Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasElogio da embriaguez Por estes últimos tempos os respigadores dos absurdos do quotidiano estão de barriga cheia, tal a carga que os dias lhes têm generosamente oferecido. Basta assistir a um noticiário ou apenas olhar à sua volta para poderem voltar para a casa com a sensação de dever cumprido. Obrigado que estou a atravessar o que o mundo me está a oferecer tendo a esconder-me em trivialidades ou aparentes fogos-fátuos, bolas de sabão luzidias que rebentam sem fazer mal a ninguém. E por isso foi sem surpresa que a notícia em que mais me detive foi a da proibição dada à rainha Isabel II, em convalescença de uma pequena cirurgia, de poder beber o seu Dry Martini diário. Isto tem mais do que se lhe diga. Por um lado, aproxima o comum dos mortais de um ser humano que parece levitar sobre os demais; e para mim, que sou desde sempre um indefectível admirador da monarca e eu próprio apreciador dos doces prazeres do álcool, veio despertar um forte sentimento de solidariedade. A rainha, que assistiu a imensos grandes e pequenos estadistas da história da Humanidade irem e virem e que detém um dos mais exigentes empregos do mundo, bem precisa de um copo ao final do dia. Merece, diria. Como de resto todos nós, há tanto tempo. Talvez quase desde o início. No admirável Drink: a social history, de Andrew Barr (1995), lê-se logo na introdução que o álcool desempenhou um papel fundamental nas sociedades humanas desde o sedentarismo, assumindo variadíssimas formas, desde lubrificante social a instrumento para rituais religiosos passando por meios de matar a sede sem contrair doenças, auxílio à digestão ou um alimento no sentido mais literal do termo. Mas, como lembrou um amigo há algumas noites e no lugar mais apropriado – um bar – existe outra pergunta que, aqui chegados, urge fazer: porque bebemos? Porque bebemos tanto? A resposta a esta pergunta teve na devida altura o tom adequado: teorias fantásticas, risos e mais encomendas de rodadas. Só que analisada a frio e a sóbrio vemos que não se trata de questão despicienda. A verdade, receio, é esta: precisamos da embriaguez. Não serei o primeiro nem o último a escrevê-lo, estou certo. Mas as verdades atravessam o tempo e os pobres coleccionadores de palavras como eu. Bebemos para nos transcendermos e para nos salvarmos uns dos outros. O famoso aforismo nietzcheano de que o homem é algo que tem de ser superado encontra aqui o seu verdadeiro sentido. A realidade é demasiado lúcida. Temos necessidade dessa imperfeição que nos oferece a ilusão de que por breves instantes somos perfeitos. A alma e o corpo nunca irão entender-se já que a primeira pensa na imortalidade enquanto o segundo faz questão de nos atirar com a finitude. E é do corpo que nos escondemos nessas alturas, por mais que ele nos faça lembrar da sua existência no dia seguinte. Bogart dizia, e com alguma razão, que o mundo estava sempre com dois whiskies de atraso. Nós bebemos para empatar a partida, não para ganhá-la. Isso, já sabemos, é tarefa inútil. Mas andar em busca do empate mesmo por alguns momentos compensará. Mas atenção: o álcool é apenas a forma mais primária de embriaguez, já que o ser humano a procura desesperadamente noutras formas – poder, riqueza, luxúria. Assim foi, assim é, assim será. Mas quem a quiser que a tome. Prefiro voltar aos conceitos primordiais da coisa. E tenho como respaldo o velho Chesterton que perorava que não é o álcool que degrada o homem mas sim o contrário. Por isso escolhei o vosso excesso com moderação e consciência, amigos. O célebre apelo de Baudelaire à embriaguez reconhecia três modos de o fazer, de forma adversativa entre eles: de vinho, poesia ou virtude. Por mim fico com os dois primeiros. E alguém devolva o Dry Martini à rainha.
Luís Carmelo Artes, Letras e Ideias hElogio da embriaguez [dropcap]N[/dropcap]ietzsche nasceu em 1844, um ano depois da morte de Holderlin. A sucessão pode parecer inócua mas não o é, pois 44 anos depois – os números têm por vezes o seu quê de mágico – a penúltima obra do autor a ser impressa, ‘O Crepúsculo dos Ídolos’ (1888), destruiu com alguma ferocidade o que restava do mito da inspiração que, de uma maneira ou de outra, chegou até aos nossos dias com aquela patine e rasgo próprios das estações de caminho de ferro abandonadas. Timothy Clark, autor de um livro que há uns anos me marcou, ‘The Theory of Inspiration’ (1997), referiu-se ao mito de Holderlin como o “de um jovem poeta destituído de si e do mundo, dolorosamente apaixonado e angustiado e que perdia literalmente a cabeça por causa dos contactos imediatos com a linguagem dos deuses.”. Nos antípodas destes relâmpagos de incandescência platónica, Nietzsche defendeu neste seu livro que, “para que haja arte” e “para que haja alguma acção e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez”. Esta embriaguez não é uma metáfora. Quando muito é um género que se divide em várias espécies. Lendo as passagens 8 e 9 do capítulo “Incursões de um intempestivo”, poderíamos dividir a embriaguez em quatro tipos (as designações são minhas): a vital, a extrema, a estimulada e a arrojada. a) A embriaguez vital corresponde à excitação sexual (a mais antiga e originária de todas), mas também à embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, como por exemplo a “embriaguez primaveril”. Juntemos a estas doses luminosas a embriaguez que se segue a todos os “grandes apetites” e “afectos fortes”. b) A embriaguez extrema diz respeito a todo o “movimento” que inclua “festa”, “rivalidade”, “feito temerário” ou “vitória”, mas também a embriaguez que resulte da “crueldade” e da “destruição”. c) A embriaguez estimulada advém, por sua vez, do “influxo dos narcóticos”. Das drogas ao álcool vale tudo nesta secção que sorri a muitos e bons poetas de todas as eras ‘in saecula saeculorum’. d) Por fim a embriaguez arrojada é a “embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada.”, ou seja, talvez a única que brota de dentro para fora como se cada ser humano fosse a nascente do poderoso Ganges. Depois desta categorização, Nietzsche explica a razão de ser da embriaguez enquanto condição da criação artística, dividindo o argumento em três passos. O primeiro prende-se com a excitação (“A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma.”), o segundo prende-se com a procura de um sentimento de plenitude e sobretudo com a intensificação das forças; por fim o terceiro passo – e o mais importante de todos – é o que mistura no limite o cosmomorfismo com o antropomorfismo: “deste sentimento fazemos partícipes as coisas, contragemo-las a que participem de nós, violentamo-las, — idealizar é o nome que se dá a esse processo”. Neste seu curiosíssimo diagnóstico, Nietzsche refere ainda que o embriagado apolíneo mantém excitado sobretudo o olhar, enquanto o embriagado dionisíaco, ao invés, intensifica e excita todo o sistema emotivo. Um e outro irão agir e entregar-se-ão à metamorfose que os fará ser sempre um outro, ou então o próprio mas com capacidade para redesenhar as coisas do mundo de um modo ilimitado. É evidente que, depois de ter aqui colocado a par a patologia inspirativa e a etiologia da embriaguez, só me apetece regressar a Al berto com quem, infelizmente, apenas falei por uma única vez. Neste trecho, a teoria de Nietzsche parece ganhar todo o seu fogo: “Mal começo a escrever sou eu que decido do caos e da ordem do mundo. Nada existe fora de mim, nem se entrechocam corpos etéreos, nem flutuam frutos minerais sobre o deserto da alma. A paixão extraviou-se. Não há contacto entre a realidade e aquilo que escrevo neste momento. Há muito que deixei de sentir, de ver, de estar, por isso mesmo escrevo”*. Este ‘deixar de ser’ em Al berto funciona, na realidade, como um lugar já ‘depois da embriaguez’ que, no extravio da sua paixão, acaba também por parodiar a respiração inspirada. Ficamos KO, desapegados a um canto do ringue, sem teorias para coser os brocados que ainda restam. Diria que é o melhor estado de coisas que existe na vida. Funciona como se fosse um tempo ainda sem começo. É nesse oásis desprovido de deserto e de miragens que tudo afinal se inicia ou reinicia. Todos os dias. Holderlin de porcelana a lançar o disco e Nietzsche também de porcelana a lançar o dardo. E eu a vê-los a tragar uma IPA (Indian Pale Ale de apreciável amargor e sem ídolos) e a contemplar o movimento livre dos patos que voam entre o Jardim da Estrela e os baixios húmidos da Pampulha. *Al berto, O Medo, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, pg. 26.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEmbriaguez assassina [dropcap]N[/dropcap]os finais de Dezembro do ano passado, o Macao Daily publicou um artigo sobre a decisão tomada pelo Departamento Jurídico de Taiwan relativa à condução sob os efeitos de álcool. Caso a percentagem de álcool no sangue ultrapasse uma determinada medida, o condutor passará a ser acusado do crime de “homicídio intencional de terceiros”. Esta proposta de emenda à lei é pertinente porque recentemente tem havido muitos acidentes rodoviários em Taiwan. Num dos casos mais graves, um carro que capotou provocando um choque em cadeia, resultaram dois mortos. A investigação apurou que o condutor estava embriagado e era reincidente. O mérito desta emenda é a introdução do conceito “intencional”. A partir de uma certa quantidade de álcool no sangue o condutor pode ser acusado de homícidio intencional. Assim, se após um acidente, for sujeito a um teste de alcoolemia, e os valores forem elevados, a possibilidade de ser condenado em Tribunal será bastante alta. O resultado do teste passa a constituir prova de culpabilidade. Quando falamos de provas, temos de considerar em primeiro lugar a sua função. O Artigo 114 do Código Penal de Macau estipula: “A avaliação das provas é feita a partir das regras da evidência e é adjudicada à entidade competente, excepto nos casos em que a lei estipule em contrário.” Ou seja, não existem quaisquer restrições na lei, o juiz pode basear-se na sua própria experiência e conhecimentos para aceitar ou rejeitar uma prova que lhe é apresentada. As provas podem ter naturezas diversas. Podem ser apresentadas por testemunhas, provas de natureza oral, documental etc. No entanto, esta é apenas a primeira classificação. Em Hong Kong, as provas são classificadas consoante os seus efeitos legais. Existem pelo menos três tipos de provas: O primeiro é a “Prova Conclusiva”. Se esta prova é aduzida por uma das partes em litígio, a parte contrária fica impossibilitada de arrolar qualquer prova que a refute. Ou seja, a “Prova Conclusiva” possui o máximo efeito legal. É disso exemplo o “Certificado Corporativo” de uma companhia limitada. Uma vez que o registo é efectuado, a empresa cumpre todos os requisitos para funcionar com Comp. Lda. Ninguém pode aduzir prova em sentido contrário. O segundo tipo é a “Prova Suficiente”. Esta prova, quando aduzida por uma das partes, demonstra de forma suficiente a veracidade dos factos que se pretende provar. Podemos indicar como exemplo, os resultados académicos dos estudantes publicados no final do ano escolar. Os estudantes passam ou chubam. Não é necessária mais nenhuma prova para validar este facto. No entanto, nesta situação, a parte contrária é autorizada a aduzir prova para rebater. Mas, se esta nova prova não for suficientemente forte, será muito difícil convencer o Tribunal da sua validade. O terceiro e último tipo é a “Prova Prima Facie”. Se esta prova for aduzida por uma das partes, a parte contrária tem forçosamente de arrolar provas que a refutem. Caso contrário, a “Prova Prima Facie” será aceite pelo Tribunal e a vitória é atribuída a quem a apresentar. À semelhança do que estipula o Código Penal de Macau, em Hong Kong o juiz pode basear-se na sua experiência e conhecimentos para aceitar ou rejeitar uma prova que lhe é apresentada. Se o Departamento Jurídico de Taiwan criar uma emenda que regule a apresentação de provas e passar a considerar a condução sobre os efeitos excessivos de álcool como “homícidio intencional”, e vier a considerar como “Prova Suficiente” o resultado do teste de alcoolemia, a hipótese de os condutores responsáveis escaparem à justiça passa a ser muito baixa. No entanto, poder-se-ia perguntar: porque é que o teste de alcoolemia não pode ser usado como “Prova Conclusiva”? A resposta é simples. No caso de homicídio provocado por “condução sob os efeitos de álcool”, a acusação precisa de provar que o condutor consumiu álcool de forma voluntária. Se, por hipótese, o condutor tivesse ingerido uma bebida alcoólica sem o seu conhecimento, a sua responsabilidade não poderia ser a mesma do que se a tivesse ingerido de forma consciente. Por este motivo, utilizar o teste de alcoolemia como Prova Conclusiva, para provar a culpabilidade do condutor, é impróprio e injusto. A lei define os padrões básicos do comportamento em sociedade. Sempre que uma lei é emendada ou revista, é preciso fazê-lo de forma muito cuidadosa. Se houver alguma falha, pode vir a comprometer-se a ideia original dos legisladores que a criaram. Consultor Legal da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk