Joel Brandão está a realizar um documentário sobre comunidades locais

Natural do Porto, o mestrando em cinema quis fazer diferente e propôs-se filmar Macau e as suas gentes. O documentário estreia em Setembro no território, mas o objectivo de Joel Brandão é levá-lo a festivais de cinema por esse mundo fora

Veio para Macau terminar o mestrado na Universidade Católica do Porto. Como surgiu o interesse em retratar as diferentes comunidades do território? 

Terminei agora o mestrado em Cinema, que inclui o estágio. Quis fazer uma coisa diferente e propus à faculdade vir para Macau para fazer um documentário. Aceitaram e eu vim, sendo que o financiamento é meu. Foi uma aventura e um projecto pessoal. O tema foi discutido com o meu orientador, o José Manuel Simões da Universidade de São José. Tinha conhecimento de que ele já tinha abordado os temas relacionados com as ligações entre as comunidades de Macau. Ele, melhor do que eu, conhece o território e, após algumas conversas, achei que seria um tema com interesse.

Do trabalho que desenvolveu até agora neste projecto, o que é que mais o surpreendeu?

O que mais me impressionou foram as condições. Filmei num estabelecimento de comidas chinês e não fazia ideia de que aquele lugar tinha aquelas condições. Outra coisa que, de alguma maneira, também me surpreendeu foi a dificuldade de interacção entre a comunidade chinesa e as restantes. Penso que a comunidade chinesa tem uma mentalidade muito mais fechada e não se dá tanto a conhecer. Têm uma cultura muito intrínseca, em que vivem muito para eles e para as suas famílias. Também aprendi que é uma comunidade que, depois de ganhar alguma confiança em nós e se sentir mais à vontade, é capaz de nos ter como bons amigos. Talvez a parte mais fechada desta cultura seja mais visível nas gerações mais antigas. As gerações mais novas já têm outros recursos, sabem inglês e têm mais formas de comunicar.

Estava à espera de que as comunidades comunicassem mais entre elas? 

Sem dúvida. Existem muitas comunidades diferentes no território. A comunidade filipina é muito grande. Mesmo assim, sinto que, antes do documentário e depois das gravações, há ainda muito a trabalhar no que respeita à ligação e aos pontos de comunicação entre as diferentes comunidades que convivem aqui.

O que é que este documentário pode vir a transmitir? 

Faço um documentário muito aberto. A ideia é que o espectador, ao ver o filme, crie a mensagem que posso querer transmitir. Filmei de uma forma diferente. Filmei três comunidades através do acompanhamento de apenas uma pessoa. Escolhi uma pessoa chinesa, uma filipina e uma portuguesa. Foquei-me na forma como estas pessoas interagem com as outras no seu dia-a-dia, na forma como interagem com a cidade e com o que lhes é próximo. No caso do português e do filipino quis saber como se relacionavam, por exemplo, com as mulheres. Com o protagonista chinês quis saber como é que interage com os clientes no café. Os locais foram escolhidos por estas pessoas. O espectador vai ver nestas imagens como estas pessoas falam, se relacionam e como lidam com o quotidiano e vai criar, internamente, a ligação entre estas pessoas. Apesar de aberto, é um filme em que é possível perceber a opinião de cada uma destas personagens reais e a opinião que têm de Macau quanto ao seu passado, presente e futuro.

Têm sido feitos vários documentários sobre Macau. Acha que este filme vai trazer alguma coisa de diferente e dar uma imagem do território contemporânea? 

Penso que tenho uma forma diferente de fazer os meus documentários, que é visível no tipo de linguagem e de composição que faço. Coloco-me na intimidade das pessoas mesmo estando do lado de fora. É quase como estar na berma da estrada a filmar para dentro de um café e deixar as coisas acontecerem naturalmente. O que posso trazer de novo é a temática, que é sempre diferente. A nossa forma de ver as coisas é sempre diferente da dos outros. Depois, é a forma como filmo e edito, que penso que também é só minha.

Tem sentido dificuldades em fazer o seu trabalho aqui em Macau? É fácil produzir um filme no território? 

Nesta área é preciso muito trabalho de campo. É necessário andar muito pelas ruas e o material é pesado. Este clima que agora se sente, abafado e húmido, é uma das grandes dificuldades. Em termos artísticos e narrativos é fácil conseguir um retrato de Macau. É um espaço muito interessante e não há muitos locais em que isto se possa fazer. Só o facto de estar a fazer um trabalho na Ásia, com uma cultura completamente diferente e ainda ter esta mistura de comunidades, é excelente e muito diferente.

Há ainda um grande desconhecimento de Macau por parte dos portugueses. Acha que este documentário vai ajudar na divulgação de Macau junto do público português?

Sim, sem dúvida. Neste filme não retrato apenas as comunidades. Tenho imagens da cidade, de paisagens e de locais característicos do território. Os portugueses que vão ver este documentário vão ter uma percepção completamente diferente do que é Macau. Concordo quando fala que há muito desconhecimento em Portugal acerca do território.

Estava à espera de encontrar esta herança portuguesa aqui, nomeadamente ao nível do património?

Da primeira vez que cá vim, não contava nada com esta presença. Já tinha lido acerca de Macau e sabia que havia edifícios com características idênticas aos de Portugal. Mas chegar aqui e ver a calçada portuguesa e esta arquitectura, ver as ruas com o nome em português e tantos portugueses, foi uma surpresa.

Como foi a escolha dos protagonistas deste documentário? 

Primeiro escolhi as comunidades que queria retratar. Só tinha dois meses de trabalho pela frente e tinha de ser objectivo. Peguei naquelas que me pareceram as comunidades mais óbvias aqui. Depois foi muito simples, o protagonista chinês, o William Chen, era o dono do café onde eu ia todos os dias tomar o pequeno-almoço e criei uma empatia com ele, já da primeira vez que cá estive. Quando regressei, voltei ao estabelecimento para comer e ele lembrava-se de mim. Fomos conversando, acabei por convidá-lo e ele mostrou-se muito receptivo. O protagonista português apareceu porque estava a filmar pela rua e cruzei-me com a mulher dele. Ela perguntou-me o que é que estava aqui a fazer. Expliquei-lhe e disse que precisava de conhecer pessoas portuguesas. Ela sugeriu o marido que já cá está há 25 anos. E assim foi.

Este documentário é, portanto, um resultado de vários acasos?

Sim, quase lhe chamava fragmentos. São pequenas peças que vou encontrando e vou juntando. Mas este também é o segredo do documentário, o de registar o que se vai vendo e o que vai aparecendo. Tinha uma ideia diferente do documentário antes da sua produção e, depois de começar a filmar e de ver as imagens, vamos ter um resultado muito diferente dessa ideia. No documentário estamos sempre sujeitos a alterações.

É o género de que mais gosta? 

Gosto de contar histórias, quer seja em documentário, ficção ou animação. Penso que, para qualquer realizador, o segredo é contar uma história em que de alguma forma, acredite. Acredito nas histórias que faço. Se são bem ou mal contadas, cabe aos críticos dar essas opiniões.

27 Jun 2017

Projecto @NossaLíngua | Documentário sobre português filmado em Macau

O projecto online “@Nossa Língua” já vai na segunda edição e tem como objectivo a gravação de um documentário sobre o idioma de Camões em Macau. Já foi iniciada uma campanha de recolha de fundos, bem como contactos com entidades locais.

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rimeiro foram as imagens no Instagram, agora as imagens reais, em formato documentário. O projecto online “@Nossa Língua” visa abordar a forma como a língua portuguesa é falada e transmitida em vários países. Em Macau, o documentário que será gravado não esquecerá o patuá.

Ao HM, os directores do projecto “@Nossa Língua”, Luciane Araújo e Júlio Silveira, falam da iniciativa que requer, para já, apoio financeiro para que possa ser realidade.

“Estamos em contacto com autoridades, fundações, institutos e outras organizações [de Macau]”, disseram. “A Direcção dos Serviços de Turismo de Macau sinalizou um apoio para o alojamento, mas ainda estamos a aguardar resposta”, acrescentaram. A Fundação Oriente foi outra das entidades que já foi contactada, embora ainda não haja uma resposta em concreto. Foi também contactado o Instituto Camões ou a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entre outras instituições.

“Acreditamos que o projecto @NossaLíngua seja a concretização da missão dessas organizações: o estreitamento da cooperação entre os povos lusófonos”, apontaram os mentores da iniciativa.

Há dois anos, o “@NossaLíngua” dava os primeiros passos através da publicação de fotografias na rede social Instagram. Estas deveriam mostrar a forma como a língua portuguesa é manifestada nos vários países ou regiões onde é língua oficial. Em cada um desses lugares, existia um representante a coordenar a iniciativa, que foi transformada em livro.

A próxima etapa é a gravação de um documentário, sendo que esse projecto já foi feito em Cabo Verde, Portugal e Brasil. “O filme foi seleccionado e exibido no Festival de Cannes 2016, na Mostra Short Film Corner, e teve exibições em Cabo Verde e Brasil”, explicaram Luciane e Júlio.

Vamos conversar

Para pensar o documentário que será realizado em Macau, Luciane Araújo e Júlio Silveira partiram de duas perguntas. “Nós efectivamente falamos a mesma língua? Se falamos a mesma língua, por que não conversamos?”, revelaram.

“Na tentativa de responder a essas perguntas, mostramos como o idioma português é visto ou vivido em cada lugar; falamos sobre as línguas que derivam do idioma, como o patuá de Macau e o crioulo de Cabo Verde, além de investigarmos as influências culturais e políticas entre os países lusófonos. Mostramos ainda como cada país vê o outro e como entende a lusofonia”, referiram.

Nos documentários já realizados, participam escritores como Mia Couto, José Luís Peixoto, Germano Almeida e Ondjaki. Há também “professores e gente da rua”. “Também tentamos mostrar o que nos faz parecidos e o que cada lugar tem de único.”

Os mentores do “@NossaLíngua” afirmam já ter conseguido obter um terço do orçamento necessário. “Esperamos que o público de Macau possa ter conhecimento desse projecto através desse material. Todos podem participar e ainda ganhar brindes.” Os interessados podem fazer a sua contribuição através de uma plataforma de crowdfunding.

Para Luciane Araújo e Júlio Silveira, esta iniciativa está apenas no começo. “@NossaLíngua é na verdade um movimento: viemos descobrindo e estreitando amizades em nove países diferentes. O primeiro episódio nos uniu mais ainda (especialmente Cabo Verde e Brasil) e a continuação se impõe. Não podemos deixar as amizades para trás: é muito rico o potencial de intercâmbio cultural, económico e de afecto entre os povos”, concluíram.

26 Mai 2017

Cinema | Joshua Wong em documentário “inspirador” para norte-americanos

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m documentário sobre o jovem de Hong Kong que fundou o movimento Scholarism está a dar que falar nos Estados Unidos. “Joshua: Teenager vs. Superpower” foi distinguido com o prémio do público Sundance Film Festival

O activista Joshua Wong, que se tornou o rosto dos protestos pró-democracia em Hong Kong há dois anos, quando ainda era um adolescente, é a estrela de um documentário que está a inspirar os norte-americanos, conta a Agência Lusa.

Assinado pelo cineasta Joe Piscatella, “Joshua: Teenager vs. Superpower” é o novo documentário sobre o jovem activista de Hong Kong, que no final de Janeiro conquistou o prémio do público no Sundance Film Festival na competição dedicada ao World Cinema Documentary.

“A reacção [do público norte-americano] foi muito, muito boa. (…) Tivemos conversas muito interessantes nas sessões”, disse à Lusa o também activista de Hong Kong Derek Lam, que acompanhou Joe Piscatella e Joshua Wong ao Sundance Film Festival, nos Estados Unidos.

O documentário, que acompanha o activismo de Joshua Wong, aborda directa e indirectamente vários acontecimentos relacionados com a sociedade chinesa, incluindo a repressão estudantil na Praça de Tiananmen, a 4 de Junho de 1989, em Pequim, e a transição de Hong Kong da soberania britânica para a China, a 1 de Julho de 1997, explicou Derek Lam.

“Este filme é uma introdução muito boa sobre a situação política em Hong Kong”, para aqueles que se interessam pela “história ou em saber por que é que é uma cidade tão diferente de outras na China”, disse.

“O ponto principal” é que o público ocidental “vai ficar a saber mais sobre a situação política em Hong Kong”, disse Derek Lam, afirmando que “talvez o mais importante” é que o filme inspira as pessoas a lutar pela defesa dos ideais em que acreditam.

Milhares de pessoas têm-se manifestado nos Estados Unidos em protesto contra a eleição, tomada de posse, e medidas de Donald Trump desde que é Presidente.

“Muitas vezes nas sessões de perguntas e respostas [após a exibição do filme] falavam do Presidente [Donald] Trump e perguntavam-nos o que podiam fazer. Talvez este filme lhes dê alguma inspiração: se queres mesmo mudar a tua situação, é altura de te afirmares”, disse.

Em Hong Kong nem por isso

Além da distinção no Sundance Film Festival, o documentário “Joshua: Teenager vs. Superpower” foi seleccionado pela Netflix, serviço norte-americano de televisão pela Internet.

Já a exibição em Hong Kong é vista como “difícil” por Derek Lam. “As salas de cinema têm uma autocensura muito grande. É quase impossível”, disse.

No ano passado, o filme “Ten Years”, sobre a próxima década em Hong Kong sob a influência chinesa – eleito “melhor filme” nos Hong Kong Film Awards –, foi um sucesso de bilheteira até ter sido retirado das salas de cinemas da antiga colónia britânica pelo que vários observadores apontaram como razões políticas.

Nascido em 1996, Joshua Wong era um aluno do secundário quando, aos 14 anos, fundou o grupo estudantil Scholarism, que liderou a luta contra a disciplina de Educação Nacional que o Governo de Hong Kong pretendia introduzir nas escolas em 2012.

Joshua Wong continuou os protestos de rua, ficando internacionalmente conhecido como o rosto das manifestações pró-democracia e em prol do sufrágio universal para a eleição do Chefe do Executivo que paralisaram várias zonas de Hong Kong durante 79 dias em 2014.

Esses protestos, conhecidos por “Umbrella Movement” [Movimento dos Guarda-Chuvas], acabaram, no entanto, por ser desmobilizados pelas autoridades, sem qualquer concessão por parte do Governo, mantendo-se o ‘status quo’ na escolha do líder da cidade por um colégio eleitoral de apenas 1200 membros, a maioria ligados a interesses pró-Pequim.

Em 2016, Joshua Wong co-fundou o partido político Demosisto, que defende a realização de um referendo sobre a “autodeterminação” e o futuro estatuto de Hong Kong após 2047.

Em Setembro, o Demosisto elegeu Nathan Law, de 23 anos, como o mais novo deputado de Hong Kong. Na altura, com apenas 19 anos, Joshua Wong não se candidatou por não ter a idade mínima exigida de 21 anos.

O agora estudante universitário de 20 anos continua também a participar em fóruns e palestras, tendo sido notícia quando foi impedido de entrar na Malásia e Tailândia, e já este ano atacado em Taiwan, juntamente com outros activistas e deputados, por manifestantes pró-Pequim. “Não ganhámos a última batalha”, disse, afirmando, no entanto, que continua “optimista em ganhar a guerra”, disse à AFP Joshua Wong.

6 Fev 2017

DocLisboa | O Chá Gordo de Catarina Cortesão Terra e Tomé Quadros

Fazem documentários sobre Macau porque é neste exercício onde a realidade toca a ficção que vão, também eles, pensando na cidade onde vivem. Catarina Cortesão e Tomé Quadros encontraram no chá gordo a formação de uma comunidade de fusão, o tempo do território. Para que a memória, que ainda existe, se viva já.

[dropcap]“C[/dropcap]há Gordo de Memórias” é apresentado hoje ao final da tarde no âmbito da extensão a Macau do DocLisboa, uma iniciativa organizada pelo Instituto Português do Oriente. Não é o vosso trabalho mais recente.
Catarina Cortesão (C.C.) – Não, não é. Este documentário foi feito no âmbito do Macau DocPower, com o apoio do Centro Cultural, em 2013/2014. Pelo facto de haver tempos muito curtos para a apresentação da ideia, filmagem e edição, dentro dessas limitações e do apoio que nos deram, iniciámos o projecto sobre o chá gordo. Começámos a fazer a nossa pesquisa, começámos a falar com vários intervenientes da comunidade macaense para nos informarmos sobre quem eram os grandes cozinheiros. Munimo-nos do nosso conselheiro, Fernando Sales Lopes, que estuda a gastronomia macaense há vários anos – tem uma tese de mestrado, é um investigador ligado a essa área, na vertente da gastronomia macaense como sinal identitário da própria comunidade. Tivemos várias conversas com ele, foi-nos apontando caminhos, também construímos os nossos. Fomos vendo quem eram os cozinheiros mais emblemáticos – Aida de Jesus, Graça Pacheco Jorge, Rita Cabral, Carlos Cabral, Cíntia Conceição Serro. Destas conversas que fomos tendo, mais questões foram surgindo em relação à gastronomia macaense e o projecto cresceu. E cresceu numa determinada direcção.

E que direcção foi essa?
C.C. – Não queríamos fazer uma mera peça jornalística, esclarecedora do que é o chá gordo dentro da gastronomia macaense – pelo contrário, queríamos fazer uma narrativa fílmica a partir da mesa do chá gordo, onde estão os principais pratos da gastronomia macaense. Olhamos para a mesa do chá gordo, que é extensa, e nela vemos definidos não só o percurso e o que é a comunidade macaense, mas também o percurso dos portugueses até chegarem a Macau. Verifica-se o uso de ingredientes de Malaca, de Goa, de Angola, de Moçambique, e modos de confecção que, por sua vez, reflectem a aliança entre a cultura portuguesa gastronómica com a cultura chinesa, que também é bastante marítima. Daqui nasceu a primeira gastronomia de fusão, que é a gastronomia macaense.

Dizia que, quando se olha para a mesa do chá gordo, vê-se a comunidade.
C.C. – Vê-se a comunidade e a história de Macau dos últimos 300 ou 400 anos. Isso é muito notório logo na primeira percepção e mais ainda quando se tenta saber de onde vêm os pratos e se fala com as cozinheiras, quando elas apresentam os livros de receitas. São autênticos tesouros, na medida em que vão circulando entre as melhores cozinheiras ou são cedidos às pessoas da família com mais apetência para continuar esse espólio e dar bom nome à família através dessa mesa. Quando as pessoas achavam que não havia alguém que pudesse continuar com esse testemunho de uma forma destacada na comunidade macaense, levavam os livros de cozinha para a cova. Ou seja, não transmitiam as receitas, não as partilhavam. Há receitas da Graça Pacheco Jorge, do livro que era da tia, em que está escrito em baixo ‘não partilhar esta receita com qualquer pessoa’.

Como é que se faz uma abordagem mais cinematográfica a um tema que facilmente pode cair, em termos de tratamento, num documentário do género jornalístico?
Tomé Quadros (T.Q.) – Procuramos, de alguma forma, seguir a máxima de John Grierson, quando diz que o documentário deve ser abordado de uma forma criativa – isto dito no final da década de 20 do século passado. Significa que pretendemos fugir do documentário como uma peça jornalística e encará-la como narrativa fílmica tout-court. Procuramos com isso introduzir mecanismos da ficção no documentário, procuramos dirigir os nossos entrevistados, na medida do possível, como se de actores se tratassem, procuramos ter um cuidado estético bastante grande – e não só, em termos de continuidade, de racord também –, para que tudo faça sentido. Desta forma, introduzimos um narrador presente – a Nair Cardoso, uma jovem macaense – que, no fundo, conduz o espectador pelas diferentes estórias que fecham este todo que é a narrativa fílmica acerca do chá gordo. Temos um fio condutor, uma história, que coincide com a realidade: a Nair regressa a Macau passados alguns anos de ter ido para Portugal e vem à procura de um livro de receitas que era do avô macaense. O livro tinha sido escrito pela avó chinesa, que tinha aprendido para que toda esta gastronomia macaense existisse em casa. Há um dia em que encontra este livro no sótão da casa e guarda-o. Vai procurar, através do livro, as raízes da identidade, memória e cultura macaenses. Claro que houve uma transformação muito grande da simbiose homem-cidade, mas essa memória, a cultura e a identidade perduram.

É um documentário para memória futura?
T.Q. – No fundo, o que procurámos com o documentário é que sirva como um espelho, que a própria comunidade se veja ao espelho. Por exemplo, na questão das receitas, é muito complicado ter acesso e foi um dos maiores obstáculos, mais do que até ganhar confiança da parte dos intervenientes. Assistimos a um momento talvez único: a Cíntia Conceição Serro cedeu aos arquivos do Instituto Cultural todo o espólio que tinha herdado em termos de receitas e manuscritos escritos. Temos isso no documentário. É interessante ver que também há uma tomada de consciência por parte dos intervenientes, de que afinal esta memória deve ser mantida.

Não são realizadores profissionais, na medida em que têm outras ocupações. Há vários anos que fazem documentários sobre a cultura de Macau. Como é que conseguem ir trabalhando nesta área, que exige todo um processo de pesquisa? Sentem muitas dificuldades?
C.C. – Temos bastantes dificuldades pelo facto de sermos uma equipa muito pequena. Eu e o Tomé fazemos 80 por cento do trabalho. Depois contamos com o Daniel Saraiva para o som e agora temos uma nova pessoa que nos está a ajudar, o João Cordeiro. Temos ajuda nas filmagens e coloração. Nestes processos temos arranjado sempre alguém que nos ajuda por ser especialista na matéria. É muito difícil porque temos vidas profissionais exigentes e as nossas famílias. Isso faz com que exista alguma pressão, e de alguma forma, o tempo nos escape. O tempo que é dado aos projectos no Centro Cultural é muito pequeno, em seis meses temos de fazer tudo, o que cria muita pressão, mas são opções que fazemos. Temos de gerir muito bem o tempo. Somos bastante curiosos e gostamos de ter a percepção daquilo que acontece. Em Macau ainda não existe essa memória construída em termos de narrativas fílmicas. Sobre o chá gordo não há nada, apenas alguns episódios em que as pessoas descrevem o que poderá ser, mas algo muito insípido. O grande desafio é que adoramos filmar e editar, e apreciamos o produto final. Depois de estar feito, passamos para outro, porque queremos fazer cada vez mais. Já estou a pensar no projecto seguinte.

T.Q. – O cinema foi o lugar que nos deu a conhecer um ao outro e foi onde a memória futura teve lugar. A Catarina tinha alguma formação e trabalho feito em fotografia, com uma grande base no teatro, e com grande desejo de desenvolver algo na área do cinema. Partilhávamos o mesmo olhar e as mesmas preocupações, e procurávamos fazer cinema em conjunto. Eu trazia a formação da Escola das Artes do Porto, em som e imagem. Se calhar trazia um olhar mais formatado e menos livre, e a simbiose com um olhar mais livre e outro mais técnico resultou. O documentário surgiu como o modelo de pensar o cinema mais apropriado porque nós, além da questão do cinema, tínhamos a vontade muito própria de falar de Macau, que nos apaixona. Sentimos que havia um vazio por preencher. Havia que começar a trabalhar sobre a memória, cultura e identidade de Macau, e encontrámos o formato certo.

Já estão a pensar no próximo documentário?
T.Q. – Temos o “Time of Bamboo”, que está quase terminado, foi o projecto deste ano, que vem na sequência da memória de Macau. Há um paralelismo com o chá gordo em termos do conhecimento que passa de geração em geração. Não há um livro do saber do bambu, como as estruturas são calculadas. Tentamos fazer uma ponte entre o legado e aquilo que pode vir a ser o futuro do bambu.

C.C. – Em relação a projectos de futuro, ando interessada sobre a questão linguística. Ando a reflectir porque é que é difícil ao estrangeiro falar chinês e as crianças não têm acesso à aprendizagem da língua. Não são apenas os portugueses, mas os estrangeiros em geral. Porque é que isso não acontece nas escolas? Qual é a questão, o problema? Tem que ver com uma questão de vivência? Acho que seria um tema interessante para fazer um documentário. Apetece-me fazer um documentário sobre crianças e jovens dentro dessa questão linguística, das diferenças das línguas, o ‘lost in translation’. Comecei a escrever um guião, embora seja para uma curta-metragem, que reflecte essa faixa etária. Mas é uma história que tem algumas aventuras, à volta dos portugueses, chineses e macaenses. É sempre esse o meu ponto de reflexão.

18 Nov 2016

Cinema | Documentários e filme de Macau em Espanha

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]inco películas made in Macau vão ser exibidas em Espanha, num evento de cinema que terá lugar em Granada. “Uma Ficção Inútil”, de Cheong Kin Man, é o único filme a ser mostrado, mas um documentários de dois portugueses radicados em Macau foi outra das escolhas.
“Era uma vez em Ká-Hó”, da autoria de Hélder Beja e Filipa Queiroz, jornalistas, fala da antiga leprosaria que se situava no espaço agora abandonado. Ao longo de 30 minutos, os autores quiseram mostrar aquilo que foi mais do que documentar e investigar uma história sobre a qual pouco se sabe e o estigma da lepra.
“A experiência de conhecer de perto estas pessoas e esta realidade tão marginal e desconhecida de Macau foi um grande desafio. Uma experiência inesquecível. Macau e a história das suas gentes estão a ficar dramaticamente submersas pela realidade do jogo e do desenvolvimento desenfreado do território por isso acho que é mesmo importante contar estas histórias”, explica no comunicado Filipa Queiroz, co-autora do documentário, cuja banda sonora ficou a cabo do músico português Noiserv.
O documentário é apresentado no sábado, no Festival Internacional de Cinema “Otoño Antropológico”, em conjunto com “Who Are Those Devils”, de Penny Lam, e “As Fontes de Água de Macau” realizado por Season Lao e produzido por Cheong Kin Man.

Com distinção

Ontem, foi a vez de “Uma Ficção Inútil” ser apresentada no festival de Granada, onde foi nomeada para o melhor filme experimental chinês. O filme já passou em dezenas de outros festivais, tendo sido merecedor de distinções. Desta vez, foi do agrado do público espanhol, sendo que Cheong Kin Man recebe, no domingo, a “Distinción Amarilla” na Corrala de Santiago da Universidade de Granada.
“A cidade de Granada foi considerada pelo reputado cineasta José Val Del Omar como o ponto de encontro necessário entre o Ocidente e Oriente. Por isso, estes filmes de Macau vão ser apresentados ao público da cidade pelo jovem realizador Cheong Kin Man, que tomou por si próprio a iniciativa de promover a cultura da sua terra-natal”, descreve, em comunicado, o director do Festival, Manuel Polls Pelaz.
O evento tem o apoio do Instituto Cultural.

11 Dez 2015