Ismael Hipólito Djata, artista plástico da Guiné-Bissau: “A cultura foi o pilar para a independência”

Inaugurada na terça-feira no edifício do Fórum Macau, a mostra “Destruição da Humanidade” não é apenas a visão do artista guineense Ismael Hipólito Djata sobre inversão de valores, mas também um grito de alerta sobre a forma como a cultura é tratada pelas autoridades da Guiné-Bissau. Juntamente com os irmãos, também artistas, Ismael Hipólito Djata chamou para si a responsabilidade agitar o panorama artístico guineense

 

A sua exposição, intitulada “Destruição da Humanidade”, foi inaugurada esta semana. Como encara esta oportunidade de expor em Macau?

É uma alegria enorme fazer uma exposição em diferentes países, para que os povos possam apreciar as nossas obras e entender as mensagens. Temos obras com linguagens universais, é a nossa cultura e realidade, a nossa convivência. É sempre um enorme prazer receber este tipo de convite. Macau é uma região asiática, mas de língua portuguesa e é uma enorme felicidade ter recebido este convite.

Porque decidiu dar esta nome à sua exposição? Qual a principal mensagem que quer transmitir com as suas obras?

Esta exposição é composta por três partes. Na primeira parte tento mostrar imagens de fora da minha cultura. Somos um povo com 36 etnias, diferentes dialectos e modos de vestir, mas somos um povo unido. Temos uma rica diversidade cultural, só que o país não está a aproveitar a cultura para se desenvolver. Mas a cultura foi o pilar para a independência, e por isso peguei em algumas imagens culturais e tentei desfazê-las, para mostrar que a nossa cultura está cada vez mais a perder-se. Há ainda uma parte na exposição que fala do universo, que é a destruição da humanidade. [Essa representação] é feita com a imagem descascada de um senhor velho e dentro da sua cabeça estão algumas peças. Esse quadro fala-nos do universo e da sabedoria dos mais velhos, que é tradicional, até na medicina, o modo de falar. A nossa geração não está a aproveitar isso. Alguns quadros falam dessa filosofia, porque, como é uma exposição na Ásia, tentei mostrar alguns dos meus pensamentos ligados à humanidade e não apenas sobre a cultura guineense.

Parece defender que há uma mudança de valores.

Vivi alguns anos na Europa. Não conheço muito a realidade asiática. África não tem fábricas de armas, mas compra armas a outros países. África ainda é escravizada, e nós africanos não estamos unidos e não escrevemos as nossas histórias, que são contadas por outros povos. Ninguém conhece a nossa cultura. Essa é uma parte negra de África, pois temos uma riqueza que está a alimentar outros continentes. Somos o berço da alimentação da Europa, mas nós, africanos, estamos na lista negra em termos do desenvolvimento e de alimentação. Aqui muitos pensam que a Europa está desenvolvida, e de facto está em muitas coisas. Mas e a educação europeia? Tem muita negatividade.

Em que sentido?

Quando estive em França a minha primeira decepção foi ver uma criança a falar mal para os seus pais. Aqui em África isso não existe. Há outros exemplos que eu considero que estão a destruir a humanidade, como o problema da poluição, as alterações climáticas.

Os valores africanos têm então algo a mostrar sobre a preservação da humanidade?

Nós não temos um museu que conte a história de África, das nossas etnias. África é um mosaico cultural muito grande e muito diferente da Europa ou Ásia. Mas quem conta a nossa história? Ninguém. Em França ou na América há museus sobre a cultura africana, porque é que não promovemos a nossa cultura? Porque não fazemos esta divulgação, porque não escrevemos os nossos livros a contar histórias para as gerações vindouras? É preciso que nós, africanos, comecemos a assumir esta responsabilidade e que sejamos divulgadores e protectores da nossa identidade cultural.

O seu trabalho como artista tem, portanto, uma mensagem política e de intervenção social.

Sim. É difícil fugir disso porque vivemos num continente onde existe muita corrupção. Não podemos mostrar só do que é bom e não mostrar o nosso descontentamento.

Falou do projecto de abrir uma galeria de arte em Bissau. O que pretende fazer com a iniciativa?

Somos quatro irmãos, pintores, escultores e escritores, e quando começámos os nossos projectos artísticos percebemos que tínhamos um papel, o de sermos embaixadores deste país. Queremos promover a imagem da Guiné-Bissau além-fronteiras. Assumimos o compromisso de ajudar este país a desenvolver-se culturalmente. Como artistas vemos que o país é independente há mais de 40 anos e nunca teve uma galeria de arte. Não há materiais ligados às artes plásticas. Ficamos preocupados com as novas gerações. Achámos que não tínhamos necessidade de ficar na Europa pois é um continente que já está desenvolvido nesta área. Então decidimos voltar para a Guiné e criar uma galeria onde promovemos a arte e também ensinamos. Trazemos pintores internacionais para expor na nossa galeria e os pintores nacionais também. Falamos com as pessoas e também damos apoio em projectos sociais, com escolas, fazemos pequenos donativos para ajudar a combater a pobreza. Queremos também construir um museu e estamos à procura de financiamento. Esse museu vai juntar escolas, por exemplo.

Disse que após 40 anos de independência o país não um forte sector cultural. Como explica tal facto?

Não tem sido implementada uma política cultural na Guiné-Bissau. Temos várias leis do sector que não estão a ser implementadas. A cultura é desprezada pelos governantes, porque para eles não é uma questão económica. Mas a cultura é a identidade de um povo, retrata-nos. E eles não têm essa consciência para conhecer a cultura, porque pensam que não têm benefícios com ela. O Orçamento de Estado dedica a percentagem mais baixa à cultura. Os artistas reclamam bastante: imagine um país sem salas de espectáculos ou de exposições. Dão mais valor aos músicos. Estamos juntos com alguns colegas artistas de diferentes áreas e tentamos reivindicar de forma pacífica que a cultura é também uma alavanca no desenvolvimento de um país.

É embaixador do ONU Habitat. Que funções ou mensagens transmite?

Entre os objectivos do milénio definidos pela ONU, um deles é sobre o urbanismo, a situação social. Então acharam que eu, como artista, podia ajudar a comunidade transmitindo mensagens sobre o urbanismo e de como a arte pode mudar uma comunidade. Todos os anos temos um objectivo para implementar e este ano fizemos a campanha das limpezas em diferentes bairros. Organizamos um campeonato. Pegamos nessas imagens e projectamos nas ruas através do grafitti, para mostrar como podemos ter comunidades limpas e bem organizadas. As casas aqui estão amontoadas, não há limpeza.

Formou-se em Portugal numa área que nada tem a ver com as artes plásticas. Como é que a arte surge na sua vida?

Comecei a ligar-me à cultura aos seis anos, porque na altura tínhamos de iniciar a primeira classe com sete anos. Os meus irmãos já estavam na escola e quando estudavam o meu pai dava-me folhas para eu desenhar e não os incomodar quando estudavam à noite, e eu copiava desenhos. Cresci assim, e comecei a ter interesse por desenho. Os professores pediam-me para ir ao quadro fazer desenhos do corpo humano nas aulas de ciências, os colegas diziam que eu tinha talento e que um dia iria ser artista. Mas eu pensava mais em arquitectura. Tornei-me artista quando a Guiné-Bissau caiu na maior tragédia da sua história: a guerra de 1998. A guerra durou um ano e tivemos de nos refugiar no interior do país. Vi crianças a esculpirem cabaças, a fazer missangas, e aprendi com elas usando o talento que tinha. O meu irmão pegou no meu primeiro trabalho e vendeu-o. Fiquei triste, mas rendeu muito. Quando voltou tinha muitas encomendas. Queria estudar, mas não tinha a ambição de ser artista. Comecei a ensinar os meus irmãos a fazer essas esculturas de cabaças porque sozinho não conseguia fazer tudo, um pintava e outro desenhava. Depois fizemos a nossa primeira exposição. Hoje temos uma responsabilidade nos nossos ombros [com a Irmãos Unidos Arts] e os guineenses sentem muito orgulho do que fazemos. Somos uns dos melhores no país, ganhamos prémios e estamos representados. É difícil deixar as pessoas que já têm confiança em nós.

24 Set 2021