O drama de ler

[dropcap]R[/dropcap]oger Gult escreveu um livro no início dos anos 80 onde mais do que a descrição do acto de ler é um elogio do mesmo. Depois de uma enigmática e provocadora frase, “infelizmente, todos nós temos de viver fora dos livros”, começa por fazer um paralelismo entre o mito de Dionísio e o acto de ler.

Dionísio era filho de Zeus e da princesa tebana Sémele. Os ciúmes de Hera, esposa de Zeus, levaram a princesa à morte ainda antes do nascimento de seu filho. Mas Zeus resgatou-o do ventre de Sémele e colocou-o na sua coxa, até que se completasse a sua gestação. Nascido o filho, Zeus confiou-o aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros do monte Nisa. Como escreve Gult: “É através do mito do nascimento do deus Dionísio que melhor podemos entender o acto de ler. A acção de ler não é similar ao nascimento de Dionísio ou sequer a ele mesmo enquanto inventor do culto da embriaguez. A acção de ler, esse drama, é a acção de resgate que Zeus faz no ventre morto de Sémele, de modo a fazer com que o seu filho continue a sua gestação, agora na sua própria coxa. A acção de ler, seja que texto literário ou filosófico for, é um gesto de deus pai a resgatar seu filho à beira da morte, na possibilidade eminente da morte. Evitar a morte de um texto é arrancá-lo do ventre inerte da história e trazê-lo até si, para aí viver até que seja capaz de respirar pelos seus próprios pulmões.” Para Gult, não há dois modos de ler. Ler é sempre resgatar um filho ao ventre inerte da mãe e impor-lhe o período gestativo no nosso corpo, até ele ter tempo suficiente para ir à sua própria vida. Ler é isto. Não há ler assim e ler assado. Ler é fazer de Zeus na salvação de um filho seu e de uma mortal. No fim da acção de ler, no fim da gestação, é tempo de esse filho nascer e enfrentar o mundo. Aqui, sim, aqui os filhos distinguem-se uns dos outros. Há filhos e filhos. “Nem todos os filhos que saem de nosso corpo de Zeus são Dionísios! A leitura pode até nem ver a luz do mundo, a leitura pode nascer morta.”

Ler não é escolher caminhos, como faz Hermes, esse deus das moradas que se movem, mas retirar um filho quase morto e abrigá-lo na nossa carne até o devolvermos ao mundo. “Ler não é interpretar, mas ressuscitar, dar vida ao que estava condenado a ser morte.” O drama de ler é igual ao drama da possibilidade iminente da morte de um filho. Ao ler ressuscita-se um filho – pois aquele que para viver ou continuar a viver contraria as leis da natureza, ressuscita – e antecipa-se a própria morte, fica-se deposto no sujeito da morte de cada um que lê. Escreve Gult: “Neste drama de ler, que é o acto de todo aquele que se debruça sobre um livro, transformamo-nos no objecto da nossa morte, passamos a experienciar-nos como morte; o sujeito da minha morte sou eu transformado num objecto perdido de mim mesmo. Isto é aquilo a que chamo o drama de ler: a condição antagónica do esforço de Zeus; a consciência ganha por Zeus de que tudo pode, excepto repetir o seu prazer já vivido ou o momento inaugural de uma descoberta, embora salve um filho.” Neste esforço, neste cuidado, nesta nossa condição de deuses vislumbramos também a nossa própria morte e confirmamos a nossa impotência. Infelizmente não se pode viver dentro de um livro, como diz Gult logo no início, ou dentro de todos os livros, apenas fazer com que, através deles, tenhamos em nós os nossos filhos, as nossas leituras. Se vivêssemos dentro de livros não haveria drama. O drama é também a condição do leitor, preso entre a sua leitura à distância intransponível do livro. O seu filho, colocado na sua coxa durante a leitura, deixará também de lhe pertencer. Ao longo das 150 páginas, Gult conduz-nos por este drama com vários exemplos e reflexões, deixando em suspenso uma pergunta à qual responde no fim, colocando também ele mesmo a pergunta: “Todo o acto de ler é um acto heróico, um acto de Zeus, zeusino? Todo o acto de ler é uma imitação de Zeus, que pode ser bem ou mal sucedida, porque ler é criar. Lembrando uma canção tão popular hoje em dia, Heroes, de David Bowie, que diz que nós podemos ser heróis apenas por um dia, nós somos Zeus no tempo de leitura.” É um livro que vale sempre a pena revisitar.

21 Jan 2020