Cinema | Extensão a Macau do DocLisboa entre 5 e 10 de Novembro

A extensão a Macau do DocLisboa está à porta. Entre os dias 5 e 10 de Novembro, vão ser exibidos 14 filmes, com destaque para a estreia no Oriente de “Pé San Ié – O poeta de Macau”, um ensaio visual sobre o exílio de Pessanha. A edição deste ano apresenta ainda os filmes vencedores do Sound & Image Challenge 2017 e EU Short-film Challenge 2017

 

[dropcap]E[/dropcap]stá aí a grande festa do cinema documental. Pela sexta vez, chega a Macau a extensão do festival DocLisboa, que já vai na 16ª edição. Entre os dias 5 e 10 de Novembro, vão ser exibidos 14 filmes, com início na Cinemateca Paixão e continuação na Sala Dr. Stanley Ho, no Consulado-Geral de Portugal em Macau.

A cerimónia de abertura do evento, organizado pelo IPOR, tem como destaque a estreia em “casa” de “Pé San Ié – O poeta de Macau”. A sessão inaugural marca a primeira vez que o ensaio cinematográfico sobre o “exílio do maior poeta simbologista português: Camilo Pessanha” é exibido em Macau, lê-se no comunicado que anuncia a extensão do DocLisboa. Da autoria de Rosa Coutinho Cabral, produzido por Maria Paula Monteiro, o filme conta com a participação de Carlos Morais José, que “interpreta vários personagens e ajuda a realizadora a encontrar a singularidade deste poeta “fin de siécle”, na longínqua cidade de Macau onde viveu, escreveu e morreu”. O filme será exibido às 18h de 5 de Novembro na Cinemateca Paixão.

Em comunicado, a organização destaca o sucesso com que o género documental tem contribuído para a internacionalização do cinema português, “como atestam os mais de vinte prémios nacionais e internacionais que vários títulos portugueses inseridos neste género fílmico receberam, só durante a primeira metade de 2018”. A extensão do DocLisboa tem como objectivo celebrar esse sucesso e reforçar “o desenvolvimento das trocas culturais entre Portugal e a RAEM”, “naquilo que é hoje um eixo fundamental da estratégia nacional para a promoção da cultura e das artes”.

Som e imagem

Outro dos pilares do cartaz deste ano da passagem do DocLisboa por Macau é a exibição dos filmes vencedores dos concursos Sound & Image Challenge 2017 e EU Short-film Challenge 2017.

Assim sendo, a partir das 18h do dia 6 de Novembro, terça-feira, são exibidos no Auditório Dr. Stanley Ho, no Consulado-Geral de Portugal em Macau, uma série de películas premiadas nos concursos mencionados. Este dia arranca com a exibição de “Cheirar o cheiro”, de autoria de Chu Hio Tong, que venceu o Prémio Identidade Cultural de Macau do Sound and Image Challenge. O filme gira em torno do início da relação amorosa entre John e Faye, um fascínio totalmente dominado pelo olfacto e que leva a uma frustrante troca de identidade desvendada, precisamente, pelo cheiro.

O dia prossegue com a exibição de “Overlunch”, que ganhou o prémio EU short film challenge / EU short film challenge award. A película, de autoria de Helen Chai Sam I, foca-se na forma como quatro funcionários de escritório decidem o sítio onde vão almoçar. Diariamente, os diversos cenários por onde passam os colegas de trabalho reflectem ângulos e visões sobre “propaganda eleitoral, política e as implicações morais da persuasão”. Ainda no dia 6 de Novembro é exibido “Vira Chudnenko”, de Inês Oliveira. O filme foca-se num episódio trágico que chocou Portugal, quando quatro cães esfacelaram uma mulher até à morte.

Documentos lusófonos

Na quarta-feira, dia 7 de Novembro, é exibido “Spell Reel”, de Filipa César. O filme resulta do arquivo de material audiovisual de Bissau e explora a forma apaixonada como nasce o cinema guineense, “enquanto parte da visão descolonizadora de Amílcar Cabral, o líder da libertação assassinado em 1973”. A película de Filipa César é exibida às 18h30, no Auditório Dr. Stanley Ho.

No dia seguinte, o destaque vai para “O Canto do Ossobó”, de autoria de Silas Tiny, um filme que retrata as maiores roças de produção de cacau em São Tomé e Príncipe durante o período colonial português. A película fez-se com o regresso do cineasta ao seu país onde encontrou vestígios de um passado marcado pelo trabalho forçado frequentemente equiparado à escravatura.

“Ramiro”, de Manuel Mozos, é exibido no dia 9 de Novembro, também às 18h30 no Auditório Dr. Stanley Ho nas instalações do consulado. O filme retrata a vida de Ramiro, um “alfarrabista em Lisboa e poeta em perpétuo bloqueio criativo. Vive, algo frustrado, algo conformado, entre a sua loja e a tasca, acompanhado pelo cão, pelos fiéis companheiros de copos e pelas vizinhas: uma adolescente grávida e a avó a recuperar de um AVC”.

A sexta sessão da extensão de Macau do DocLisboa é marcada por “Altas cidades de ossadas”, de João Salaviza, um filme que explora as questões filosóficas sobre o que é o ser humano num contexto despido de tecnologia.

Finalmente, a fechar a extensão de Macau do DocLisboa, é exibido no dia 10 de Novembro, às 17h30, no Auditório Dr. Stanley Ho, o documentário “Camilo Pessanha – 150 anos depois”, de autoria de Rosa Coutinho Cabral. A película centra-se na vida e obra do autor de Clepsydra e encerra, em beleza, a festa do cinema documental.

30 Out 2018

Pe San Ié – o poeta de Macau

[dropcap]T[/dropcap]eve estreia esta sexta-feira na sala Manuel de Oliveira do Cinema S. Jorge em Lisboa, no segundo dia do 16ª do Festival Internacional DOCLISBOA.

Passava pouco das 18h30 m quando a sala ficou escura e a tela se ilumina num filme que se propõe trabalhar o exercício do cinema numa viagem fantasmática a uma materialidade impossível, a do corpo e olhar do poeta Camilo Pessanha no seu habitar da cidade de Macau, lugar da sua vida e do seu exílio.

O filme anuncia-se a si mesmo como filme ensaio em quatro capítulos, que se pretendem mudança de ângulo no olhar sobre o mesmo tempo e espaço. Como se sabe, o ponto de vista é no cinema a singularidade da escrita cinematográfica, a assinatura autoral.

Um corpo, um homem, um personagem, um sujeito, surge e ocupa a tela, depois de alguns momentos de imagens difusas que se fundem e vão perdendo o carácter de dissipação na afirmação cada vez mais nítida tinta no papel tornada palavra.

Da palavra escrita do poeta surge a presença revelação do homem corpo vivo, inquieto e pensante, que nos diz o que nos alerta para as dificuldades do que nos podemos esperar, anunciando uma primeira revolta impossível, porque, como afirmado por Bazin, o cinema é uma arte impura, e o cinema dos dias do agora, como toda a arte contemporânea, é também um exercício de citação, a si próprio e ao mundo de que se alimenta e que, de forma mais perene do que supomos , é por ele construído. E o que a voz off da realizadora Rosa Coutinho Cabral nos é anunciado é um exercício de cinema.

Como todo o filme vai demonstrar, ao longo do exercício de suspensão fantasmática, entre os diferentes tempos presentes na tela, esse momento de intervalo cinematográfico da criação de um tempo paralelo inexistente, onde a impossibilidade do tempo passado no tempo presente coabitam, interrogando quais os passos e onde, querendo até, inventariar os porquês desse caminho, é esta materialidade deste corpo homem, também ele escritor, também ele amante intimo da língua, também ele solitário no seu sentir a dor e a alegria do mundo, é esta dupla figuração de personagem e de homem verdade no tempo presente, que de forma plena enche o ecrã nesta viagem por uma arquitetura da cidade onde a opulência a existir é da ordem do mistério e da procura impossível do sublime.

De Carlos Morais José são já há muito conhecidos vários talentos, o da escrita, o do jornalista, o do comentador, este filme demonstra que o cinema também é feito de um carisma potencia, onde a verdade do pensamento encontra visibilidade na sonoridade da palavra que o expressa e no corpo que o habita. Talvez seja disso que o filme trata, ou queira tratar, do como é o habitar das palavras pelos poetas. É Carlos Morais José quem o afirma, nesta sua roupagem complexa e paradoxal de fantasma capaz da visibilidade e leitura do real, que no poeta está presente o verbo inicial, a matriz , o arquétipo, o sopro e marca primeira, a revelação inconsciente da esfinge, o suor e a languidez da morte no rio perpétuo do fogo do sangue. O trauma e a viagem inicial e iniciática.

O filme dá-nos ver a escrita de Camilo Pessanha e a escrita do poeta é-nos dada pela voz do actor João Cabral, uma voz é sempre uma leitura própria, uma procura que nos é anunciada. A redundância é usada como recurso estilístico, citação ao cinema ensaio do Godard, talvez nem sempre com a assertividade estética pretendida.

Se, e ainda que o cinema seja o lugar de todos os possíveis, onde se morre e permanece vivo, bola de cristal que dá a ver o futuro e o passado vivido no tempo presente em cada projeção na sala escura dos milagres, apesar da suspensão, do intervalo, a cidade é um organismo vivo que dificilmente se deixa capturar a não ser em sempre escassas parcelas da sua realidade e, filmar hoje Macau de Camilo Pessanha é sempre um exercício mais de imaginação do que materialidade , esse lugar do visível, o “terroir” do(s) cinema(s).

A palavra não é o lugar exacto da prática cinematográfica donde a definitiva relevância do corpo do actor e da materialidade dos elementos em ligação direta sináptica com cada um dos espectadores.

É Jacques Rancière, quem escreve : “no teatro, independentemente da dimensão dada ao gesto e ao espaço, o concreto reside antes de mais nada, na palavra. A conversa em torno de uma fogueira pode dispensar a fogueira, a erva o vento. Ao contrário, no cinema, seja qual for o esforço para o intelectualizar, o concreto está ligado ao visível dos corpos falantes e das coisas que falam. Daqui se deduzem dois efeitos contraditórios: um deles consiste em intensificar o visível da palavra, dos corpos que a carregam e das coisas de que falam; o outro consiste em intensificar o visível como aquilo que recusa a palavra ou mostra a ausência daquilo que de que ela fala”.

Quando o corpo produtor primeiro da fala do filme é uma ausência sem solução, resta a materialidade da campa no cemitério final que o acolheu, a palavra escrita no papel impresso, a marca do peso da mão ausente que ali esteve, e reescreveu, rasurou, escrevendo de novo o já antes escrito. Mas é sobretudo a presença da materialidade do corpo do actor mesmo quando este encena a sombra, a presença impossível do fantasma, que nos transporta ao sopro da vida do poeta. É o corpo e a radicalidade do dito pelo homem que o habita que nos transporta nesta procura de contacto com o poeta maior do simbolismo em Português.

Ainda que o destino apenas possa ter hipotética presença visível no depois e que o mistério passeie de mão dada no interior da beleza das coisas, sabemos que, se não destino, Macau foi facto e fim. Macau foi o território cidade da vida adulta do poeta. Foi em Macau que viveu, respirou, adormeceu, acordou, escreveu, desejou, sofreu, amou. Sim, foi em Macau os seus olhos foram vistos e viram os seus passos percorreram ruas, subiram escadas, seguiram sombras, pisaram nuvens em dores amansadas de ópio.

Se a língua é sempre o território maior da pátria, naqueles expatriados que em lugares tão distantes vivem, e ainda mais quando poetas, torna-se não já a pátria mas o mundo, o lugar onde se não é estrangeiro, o lugar identitário que o corpo habita.

“Camilo Pessanha, o maior poeta simbolista português, escreveu e reescreveu até morrer os poemas de Clepsidra, a sua única obra. O filme não é o seu retrato, nem a ilustração dos seus poemas, mas o ensaio da forma cinematográfica do seu exílio voluntário em Macau. Como filmar este opiómano singular? Dando a câmara de filmar a um morto, ouvindo os seus poemas, seguindo os passos e a reflexão de Carlos Morais José.” Lê-se na sinopse que apresenta o filme, tente-se isso, não é tempo perdido.

TRAILER
22 Out 2018

Cinema | Extensão de Macau do DocLisboa arranca na segunda-feira

A grande festa lisboeta do cinema documental chega a Macau pela quinta vez. De 30 de Outubro a 4 de Novembro serão exibidas nove películas de realizadores portugueses apresentadas na 14ª edição do DocLisboa, assim como quadro filmes produzidos localmente

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s amantes do cinema documental têm motivos para estarem contentes com a semana que se aproxima. Segunda-feira começa a extensão de Macau do festival DocLisboa, uma parceria que já vai na quinta edição e que conta com um cartaz com projecções até sábado dia 4 de Novembro.

O evento organizado pelo IPOR, e que se realiza na Sala Dr. Stanley Ho, no Consulado-Geral de Portugal em Macau e Hong Kong, contará com nove obras de realizadores portugueses que já apresentaram as suas obras no XIV Festival Internacional de Cinema DocLisboa. Serão igualmente apresentados quatro filmes produzidos em Macau no âmbito da colaboração com o Programa Académico da União Europeia em Macau, a Creative Macau e a Inner Harbour.

A sessão que marca o arranque do festival tem no cartaz o filme “Crash” de Hong Heng Fai, “Outlander” de Lam Sin Tong, Jiang Minling, Kwok Fu Wa, “The Real Beauty Be Yourself”, de Cory Chio, Sandra Mo, Tania Tan, Betty Tam “Layla e Lancelot”, da portuguesa Joana Linda.

Na próxima terça-feira será a vez do multipremiado filme “Ama-San” de Cláudia Varejão, que arrebatou o melhor filme da Secção de Competição Portuguesa do Doclisboa. A película mostra a visão da cineasta sobre a vida de três mulheres que fazem pesca de mergulho em conjunto há três décadas na vila piscatória da Península de Shima, no Japão.   

Cartaz de peso

Entre os nomes dos cineastas que apresentam as suas obras em Macau destaque para Luciana Fina, Marília Rocha, Bruno Ferreira, Celso Rosa, Kate Saragaço-Gomes e Ana Isabel Freitas.

O festival encerrará com chave de ouro com o filme “O Espectador Espantado” de Edgar Pêra, uma película que inverte a lógica da visualização audiovisual virando a lente para quem vê um filme. A obra do conhecido realizador é uma espécie de manifesto ou ensaio de investigação sobre a natureza do espectador de cinema nas suas diferentes formas.

Na sessão de fecho será exibido também um filme local, “Macau, Música é Diferença”, de Catarina Cortesão Terra e Tomé Quadros. A película é um retrato da atmosfera cultural da cidade.

Em comunicado, o director do IPOR, João Neves, destaca o caminho e o carácter da extensão da conhecida mostra de cinema documental. É também dado destaque à forma como a criação documental portuguesa, local e do Interior da China se misturam num cartaz heterogéneo de qualidade.

27 Out 2017

DocLisboa | O Chá Gordo de Catarina Cortesão Terra e Tomé Quadros

Fazem documentários sobre Macau porque é neste exercício onde a realidade toca a ficção que vão, também eles, pensando na cidade onde vivem. Catarina Cortesão e Tomé Quadros encontraram no chá gordo a formação de uma comunidade de fusão, o tempo do território. Para que a memória, que ainda existe, se viva já.

[dropcap]“C[/dropcap]há Gordo de Memórias” é apresentado hoje ao final da tarde no âmbito da extensão a Macau do DocLisboa, uma iniciativa organizada pelo Instituto Português do Oriente. Não é o vosso trabalho mais recente.
Catarina Cortesão (C.C.) – Não, não é. Este documentário foi feito no âmbito do Macau DocPower, com o apoio do Centro Cultural, em 2013/2014. Pelo facto de haver tempos muito curtos para a apresentação da ideia, filmagem e edição, dentro dessas limitações e do apoio que nos deram, iniciámos o projecto sobre o chá gordo. Começámos a fazer a nossa pesquisa, começámos a falar com vários intervenientes da comunidade macaense para nos informarmos sobre quem eram os grandes cozinheiros. Munimo-nos do nosso conselheiro, Fernando Sales Lopes, que estuda a gastronomia macaense há vários anos – tem uma tese de mestrado, é um investigador ligado a essa área, na vertente da gastronomia macaense como sinal identitário da própria comunidade. Tivemos várias conversas com ele, foi-nos apontando caminhos, também construímos os nossos. Fomos vendo quem eram os cozinheiros mais emblemáticos – Aida de Jesus, Graça Pacheco Jorge, Rita Cabral, Carlos Cabral, Cíntia Conceição Serro. Destas conversas que fomos tendo, mais questões foram surgindo em relação à gastronomia macaense e o projecto cresceu. E cresceu numa determinada direcção.

E que direcção foi essa?
C.C. – Não queríamos fazer uma mera peça jornalística, esclarecedora do que é o chá gordo dentro da gastronomia macaense – pelo contrário, queríamos fazer uma narrativa fílmica a partir da mesa do chá gordo, onde estão os principais pratos da gastronomia macaense. Olhamos para a mesa do chá gordo, que é extensa, e nela vemos definidos não só o percurso e o que é a comunidade macaense, mas também o percurso dos portugueses até chegarem a Macau. Verifica-se o uso de ingredientes de Malaca, de Goa, de Angola, de Moçambique, e modos de confecção que, por sua vez, reflectem a aliança entre a cultura portuguesa gastronómica com a cultura chinesa, que também é bastante marítima. Daqui nasceu a primeira gastronomia de fusão, que é a gastronomia macaense.

Dizia que, quando se olha para a mesa do chá gordo, vê-se a comunidade.
C.C. – Vê-se a comunidade e a história de Macau dos últimos 300 ou 400 anos. Isso é muito notório logo na primeira percepção e mais ainda quando se tenta saber de onde vêm os pratos e se fala com as cozinheiras, quando elas apresentam os livros de receitas. São autênticos tesouros, na medida em que vão circulando entre as melhores cozinheiras ou são cedidos às pessoas da família com mais apetência para continuar esse espólio e dar bom nome à família através dessa mesa. Quando as pessoas achavam que não havia alguém que pudesse continuar com esse testemunho de uma forma destacada na comunidade macaense, levavam os livros de cozinha para a cova. Ou seja, não transmitiam as receitas, não as partilhavam. Há receitas da Graça Pacheco Jorge, do livro que era da tia, em que está escrito em baixo ‘não partilhar esta receita com qualquer pessoa’.

Como é que se faz uma abordagem mais cinematográfica a um tema que facilmente pode cair, em termos de tratamento, num documentário do género jornalístico?
Tomé Quadros (T.Q.) – Procuramos, de alguma forma, seguir a máxima de John Grierson, quando diz que o documentário deve ser abordado de uma forma criativa – isto dito no final da década de 20 do século passado. Significa que pretendemos fugir do documentário como uma peça jornalística e encará-la como narrativa fílmica tout-court. Procuramos com isso introduzir mecanismos da ficção no documentário, procuramos dirigir os nossos entrevistados, na medida do possível, como se de actores se tratassem, procuramos ter um cuidado estético bastante grande – e não só, em termos de continuidade, de racord também –, para que tudo faça sentido. Desta forma, introduzimos um narrador presente – a Nair Cardoso, uma jovem macaense – que, no fundo, conduz o espectador pelas diferentes estórias que fecham este todo que é a narrativa fílmica acerca do chá gordo. Temos um fio condutor, uma história, que coincide com a realidade: a Nair regressa a Macau passados alguns anos de ter ido para Portugal e vem à procura de um livro de receitas que era do avô macaense. O livro tinha sido escrito pela avó chinesa, que tinha aprendido para que toda esta gastronomia macaense existisse em casa. Há um dia em que encontra este livro no sótão da casa e guarda-o. Vai procurar, através do livro, as raízes da identidade, memória e cultura macaenses. Claro que houve uma transformação muito grande da simbiose homem-cidade, mas essa memória, a cultura e a identidade perduram.

É um documentário para memória futura?
T.Q. – No fundo, o que procurámos com o documentário é que sirva como um espelho, que a própria comunidade se veja ao espelho. Por exemplo, na questão das receitas, é muito complicado ter acesso e foi um dos maiores obstáculos, mais do que até ganhar confiança da parte dos intervenientes. Assistimos a um momento talvez único: a Cíntia Conceição Serro cedeu aos arquivos do Instituto Cultural todo o espólio que tinha herdado em termos de receitas e manuscritos escritos. Temos isso no documentário. É interessante ver que também há uma tomada de consciência por parte dos intervenientes, de que afinal esta memória deve ser mantida.

Não são realizadores profissionais, na medida em que têm outras ocupações. Há vários anos que fazem documentários sobre a cultura de Macau. Como é que conseguem ir trabalhando nesta área, que exige todo um processo de pesquisa? Sentem muitas dificuldades?
C.C. – Temos bastantes dificuldades pelo facto de sermos uma equipa muito pequena. Eu e o Tomé fazemos 80 por cento do trabalho. Depois contamos com o Daniel Saraiva para o som e agora temos uma nova pessoa que nos está a ajudar, o João Cordeiro. Temos ajuda nas filmagens e coloração. Nestes processos temos arranjado sempre alguém que nos ajuda por ser especialista na matéria. É muito difícil porque temos vidas profissionais exigentes e as nossas famílias. Isso faz com que exista alguma pressão, e de alguma forma, o tempo nos escape. O tempo que é dado aos projectos no Centro Cultural é muito pequeno, em seis meses temos de fazer tudo, o que cria muita pressão, mas são opções que fazemos. Temos de gerir muito bem o tempo. Somos bastante curiosos e gostamos de ter a percepção daquilo que acontece. Em Macau ainda não existe essa memória construída em termos de narrativas fílmicas. Sobre o chá gordo não há nada, apenas alguns episódios em que as pessoas descrevem o que poderá ser, mas algo muito insípido. O grande desafio é que adoramos filmar e editar, e apreciamos o produto final. Depois de estar feito, passamos para outro, porque queremos fazer cada vez mais. Já estou a pensar no projecto seguinte.

T.Q. – O cinema foi o lugar que nos deu a conhecer um ao outro e foi onde a memória futura teve lugar. A Catarina tinha alguma formação e trabalho feito em fotografia, com uma grande base no teatro, e com grande desejo de desenvolver algo na área do cinema. Partilhávamos o mesmo olhar e as mesmas preocupações, e procurávamos fazer cinema em conjunto. Eu trazia a formação da Escola das Artes do Porto, em som e imagem. Se calhar trazia um olhar mais formatado e menos livre, e a simbiose com um olhar mais livre e outro mais técnico resultou. O documentário surgiu como o modelo de pensar o cinema mais apropriado porque nós, além da questão do cinema, tínhamos a vontade muito própria de falar de Macau, que nos apaixona. Sentimos que havia um vazio por preencher. Havia que começar a trabalhar sobre a memória, cultura e identidade de Macau, e encontrámos o formato certo.

Já estão a pensar no próximo documentário?
T.Q. – Temos o “Time of Bamboo”, que está quase terminado, foi o projecto deste ano, que vem na sequência da memória de Macau. Há um paralelismo com o chá gordo em termos do conhecimento que passa de geração em geração. Não há um livro do saber do bambu, como as estruturas são calculadas. Tentamos fazer uma ponte entre o legado e aquilo que pode vir a ser o futuro do bambu.

C.C. – Em relação a projectos de futuro, ando interessada sobre a questão linguística. Ando a reflectir porque é que é difícil ao estrangeiro falar chinês e as crianças não têm acesso à aprendizagem da língua. Não são apenas os portugueses, mas os estrangeiros em geral. Porque é que isso não acontece nas escolas? Qual é a questão, o problema? Tem que ver com uma questão de vivência? Acho que seria um tema interessante para fazer um documentário. Apetece-me fazer um documentário sobre crianças e jovens dentro dessa questão linguística, das diferenças das línguas, o ‘lost in translation’. Comecei a escrever um guião, embora seja para uma curta-metragem, que reflecte essa faixa etária. Mas é uma história que tem algumas aventuras, à volta dos portugueses, chineses e macaenses. É sempre esse o meu ponto de reflexão.

18 Nov 2016