Elogio da embriaguez

Por estes últimos tempos os respigadores dos absurdos do quotidiano estão de barriga cheia, tal a carga que os dias lhes têm generosamente oferecido. Basta assistir a um noticiário ou apenas olhar à sua volta para poderem voltar para a casa com a sensação de dever cumprido.

Obrigado que estou a atravessar o que o mundo me está a oferecer tendo a esconder-me em trivialidades ou aparentes fogos-fátuos, bolas de sabão luzidias que rebentam sem fazer mal a ninguém. E por isso foi sem surpresa que a notícia em que mais me detive foi a da proibição dada à rainha Isabel II, em convalescença de uma pequena cirurgia, de poder beber o seu Dry Martini diário. Isto tem mais do que se lhe diga. Por um lado, aproxima o comum dos mortais de um ser humano que parece levitar sobre os demais; e para mim, que sou desde sempre um indefectível admirador da monarca e eu próprio apreciador dos doces prazeres do álcool, veio despertar um forte sentimento de solidariedade. A rainha, que assistiu a imensos grandes e pequenos estadistas da história da Humanidade irem e virem e que detém um dos mais exigentes empregos do mundo, bem precisa de um copo ao final do dia. Merece, diria.

Como de resto todos nós, há tanto tempo. Talvez quase desde o início. No admirável Drink: a social history, de Andrew Barr (1995), lê-se logo na introdução que o álcool desempenhou um papel fundamental nas sociedades humanas desde o sedentarismo, assumindo variadíssimas formas, desde lubrificante social a instrumento para rituais religiosos passando por meios de matar a sede sem contrair doenças, auxílio à digestão ou um alimento no sentido mais literal do termo. Mas, como lembrou um amigo há algumas noites e no lugar mais apropriado – um bar – existe outra pergunta que, aqui chegados, urge fazer: porque bebemos? Porque bebemos tanto?

A resposta a esta pergunta teve na devida altura o tom adequado: teorias fantásticas, risos e mais encomendas de rodadas. Só que analisada a frio e a sóbrio vemos que não se trata de questão despicienda. A verdade, receio, é esta: precisamos da embriaguez. Não serei o primeiro nem o último a escrevê-lo, estou certo. Mas as verdades atravessam o tempo e os pobres coleccionadores de palavras como eu.

Bebemos para nos transcendermos e para nos salvarmos uns dos outros. O famoso aforismo nietzcheano de que o homem é algo que tem de ser superado encontra aqui o seu verdadeiro sentido. A realidade é demasiado lúcida.

Temos necessidade dessa imperfeição que nos oferece a ilusão de que por breves instantes somos perfeitos. A alma e o corpo nunca irão entender-se já que a primeira pensa na imortalidade enquanto o segundo faz questão de nos atirar com a finitude. E é do corpo que nos escondemos nessas alturas, por mais que ele nos faça lembrar da sua existência no dia seguinte. Bogart dizia, e com alguma razão, que o mundo estava sempre com dois whiskies de atraso. Nós bebemos para empatar a partida, não para ganhá-la. Isso, já sabemos, é tarefa inútil. Mas andar em busca do empate mesmo por alguns momentos compensará.

Mas atenção: o álcool é apenas a forma mais primária de embriaguez, já que o ser humano a procura desesperadamente noutras formas – poder, riqueza, luxúria. Assim foi, assim é, assim será. Mas quem a quiser que a tome. Prefiro voltar aos conceitos primordiais da coisa. E tenho como respaldo o velho Chesterton que perorava que não é o álcool que degrada o homem mas sim o contrário.

Por isso escolhei o vosso excesso com moderação e consciência, amigos. O célebre apelo de Baudelaire à embriaguez reconhecia três modos de o fazer, de forma adversativa entre eles: de vinho, poesia ou virtude. Por mim fico com os dois primeiros. E alguém devolva o Dry Martini à rainha.

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