Nuno Miguel Guedes Divina ComédiaO pudor da dor [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]credito que os grandes inícios da literatura, aqueles que se tornam tão verdade de arranhados pelo uso, merecem ser lembrados. Estão lá devido ao génio de quem os escreveu, prontos para nos socorrerem sempre que deles precisamos. Como é o meu caso agora, que invoco essas primeiras linhas extraordinárias de História Em Duas Cidades (A Tale of Two Cities) de Charles Dickens. Conhecem, certamente: « Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação da escuridão, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero». Dickens falava dos dias que antecederam e sucederam à Revolução Francesa; mas as palavras são tão atemporais que se podem colar aos dias de hoje e a outros que não conhecemos. Traduzem a velocidade e as contradições de alturas em que o mundo nos parece escapar, tão vertiginosa se apresenta a mudança. E é por essa razão que hoje aqui surgem: para justificar uma crónica baseada na perplexidade que as mudanças velozes podem criar. Reparem: não se trata de julgamentos ou sequer opinião – embora ambos estejam sempre presentes, em maior ou menor grau. O cronista, mesmo quando questiona e se surpreende, tenta sempre ter razão ou pelo menos conseguir partilhar essa razão. Mas perante o assunto que aqui me traz não posso nem devo impor seja o que for – apenas tentar transmitir o que sinto. Porque é algo tão íntimo que não pode ambicionar a ser nada mais do que uma reflexão, um desabafo. Falo da dor e do que me parece ser a sua banalização. É algo que os tempos trouxeram e que é familiar a todos; algo que muitos praticam e eu próprio não fui excepção (embora, para ser sincero, me tenha arrependido): a partilha do luto ou da iminência da perda, a exposição daquilo que é mais íntimo, mais primevo até. O anúncio da morte, do luto ou do sofrimento nas redes sociais – e mais propriamente naquela que utilizo, o Facebook – tornou-se banal, quase quotidiano. Falamos da mais terrível dor para uma multidão que não conhecemos – coisa que provavelmente não faríamos há alguns anos – porque vivemos numa ilusão de proximidade. O algoritmo parece transformar toda a gente em amigos e confidentes. E não é verdade. Mas a pergunta que mais traduz a minha perplexidade é: porquê ? Porque fazemos isso? O que esperamos quando o fazemos? A comunicação de uma perda é feita há muito e ainda sobrevive nos poucos jornais em papel. Mas só pede uma resposta daqueles que realmente nos conhecem e estimam e que irão estar presentes na despedida. Não é assim no Facebook: escrevem-se elegias, antecipa-se mesmo o luto. Mas o que se recebe é pouco. As reacções são simples, anónimas, até gráficas. Ninguém que não nos conheça está a chorar, asseguro-vos: poderão ter empatia, conhecer por experiência aquilo que lê. Mas o que ali recebemos pela partida de um ente querido – likes, emojis, “forte abraço” – fica assim no mesmo plano afectivo daquilo que recebemos quando nos morre um animal de estimação. E não, não: um bicho, por mais que o adoremos e consideremos “da família”, nunca poderá equivaler a um pai, um filho, um ser humano. Não duvido por um segundo da autenticidade da dor de quem assim a anuncia. Não é disso que falo. Está-se a perder, parece-me, um pudor que considero essencial para ser humano. A intimidade da dor e da sua partilha banaliza-a; e como a vida é também sofrimento, por extensão banaliza a própria vida. Repito: não existe uma forma ideal de exprimir algo tão do nosso âmago, e muito menos uma classificação de correcto ou incorrecto. Isso seria a mais totalitária das regras. Mas fico perplexo, fico perplexo. O cristianismo primitivo tinha uma forma específica de oração que pedia a Deus o dom das lágrimas, porque chorar é aceitarmo-nos como imperfeição que sempre seremos. Não será preciso pertencer a uma confissão religiosa para perceber a beleza e pertinência desta atitude. Se perdermos as lágrimas, perdemos tudo – e estamos em risco de o perder. Salvemos pelo menos a perplexidade e o pudor da dor nestes tempos vorazes, Primavera de esperança, Inverno do desespero.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasA vida saudável Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro [dropcap]C[/dropcap]ada dor contém enigma que não se resolve assim. Alivia, se me distrair do pé. Por estes dias, demasiadamente muitos, o meu corpo concentra-se algures em torno de um dedo. Tento o diálogo com o dito, também ele já cansado de imprecações, palavrões e outras rimas de quebrar gelo. Não lhe reconheço traço distintivo, além do cansaço de arrostar com quilos e tropeções, toques artísticos em móveis caseiros e mobiliário urbano, quase nunca em bola ou transeunte, apesar dos apetites. Ah, a culpa não lhe cabe. Só um caricaturista, mestre em dores públicas, e nesta privada, podia apanhar a criatura: James Gillray [algures na página]. O ligeiríssimo bálsamo advém da investigação, que permite escapar aos médicos-formados-agora-mesmo-no-google que me atazanam, picando piedade com habitual gozo. Cada passo desfaz-se em impossibilidade que acumula gritos na garganta. O chão ou o lençol, dá igual, tornaram-se instrumento de tortura. Horizontal anuncia-se novo normal, logo agora que preciso de andadura certeira. O bicho acaba de cravar outra unha. Perco a concentração, algo mais se atrasará, agora por razões de tormento. Descubro nos queridos cristais em excesso uma raiz herdada nos cálculos renais que atormentaram, e muito, o progenitor. Depois, o nitrogénio no composto do ácido úrico fraterniza-me com aves e répteis. Alegra-me saber, antes de alegre guinada, que a razão pela qual o guano se faz bom fertilizante está no alto teor de nitrogénio. Nem sempre do excesso resulta desvantagem, mas isso só para os outros. O remédio tinha que ser «um estilo de vida saudável»! Além da actividade física regular, ai!, consta, e cito, a redução («mas não proibição») de alimentos ricos em purinas (carnes, vísceras, marisco e alguns peixes como salmão, truta e sardinhas) e redução do consumo alcoólico, especialmente de cerveja e bebidas brancas. O consumo de refrigerantes e sumos de fruta deve também ser evitado. Em tempos, quando os pobres pouco comiam, a doença era de ricos, pelo que a caça e as carnes jovens são para esquecer. Aquela perdiz desossada, as costeletas de novilho… As conservas, os enchidos e até as sopas, se nelas repousarem caldos processados, estão proibidas. Aquelas anchovas, o bucho! Não sei, mas ou a vida ou o corpo ou ambos andam a querer dizer-me o que já sei: não lhes pertenço. Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro Na luminosa desgraça da quadra poucas são as razões de ânimo. E piora quando, na travessia do inominável deserto do novo puritanismo, não páram de chover cometas. Hoje, soube-se de professor universitário nos antípodas que tornou objecto de estudo os 24 filmes de James Bond. Não para lhe descobrir novos sentidos, em modos de dizer, na ideia de aventura, nas invenções entre o mortífero e o salvífico, mas para concluir que o espião ao serviço de Sua Majestade era alcoólico crónico, que bebericava, por filme, umas 109 vezes. Fez outras contas, que davam como resultado ter o homem trabalhado em coma alcoólico. A conclusão maior e indispensável à humanidade está na «irresponsabilidade das chefias» que tal permitiram. A palavra fantasia, estou certo, desapareceu dos dicionários. Por causa das coisas, bebo uma gota (sim, há por aqui uma ironia qualquer) de um maravilhoso Redbreast (12 anos), que mão amiga me trouxe. O que me leva à de ontem, o apelo à censura da célebre canção, «Fairtale of New York», dos The Pogues, lançado por um estudante, editor de um jornal, e logo secundado por um DJ, costumeiros habitantes de sacristia. Causa? A palavrinha faggot. A vida é bastante abusiva, vamos deixar que a arte seja um sítio fofinho onde descansar um pouco a cabeça. (Melhor dizê-lo: há por aqui um sip de ironia.) As boas intenções estão, finalmente, a fazer da vida em sociedade um inferno. Saudável, claro. Cervantes, Lisboa, 13 Dezembro Um homem corre em caminho nevado de montanha na direcção oposta de um cavalo amarelado levando na mão cabeça de mulher. Um homem agachado ignora a cena, como o pássaro que depenica. Abaixo e ao centro, um olhar infantil interpela-nos. As colagens de Adriano del Valle, nunca antes vistas por aqui, iluminam «O Ultraismo Espanhol e Portugal – Cem Anos de um Movimento de Vanguarda», breve mas intensa exposição que António Sáez Delgado organizou para celebrar momento importante nos diálogos ibéricos. Importantíssimo, digo eu, no peso dos nomes que ignoraram fronteiras para, para lá de pensarem, fazerem em conjunto. Ramón [Gomez de la Serna], outro núcleo da exposição, e Almada [Negreiros], são disso exemplo maior. Acrescente-se Rogelio Buendía, terceiro núcleo, que, com Adriano, se apaixonaram pela literatura deste lado, logo levando Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro aos leitores ibéricos. Revistas, livros, recortes e correspondência, além de fotografias e desenhos, ajudam a desenhar um mapa que nos permite entrar em território fascinante. Esta vanguarda sabia incendiar gestos colectivos, desmultiplicava-se em manifestos, montava antenas de atenção cristalina ao cosmopolitismo navegante das geografias e dos tempos, e alargou o possível. Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro A chegada de provas alegra o dia, ainda que contenham erros ou incorrecções. As novas técnicas fazem com que estejam mais próximas da maqueta inicial, mas, em simultâneo, aproximam-nos mais do livro como ele será. Ou seja, as provas são impressões do documento enviado, sem montagem prévia em acetatos, sem outra intervenção da gráfica, que não o ordenar dos cadernos no formato. (As provas de cor, essas, darão indicações da realidade futura.) Mas o mono pode com extrema facilidade dar-nos emocionante visão do que será o livro, em versão descolorida. Apesar do estrago, em papel e no mais, devíamos trabalhar sempre maquetas tão próximas quanto possível para melhor percebermos a sua personalidade. E detectarmos o que nele não funciona sem o exercício da idealização. Folhei vezes sem conta este «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», belíssimo e perturbador álbum da Mariana [Viana], primeira coedição com a Imprensa Nacional. Casa da Cultura, Setúbal, 14 Dezembro De «Fronteiras» se fez a discussão no «Filosofia a Pés Juntos», logo separando as internas das externas, essas mais óbvias, ainda que sem perderem complexidade, ou não fosse o horizonte também ele uma fronteira. Só pelo esforço ultrapassamos em nós limiares, resolvemos fases, vencemos medos e o que mais nos poderá definir. Esforço que ao tempo pertence, enquanto a definição de comunidade se inscreve no território, no espaço. Sem nunca se afastar da antiguidade e das palavras cujos significados sabe fazer explodir como ninguém, o António [de Castro Caeiro] deixou claro que a identidade se torna central nesta construção a cada instante do próprio corpo e do nosso no de todos. Sem fronteiras não nos orientamos, nem que seja para as derrubar. Certos temas insinuam-se com veemência. Metro, Lisboa, 15 Dezembro As escadas rolantes da estação Baixa-Chiado estão amaldiçoadas. Findos vários meses de paralisia do primeiro lance, em ambos os sentidos, para substituição dos velhos (20 anos…) mecanismos, ei-los que reluzem. Parados. Um sinal cristalino que nada vencerá a degradação dos serviços.
João Luz VozesDor [dropcap]C[/dropcap]omo agulhas espetadas debaixo das unhas. Acutilante prioridade dos sentidos que tudo reduz a pó, que rouba significado onde quer que possa encontrar miolo, até que o tempo pare de contar. Angústia constitutiva que diz quem somos, de onde viemos e para onde vamos, tudo se reduz a mim. Todas as preces e eucaristias, somas múltiplas de adorações, pedaços de vida devotos à transcendência são trazidos de volta à terra através de mim, a força maior. A lancinante puta, mãe de todos os nervos, vertigem dos corações desvairados, ombro falso dos solitários, oásis equivocado dos melancólicos. Todos retornam ao meu espinhoso aconchego, à concórdia deste nó que não desata e que só por fogo pode ser dissolvido. Poder que tolda a visão, que escurece os dias e que humildemente lembra às almas a insignificância da sua natureza, que mancha de fedor o perfume dos problemas quotidianos. Dona dos oprimidos e dos culpados, razão de ser dos pecadores, medida improvável dos descrentes e de todos os espíritos livres e autónomos de dogmas, de amores teóricos e falácias do marketing. Ferro em brasa onde mais magoa, rasgo libertador de sangue, rio de lágrimas gordas, sinfonia de gritos de desespero que dá música à natural dança do que é ser humano. Todos esmagados neste almofariz existencial, triturados até os ossos que se transformam em farinha fina sob a graça da minha pressão, regresso aos elementos químicos básicos, até todos serem energia cósmica que dói, que aflige as estrelas e molesta sem perdão as constelações. Náusea imensa que cresce bem para além das possibilidades, que se agiganta além das características dos sólidos e da fantasmagoria dos vapores. Asco que leva o estômago numa viagem de montanha russa sem altos, só baixos, sempre em queda livre sem ver o fim, sem descanso derradeiro que traga paz. Aflição máxima que busca e sonha com o breu, o silêncio, a dormência, o branco invasor onde se pode dormir em paz, livre o cansaço do sonho. Desejos de recompensas divinas da grande deusa palavra, amor incondicional a uma esquiva ideia de eloquência e ao espírito sempre elusivo, que escapa entre os dedos dos tolos. Captura-se a espaços, aqui e ali, em golpes de sorte e logo de seguida desvanece-se e retorna ao âmago do mal, ao lar das agonias, à certeza da mais completa banalidade devota justamente ao esquecimento. Um corte mais fundo que o outro, precipício íntimo em que se cai quando se pensa que se está a erguer de algo, elevação que se revela queda a pique. Abismo onde a sagacidade adormece quando os olhos se cerram e os dentes rangem. Sentir tudo, sentir e nada poder fazer quanto a isso. Incapacidade como essência perante a indiferença fatal da biologia. Não sou a dor que purifica, a dor que busca prazer, a dor sacramental de masoquista elevação espiritual, não sou a dor que adorna estados de mente, bibelôs emotivos ou desesperos recreativos. Sou o rasgo que devora nervos e que vive sempre com o homem e a mulher. Sou calvário, suplício e a mais completa das mortificações. Sou a implacável sílaba máxima que se berra surda em múltiplos “ais”, que dispensa verbo, predicado e que dilacera o sujeito. Para muitos, sou a via para o paraíso e o eterno sofrimento do inferno, essa evangélica contradição que é o cimento dos mitos. O meu nome é Adamastor, a soma de todas as tormentas, farpas enterradas em carne sensível, cilício cravado na fé, flagelação, a pena máxima aplicada a toda a criação.
Hoje Macau PolíticaNuno Prata – “Essa dor não existe (tu isso sabes, não sabes?)” “Essa dor não existe (tu isso sabes, não sabes?)” Dessa dor só te lembras Nas alturas em que inventas Vãos motivos para sofrer Essa dor não a trazes Essa dor só a usas Quando queres fingir que não sabes rir Essa dor não existe Essa dor nunca sentiste Essa dor não a tens (Tu isso sabes, não sabes?) Essa dor não te serve. Essa dor só a vestes Quando já não tens mais nada a dizer Essa dor dá-te jeito Essa dor é perfeita Para termos todos pena de ti Essa dor não é nada Essa dor só acaba Com o que ainda resta de ti (Mas isso sabes, não sabes?) Porque é que dela precisas? Será mesmo que acreditas Que o que não foi É aquilo que hoje te rói? Não te maces Não te canses Não te mates Pois outros homens virão Fazer de ti o que eles são Essa dor não é tua Acho que a achaste na rua Ingrato resto de alguém Essa dor não é nada Essa dor só acaba Com o que ainda resta de ti Essa dor não existe Essa dor nunca sentiste Por isso sabe-te bem (Isso tu sabes que eu sei) Nuno Prata
Carlos Morais José EditorialNão temer a perda [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]inguém me levaria a mal de ser um poucochinho, porque esse é o poucochinho que todos sonhamos talvez ser. Mas acrescentar algo ao curso das coisas revela-se uma tarefa difícil, por vezes morosa, doutras absurda. Existe uma quase crença na assumpção de que nos definimos pela dor e contra ela. A dor cerceia os territórios, ensina-nos onde podemos ir e que espaços nos estão vedados, interditos. A dor é uma paidéia, um curso inferior que nos constrói como sujeitos, ora tementes ora desafiantes. É que existem limites para a dor, para a paciência do animal constantemente submetido a uma qualquer tortura, seja ela de ordem física, mental ou social. E, quando esses limites são atingidos, o animal ousa finalmente mostrar os dentes. É o princípio de todas as revoluções. Para evitarmos a dor muitas vezes nos encolhemos, nos menorizamos, tendemos a desaparecer dos quotidianos, na organização proposta, nas tarefas que nos matam ao matar o tempo. É por termos evitado a dor, na forma de humilhação ou desprezo alheio, que muitos de nós não estão com a pessoa que realmente amaram ou na profissão que realmente as realizaria. Para ser é preciso, dizem, sofrer. Nunca gostei desta ideia porque entendo que mesmo a experiência da dor, do desconforto, não significa obrigatoriamente sofrimento. Qualquer mudança é um incêndio e a contemplação das chamas um prazer eufórico. Porque somos humanos, temos uma capacidade acrescida de colorir as nossas sensações e os nossos medos. De modo a realmente fruir e a desenvolver coragem. Para ser mais, não se pode temer a perda.