, os comportamentos mais destacados são iguais aos de Macau, mas na ordem inversa. Os estudantes em Hong Kong destacaram “o respeito pela opinião dos outros” (3,49 pontos) e “uma conduta ética e moral” (3,46 pontos), como os aspectos mais importantes. O “respeito pelo Governo” (2,74 pontos) e “ser patriota (2,64 pontos)” foram os comportamentos menos valorizados. No Interior, os comportamentos mais valorizados foram “ser patriota” (3,63 pontos) e “uma conduta ética e moral” (3,57 pontos), enquanto “votar em todas as eleições” (2,84 pontos) e “a participação em manifestações pacíficas” (2,79 pontos) os considerados menos importantes para a qualidade de bom cidadão. Entre os estudantes em Taiwan, “a protecção da liberdade de expressão” (3,70 pontos) e a “tolerância pela diversidade” (3,68 pontos) foram os comportamentos entendidos como mais importantes para a definição de um bom cidadão. Os “conhecimentos sobre a História do Interior” (2,58 pontos) e o “amor pelo Interior da China” (1,79 pontos) foram as características menos importantes.
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA ética e o monstro Jonathan Jordan, falecido na semana passada em Cork, vítima de Covid-19, já tinha 64 anos quando publicou o polémico ensaio «A Ética e o Monstro», no início de 1998. O livro gira todo em torno da pergunta que é exposta e multiplicada logo no início: «Qual a diferença entre humilhar, maltratar, dizer mal de uma pessoa e matá-la? Haverá diferença substancial entre todos esses gestos?» O que está em causa para Jordan é que o gesto que leva à humilhação do outro ou a dizer ma dele pelas costas, gestos muito comuns na nossa sociedade, «[…] tem como fundo o mesmo, que é a aniquilação do outro, a destruição do outro.» Jordan vai mesmo ao ponto de dizer que «Assim, podemos estar certos de que muitos dos que humilham ou dizem continuamente mal de alguém, o que os impede de matar não é um mandamento ético, mas um mandamento jurídico: a pena em que incorriam e que temem.» Parece-me que já não é preciso explicar muito mais a razão da polémica do livro, que chegou mesmo a levar o escritor Adam S. Burnhedge a escrever-lhe uma carta aberta na revista «The Spectator». Leia-se uma passagem da mesma: «O senhor Jordan parece não querer fazer diferença entre o desprezo que lhe tenho, que até agora pratiquei com a indiferença desejável e apropriada, e a vontade ou impulso de querer vê-lo morto. Mas a verdade, senhor Jordan, é que a despeito de julgá-lo um pensador de fim-de-semana, um “opinion maker”, e que as suas palavras não são apenas ocas, mas perigosas para a liberdade, não só não pretendo vê-lo morto como seria incapaz de fazer qualquer gesto nessa direcção. O desprezo ao outro é um direito do qual não abdico. E isso em nada me diminui eticamente.» A polémica durou o ano todo de 98 e estendeu-se a outros jornais. A BBC chegou mesmo a organizar um debate televiso em torno do problema que se levantara. Nesse programa, recordo-me das palavras da filósofa Martha Savage (cito de memória): «Para usar uma palavra que parece cara ao escritor Burnhedge, “a despeito” de querer minimizar o livro e o pensamento de Jordan, a verdade é que o debate que ele introduz é pertinente. Quer se tenha ou não dúvidas acerca do mesmo. […] Reservo-me o direito de ter dúvidas e de precisar de mais tempo para pensar acerca do livro de Jordan.» Deixando um pouco a polémica e regressando ao livro, Jordan traça uma relação de similaridade entre a ética e o medo da pena jurídica ou até a pena social, isto é o modo como os outros nos passariam a ver se descobrissem o que fizemos, com a Bela e o Monstro. Depois de introduzir o problema que o traz, no início do livro, Jordan vê necessário fazer uma pequena síntese do livro Bela e o Monstro, de modo a preparar a sua análise. A versão que Jonathan Jordan segue é a segunda e a mais conhecida versão, de 1756, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, e não a versão original, de 1740, de Gabrielle-Suzanne Barbot. Assim, e depois de explicar a relação entre o conto de fadas e o propósito do seu ensaio, Jordan passa a mostrar-nos o resumo que lhe interessa do livro do século XVIII: «O livro narra a história de um comerciante muito rico que tinha três filhas. A mais nova chamava-se Bela, gostava de ler bons livros e tratava bem todas as pessoas. As irmãs mais velhas eram arrogantes, tratavam todas as pessoas com sobranceria, diziam mal de todos os que julgavam inferiores ou não fizessem parte dos seus círculos – muitas vezes até mal dos seus pares –, para além de só pensarem em festas e em serem aduladas por admiradores. Devido ao seu interesse pelos livros, pela sua generosidade e pela completa falta de interesse nas questões mundanas, as irmãs humilhavam frequentemente Bela, principalmente depois da falência do pai, e de terem sido obrigadas a viver numa casa no campo, muito longe da cidade. Aqui, só Bela trabalhava. Era a primeira a acordar e cuidava da casa. Nos tempos livres, lia. Passado um ano, por questões de negócios, o pai teve de partir em viagem. Quando o viram partir, e prevendo voltarem aos dias faustos de antigamente, as filhas mais velhas pediram-lhe muitas coisas; Bela pediu apenas que o pai lhe trouxesse uma rosa. O comerciante partiu. No regresso perdeu-se e perdeu as mercadorias. O inverno chegou. Durante um enorme nevão, já pensando que ia morrer de frio e fome, avista ao longe umas luzes. Ao chegar perto, deparou-se com um castelo com lindos jardins floridos, como se ali nunca houvesse inverno. Lá dentro, numa das salas, estava uma mesa cheia de comida e uma lareira acesa. Comeu, deitou–se próximo do lume e acabou por adormecer. No dia seguinte acordou e foi ao jardim colher uma rosa para a sua filha Bela. Nesse momento, um grande e horrível monstro irrompe furioso. Perdoava-lhe o abuso da comida e da dormida, mas não lhe admitia o roubo das rosas. Isso era inadmissível e deveria ser punido com a morte. Cheio de medo, o comerciante explicou que era para a sua filha mais nova. Disse que tinha perdido tudo e a rosa era a única coisa que lhe podia dar. Ao saber das filhas, o monstro propôs trocar a vida dele por uma das filhas. Deixava-o partir se ele lhe enviasse uma das filhas para o castelo. Ao chegar a casa, o comerciante conta o sucedido às filhas e Bela aceita ser entregue ao monstro, julgando que ele a devoraria. O resto do livro não importa para a nossa análise. O que importa é a relação entre Bela, as irmãs e o monstro.» Para Jordan, as irmãs são o mal comum que não se manifesta em crime pelo medo da pena jurídica (por vezes também social), Bela é a ética, o monstro – tal como também aparece no livro de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, segundo Jordan – é «[…] aquilo não só aquilo que vemos nos outros segundo as convenções e os preconceitos que temos, mas também aquilo que precisamos averiguar, de modo a entender o nosso ponto de vista humano em relação à ética.» O que parece estar em causa para Jordan é que aquilo que usualmente julgamos por comportamento ético não passa de um comportamento derivado da aplicação do código civil, sem o qual a ética ruiria. No fundo, o direito romano a sobrepor-se à ética grega. A tese mais radical, e que na verdade espoletou a polémica à volta do livro, é a de que nós não somos apenas intrinsecamente maus, mas a de que só não radicalizamos os gestos, isto é, não passamos do dizer mal acerca de alguém a matá-lo, por medo da aplicação das penas previstas no código civil. As nossas acções não são à imagem da acção de Bela quando aceita entregar-se ao monstro para salvar o pai. Nós, de modo geral – Jordan aceita as excepções –, somos as irmãs de Bela. Aquilo que importa também assinalar, pelo menos de um ponto de vista do efeito literário, que não me parece de somenos importância, é que a ética humana nos aparece ao longo do livro como o verdadeiro conto de fadas, e não o livro Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. Escreve Jordan: «A ética é o grande conto de fadas da história da humanidade. Na verdade, deriva daqui todos os nossos enganos, todas as nossas fantasias». «A Ética e o Monstro», apesar de todas as controvérsias ou precisamente por isso, parece hoje um livro incontornável, essencial. Literário e filosófico.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRevisão da matéria dada [dropcap]U[/dropcap]ma reportagem no Notícias, de Maputo, relembra-nos como pode descer o homem, na escala dos ratos. Aí se lê: há mulheres moçambicanas a serem forçadas a actos sexuais em troca de ajuda humanitária, na sequência da destruição causada pelo ciclone Idai. Emergem, em todos os lugares, em estados de crise, comportamentos deste tipo – da Croácia, ao Ruanda, ao Brasil de Bolsonaro: um artista é morto com oitenta tiros e ao Ministro da Justiça só lhe ocorre comentar, “acontece!”. Como em todos os períodos sombrios, flirtamos com o pior da pluralidade humana, à escala global. Uma educação a sério conseguiria inculcar uma maior humanidade, a civilidade, no comportamento das criaturas? Face à insensibilidade de Moro levantam-se dúvidas mas atenuaria o número de ocorrências bárbaras; uma verdadeira educação humanista reforça o respeito pelo outro e a compaixão. Entretanto, li um livro a vários títulos interessante, Le Battement du Monde (A Pulsação do Mundo), um diálogo entre dois pensadores: Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut. O livro surpreende pela actualidade, apesar de ser de 2003, sobretudo no diagnóstico traçado no capítulo O Estádio e a Arena. Vou resumir alguns dos delineamentos aí esboçados. Nada de muito novo, simplesmente bem sistematizado: «Na hora actual, a psicose de massa mediática substituiu integralmente o senso comum, esse maravilhoso órgão de uso democrático da inteligência colectiva». Isto é muito claro para quem acompanha no Youtube a caricata evolução política no Brasil, onde enxameiam os canais, individuais ou colectivos, que pretendem substituir o papel dos media tradicionais. No geral, percebe-se que o que move o homem é a ilusão. Depois, a prática prevalecente (muito mais nos representantes da direita do que nos da esquerda) não é a de esgrimir argumentos mas a de taxar os adversários com etiquetas infamantes ou denúncias moralizantes. Modo de ser que se locomove segundo uma espécie de princípio da razão insuficiente herdado da retórica de guerra (em frívolos mas agressivos jogos de linguagem) fomentada pelos jacobinos no período de radicalização da Revolução Francesa. Eles compreenderam, explicam-nos os autores, que, para sobreviver na turbulência permanente, é preciso ser o primeiro a caluniar. «A calúnia é a primeira arma do povo, ou melhor, dos amigos do povo», e o volume das calúnias urde rapidamente uma “sociedade do escândalo”, a qual garante uma rede à prática da calúnia e nos reenvia para o primeiro teatro da crueldade: o circo romano. «Se, agora, alguma coisa não funciona no sistema mediático mundializado é por causa desta conversão cada vez menos secreta, cada vez menos decente, do espaço público num circo (…) O espaço público é penetrado por dois mecanismos de competição: aquele das acções de opinião e o das sensações circenses. Nos nossos dias, a questão é de saber se existe uma vida fora do circo. A maior parte dos nossos contemporâneos responderá pela negativa. Eles estão convencidos que só o circo proporciona a vita vitalis, essa vida desdobrada de um sentimento de significação». Acresça-se a isto, que decalca o que se passa (eles terem-no detectado em 2003 só confirma que há várias velocidades na globalização), duas outras características concomitantes: A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa. Repare-se em como o circo da opinião dos canais se transforma numa caça ao níquel. Quem mantém um canal lucra na proporção do número de likes e de visitas; daí que seja preciso dramatizar, acrescentar elementos de sensacionalismo à matéria, para que o vídeo seja mais impactante. Rapidamente as mensagens se convertem em slogans e os argumentos preterem à verdade os efeitos da retórica. O que imita a lógica televisiva. Quando vejo o Olavo de Carvalho a perorar para as centenas de milhares de pessoas inscritas no seu canal, e a usar-se da soberba que o faz afirmar ser o único escritor brasileiro que conhecerá a posteridade, tentando convencer os seus fiéis sobre o geocentrismo e que o Einstein era “um babaca”, só me lembro daquela questão de Brecht: “Que é roubar um banco, comparado com fundá-lo?”. Esbateu-se a consciência do valor civilizacional, o sentido do respeito pelo adversário e as boas regras intelectivas. O que faz a grandeza das personagens num filme como A Grande Ilusão, de Renoir? A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa Aquilo que parece uma ideia inócua a borbulhar numa proveta burguesa, é mais sério do que se afigura. Não apenas à superfície isso sustente a vaga de anti-intelectualismo que vemos emergir por todo o lado, como é sintoma disto: «Os novos denunciantes, no momento do insucesso, tentam mudar as regras do jogo. É isto, o fascismo. Deixa-se cair as boas maneiras do combate quando se compreende que na arena actual há risco de se perder a vantagem. Produz-se então um último esforço desesperado para negar a derrota. É por esta via que o terrorismo jacobino se volta a instalar na nossa cultura.» Onde fica a ética no meio desta amálgama de tudo ao molho e fé na calinada? Talvez um princípio dela seja esboçado pelos autores quando defendem: «(…) é preciso reformular um código de combate, implicando o cuidado do inimigo. Quem não quer ser responsável por um inimigo já cedeu à tentação do tanto pior melhor. Querer ser responsável pelo seu inimigo: o gesto primordial de uma ética civilizadora dos conflitos. Se a forma do “celerado” é a única maneira de conceber o inimigo, aí estamos já embrulhados no massacre imaginário.» Será isto entendido por poucos, paciência. Começa-se sempre por poucos. Na Grécia antiga inventaram-se os Jogos Olímpicos como uma emulação da violência e a competição agónica substituiu a guerra. São de soluções deste tipo – que implicam um reforço da simbolização, i. é de um retorno da astúcia, da persuasão, da inteligência e da capacidade interpretativa articuláveis no espaço público, contra a literalização cognitiva e a calúnia que aí se jogam – que o futuro necessita para se proteger.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasÉtica e dignidade [dropcap]E[/dropcap]m 2012, em Navarra (Espanha), no final de uma corrida de corta-mato, o queniano Abel Mutai, que fora medalha de ouro nos três mil metros com obstáculos numa semana anterior, em Londres, estava a pouquíssima distância da meta mas, confuso com a sinalização, parou para posar para as fotos, pensando que já a havia cortado. Mesmo atrás vinha outro corredor, o espanhol Iván Fernández Anaya. E que fez este? Gritou para que o queniano reparasse na sua falta e, como este não entendesse que não havia ainda cruzado a meta, então, o espanhol empurrou-o em direcção à vitória. O fair-play do espanhol foi reconhecido; ninguém esperaria o que se passou depois. Um jornalista perguntou-lhe: “Por que é que o senhor fez isso?”. O espanhol não compreendeu: “Isso o quê?”. Ele não entendeu a pergunta, pois não imaginava que houvesse outra coisa a fazer além do que tinha feito. O jornalista insistiu: “Por que deixou que o queniano ganhasse?”. “Eu não o deixei ganhar. Ele ia ganhar”. O jornalista continuou: “Mas você podia ter ganho! Não estava fora das regras, ele distraiu-se…”. “Mas qual seria o mérito da minha vitória, qual seria a honra do meu título se eu deixasse que ele perdesse?”, continuando: “Se eu ganhasse desse jeito, o que ia dizer à minha mãe?” Quem nos reporta a este episódio maravilhoso é o pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, que lembra que a mãe, como matriz de vida, fonte de vida, talvez seja a última pessoa que se quer envergonhar, e pergunto-me se as mães, pedagogicamente, não poderiam ser recuperadas para a tarefa de esclarecer que o foco obsessivo nos resultados pode não ser o mais correcto. O foro da discussão ética tem sido excessivamente deslocado para a escola, como um tema que esta tem de assumir, quando a ética, antes de tudo, é da alçada da família. Os exemplos nascem em casa – e o ideal é que um dia possamos almejar um tipo de vida comunitária em que a pergunta feita pelo jornalista ao corredor espanhol não seja mesmo entendida. Em tudo o que fazemos na vida quando a ânsia pelos resultados se sobrepõe ao prazer e à especificidade do processo há uma dimensão humana que se perde. Há um filme italiano de 2008, Si Puo fare/ Pode fazer-se, de Giulio Manfredonia, que é muito engraçado e fala deste problema em situação. O filme incide sobre as cooperativas sociais que se organizaram em Itália – em articulação com um novo entendimento para a reforma psiquiátrica – e que integravam doentes mentais. E conta-nos a história de um sindicalista, Nello Treddi, demasiado honesto e demasiado reflexivo que está sempre envolvido em sarilhos e a quem o Sindicato propõe, como última oportunidade, a gestão de uma Cooperativa, a 180, que tem sede num hospital psiquiátrico e cujos membro são todos esquizofrénicos. – “Mas que produz a cooperativa? – pergunta Nello ao director da instituição, o Dr. Del Vecchio. – “O que é que você quer produzir? Para o município, eles colam selos. Para os supermercados, colocam os preços nas azeitonas.” As coisas mudarão com a direcção de Nello. Para Del Vecchio, o director, “a doença mental isola do mundo”, Nello não concorda que os pacientes não sejam capazes de assumir as responsabilidades de um trabalho. A sua posição resume-se assim: “Eu não sou médico, eu não sou um director de hospital, eu estou aqui para executar um trabalho cooperativo, e dado que estou aqui vou tratá-los como trabalhadores.” Nello acidentalmente descobriu que alguns pacientes têm uma capacidade especial para projectar figuras simétricas, e que essas figuras podem ser transformadas numa vantagem para o desenho dos pisos de parquet. Enquanto para o psiquiatra a produção dessas imagens tinha um valor mecânico e compensatório da desordem interna, Nello reconverte-as em desenhos artísticos exclusivos para vender. Tratando-os com dignidade, incitando-os a que tenham prazer no trabalho, Nello consegue transformar a cooperativa num caso de sucesso no ramo do “pavimento artístico”. Em dois anos a empresa dá lucro e resolvem arranjar uma outra sede e sair da tutela do centro psiquiátrico de Del Vecchio. Os membros são instalados numa nova sede, onde agora são os “inquilinos” (e não internos) e outro psiquiatra controla a redução da medicação para 50%. E todos se comprometem em assembleia a viver exclusivamente para “satisfazer o mercado com o seu próprio trabalho, o seu próprio sacrifício e a sua própria capacidade”. A meta da cooperativa é atender a demanda mas oferecendo as diferenças que as habilidades específicas dos “doentes” têm para oferecer ao consumidor e que rompem com os padrões normativos do mercado. A crise começa quando, movido pelo entusiasmo, Nello decide que a cooperativa deve crescer e concorrer a um grande concurso para uma nova estação de metro de Paris. E aí, começando a olhar mais para os resultados, o sucesso no trabalho, do que para as pessoas que os produzem induz a “normatividade” no comportamento do colectivo, com saídas programadas à noite. Do que advém o enamoramento de alguns membros da cooperativa por mulheres de fora daquela pequena comunidade e a breve trecho, o desajuste fatal e o suicídio de um deles. Nello na mira dos resultados, esquecera-se da especificidade de cada um e como não estavam preparados para enfrentar uma decepção. As pessoas – a singularidade de cada uma – devem estar primeiro e ser ponderadas e não abstraídas em função dos resultados, é a lição do filme. Contudo, a ética e a dignidade estão sempre no eixo do filme, que por isso contribui de algum modo para a reflexão sobre a relação entre a política e a subjectividade. Este filme pode ver-se inteiro no Youtube.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasUma ética para naúfragos 30/04/17 [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]deias que valem ouro, que quebram o ciclo do mimetismo, do qual estamos reféns. Como a que sustenta o plot do filme Arrival, de Denis Villeneuve, o mais interessante filme de ficção cientifica da última década: a soma que não dá resto zero. Tentemos explicá-la. Comecemos por definir que um jogador de somas a zero é alguém comprometido até ao tutano com a tese maniqueísta de que em todas as situações da vida só há duas possibilidades: ganhar ou perder, não existindo uma terceira hipótese. Na maior parte dos desportos é assim e a dinâmica político-militar da história do mundo pautou-se pelas somas a zero. Até Hiroshima, a guerra era um jogo de somas a zero, pois o estado que perdia cedia territórios ou ficava sob tutela, sujeito à “ganância” do vencedor. A ameaça nuclear mudou tudo, é um jogo em que todos perdem. E toda a diplomacia democrática valida o princípio de que vale a pena fazer concessões, (o que um jogador de somas a zero consideraria uma derrota) – estabelecem-se assim compromissos estáveis, em vez de soluções insidiosas e finais. Ao tentar uma ilustração do conceito da soma que não dá zeros (explicitamente referido num diálogo) o filme é pertinentíssimo na actual contingência político-militar. Uma pequena sinopse: uma frota de discos voadores chega à terra, posiciona-se em lugares estratégicos do planeta – mas por que não agem? Por todo o lado se procuram intérpretes, cada potência reage da sua maneira. O filme segue o que se passa do lado americano. E aí, à beira de ser ordenada a nível global uma agressão aos alienígenas, os dois cientistas lá decifram a linguagem e as intenções daqueles. Os alienígenas afinal só trazem uma mensagem. Propõem uma ética para náufragos: a humanidade só sobreviverá se romper com a lógica da soma a zero e os homens interiorizarem, a) só unidos produzirão vantagens, b) só pela generosidade o conhecimento se esclarece. Dizem os alienígenas com as mãos em forma de estrela: abandonar o orgulho da força e de se «querer ter mais razão» é a via, só pelo «impoder» nos salvamos. Sem ser militante de nada, não me parece uma má ideia. 01/05/17 Para que serve afinal a arte? Recordemos Bruno Munari, o que ele contava sobre o comportamento das limalhas de ferro quando sensibilizadas por uma vibração sonora: «Use-se uma chapa de zinco quadrada, com cerca de trinta centímetros de lado, com limalha de ferro espalhada na superfície, passe-se um arco de violino contra um dos lados da chapa, como se se tocasse violino (em lugar de passar o arco nas cordas passa-se num dos lados da chapa) e veremos que a limalha de ferro se disporá em desenhos geométricos provocados pelas vibrações sonoras. A própria matéria da textura forma imagens adensando-se ou deixando mais a descoberta o que nós consideramos o fundo». Espantosa esta propensão da matéria se organizar em padrões anti-entrópicos se sensibilizada por uma vibração sonora. O caos foi irradiado por um sentido. Mais espantoso ainda que a matéria inanimada se auto-organize em padrões se estimulada por uma onda sonora não aleatória é que os homens de comum não dediquem atenção ao facto de que uma especial arrumações das palavras, como na poesia, que um particular ângulo de luz numa fotografia, ou a combinação feliz de duas cores na composição de um quadro que pulsa à nossa frente, possam despertar em nós níveis diferentes da realidade e uma lente nova para a leitura do mundo, fazendo com que a nossa percepção realize uma dobra. Portanto, respondendo à pergunta de para que é que serve a arte, penso que servirá para afastar de nós a ideia do desencanto do mundo. Ideia que Calasso corrobora: «O mundo – já é o momento de dizê-lo – ainda que seja do desagrado de muita gente – não tem a menor intenção de desencantar-se de todo, ainda que só o fosse porque, se o fizesse, cairia num extremo aborrecimento.». Talvez e unicamente para lutarem contra o seu próprio aborrecimento, dão-nos o universo e a natureza a melhor das razões para sermos optimistas: o universo não era obrigado a ser belo e no entanto é-o. Sim, a beleza do mundo constitui mais um enigma. Um enigma que, a avaliar pelo que acontece com os fósseis, nos é favorável: a espiral nos fósseis dos búzios foi-se aperfeiçoando de era para era, o que confirma que as mulheres, no futuro, serão ainda mais bonitas. Entretanto, não nos iludamos, apreender o belo depende do gosto, que consideramos kantianamente como a faculdade de julgar desinteressadamente um objecto ou uma representação mediante um prazer ou uma repulsa. E o gosto adquire-se, não é um dado imediato à consciência face ao qual se reaja. Para que se entenda o que aqui se joga lembro uma história deliciosa do Picasso. Certa vez um soldado olhou pela montra a vernissage de uma exposição de Picasso e pensou, Que bodega, vou já denunciar este gajo. E acotovelou convidados dentro, até encontrar o pintor, com a sua boina basca e o seu copito de vinho. E interpelou o pintor, Você é uma farsa, por que pinta as pessoas de frente e de perfil ao mesmo tempo, as pessoas não são assim? O Picasso, impassível, replicou, Você tem noiva, Tenho sim, respondeu o soldado, com muito orgulho! Tem uma fotografia dela? O soldado tirou da carteira uma fotografia da rapariga e mostrou-a, ufano. Picasso olhou fixamente a fotografia, fingiu um assomo de espanto e observou: É muito bonita… pena é ser tão pequenina! Ou seja, o que pensamos em geral da arte e da vida depende em grande parte da convenção, dos códigos que aprendemos como particulares à sua linguagem – mas temos de os adquirir, reconhecer e aceitá-los. O mundo não está desencantado, mas temos de aprender a reconhecê-lo.