Adalberto Tenreiro, arquitecto: “Desenhar é para mim uma terapia”

“1983 Food . Space 2023”, a exposição de desenhos do arquitecto Adalberto Tenreiro, pode ser vista na galeria 10 Fantasia, no bairro de São Lázaro, até ao próximo domingo. Radicado em Macau há muitos anos, o arquitecto expõe desenhos feitos em restaurantes onde se sente mais o pulsar da cidade antiga e das memórias de sítios peculiares

 

Não tem uma exposição individual há algum tempo. Como surgiu a oportunidade de realizar esta mostra?

Esta e as três exposições individuais que fiz pertencem a um processo de organização dos desenhos que vou fazendo como passatempo. Em 1997 a exposição chamada “Diário” organizou todos os desenhos feitos até esse ano, a de 2006 teve os desenhos feitos em Itália durante os sete cursos de Verão feitos no Centro de Estudos Andrea Palladio, a de 2020 teve todos os desenhos feitos em Portugal. Meng Shu Shangyuan é a curadora desta exposição e é uma amiga minha, artista de Xangai, que ensina e pratica em Macau desde há muitos anos e com quem costumo dialogar sobre o que faço. Os desenhos em restaurantes são actos que por vezes faço na companhia de amigos. A Meng Shu conhecia esse meu ritual e aceitou os restaurantes como tema da exposição, expandindo o conceito de comida que, por exemplo, engloba as fachadas dos edifícios que têm restaurantes, ou mercearias desenhadas por estarem inseridas em desenhos maiores que fiz das ruas de Macau.

Que Macau poderemos encontrar nestes desenhos?

Temos uma Macau parcial, não toda a Macau. Há um viver antigo da cidade por entre restaurantes e cafés baratos com comida boa e tradicional, muitas vezes com mesas ao ar livre. [Surge] a comida tradicional de Yum Cha que há cada vez menos, e mesas ao ar livre que foram retiradas. Os desenhos são feitos nas áreas antigas ou muito antigas da cidade e são poucos os que são feitos em áreas com torres de apartamentos onde estão localizados os raros restaurantes de Yum Cha frequentados quase só por pessoas na terceira idade. São poucos os filhos ou netos destes comensais que vão a estes restaurantes. Quase não desenho as novas áreas urbanas e os restaurantes frequentados pelas novas gerações.

Porque decidiu expor os desenhos de forma circular na galeria, a cair do tecto?

Já há muitos anos que desenho muitas páginas em forma de círculos, formando panoramas, que depois imprimo e coloco em plástico transparente para serem colocados como planos em paredes. Numa exposição colectiva, realizada por volta de 2015, em que participei com dois desenhos, um do interior da capela da Guia, outro do exterior, onde se vê o Farol da Guia, expus o primeiro círculo, mas de um modo ainda demasiado complicado. Em Outubro do ano passado, numa outra exposição colectiva, foi usado o modo de expor os desenhos que agora repito [nesta mostra]. As salas de exposição da galeria 10 Fantasia são muito irregulares, pelo que os desenhos cilíndricos suspensos do tecto libertaram as paredes e deixaram as cortinas abertas, bem como as janelas para o exterior e as portadas para a generosa varanda. Assim, entra uma brisa na sala que coloca os cilindros num movimento delicioso. Os visitantes podem entrar e sair pela varanda e na sala de exposições, olhando para as grandes árvores exteriores ou para o espaço interior ocupado pelos cilindros.

Esta mostra contém desenhos que tem feito nos últimos anos, em jeito de diário. Que lugares ou pessoas podemos encontrar nestes esboços?

São poucos os desenhos expostos que estão terminados, mas caso não venham a ser finalizados também ficarão muito bem assim. Cada desenho tem muitas páginas feitas ao longo dos anos, diria que desde há três, nove, 15 ou 31 anos, com 15 ou 45 minutos gastos em cada desenho. Por isso são desenhos antigos e recentes ao mesmo tempo. Na lista dos desenhos exposta na sala da galeria coloco-os por ordem do início da execução. Se tivesse usado a data da última vez em que foram retomados seriam quase todos trabalhos deste ano ou do ano passado. Todos nós vamos a cafés ou restaurantes várias vezes por dia, por isso é que é um tema trabalhado com muitas páginas. Em temas como espectáculos de música ou teatro os desenhos são feitos com menos páginas, ou tenho uma maior quantidade deles feitos numa só folha. Isso deve-se ao acto de ser menos assíduo, em mim, o prazer de assistir a espectáculos.

É importante para si desenhar com frequência, além do exercício habitual da arquitectura?

Sinto que desenhar o que se considera em muita quantidade é para mim uma terapia. Outras pessoas praticam mais a leitura, ou desporto, ou preferem ainda cozinhar, gastando mais tempo nessas actividades que lhes estruturam o quotidiano. O desenhar confunde-se com a profissão de artista, mas onde ganho ou ganhava honorários é a fazer arquitectura. Na arquitectura alguns arquitectos desenham, outros não. Temos três exemplos de um extremo ao outro, que são o arquitecto e pintor Nadir Afonso, que trabalhou com Corbusier, construiu arquitectura de grande qualidade em Portugal e é famoso pela pintura que fez. Corbusier deixou uma arquitectura de referência mundial e uma pintura de qualidade de segunda linha. Existe uma foto de uma reunião de arquitectos famosos onde todos têm um lápis na mão à excepção do [Walter] Gropius, que privilegiava outras capacidades de conceber arquitectura sem passar pelo acto de desenhar. No balançar entre o desenho e arquitectura, agora ocupo mais horas a desenhar, porque tenho menos trabalho profissional de arquitectura.

21 Mar 2023

Coloane | Pinturas invadem vila, num diário pictórico feito por um artista anónimo

Entre 1 e 7 de Outubro, a vila de Coloane terá espalhado nas ruas uma série de quadros de um artista anónimo. Sem inauguração oficial, sem explicação, sem artista, “See her around Coloane” é um diário de imagens de uma personagem por várias cidades e que culmina na ilha

 

Apenas arte. Sem artista, sem pessoalizar, sem inauguração oficial ou clandestina, sem fitas cortadas ou coroas de flores, as ruas da vila de Coloane serão ocupadas por uma série de quadros que retratam o diário de uma mulher, cujo nome poderia ser traduzido como “Pequena Escuridão”. Os quadros vão estar expostos na rua entre amanhã e sexta-feira, dia 7 de Outubro.

O HM falou com o artista que não se quis identificar, mas que revelou que este será o primeiro episódio de um projecto para continuar. “Ao longo deste mês desenhei algo bastante diferente do que estou habituado. A minha inspiração foi o tempo desta altura, o Outono e a tranquilidade. Quis fazer algo mais leve e casual”, contou o artista.
Todos os trabalhos têm como epicentro uma mulher, a “Pequena Escuridão”, que após viajar por inúmeras cidades acaba por chegar a Coloane.

Ao longo das ruas da vila, apenas um quadro sustentado por tripé funciona como uma publicação numa rede social, com o desenho a substituir a tradicional selfie, e a caminhada a equivaler ao scroll down numa aplicação para telemóvel. Em vez do ecrã de um aparelho eléctrico, a vida da personagem central da não-exposição decorre na via pública.

Atrás da cortina

“Não tenho expectativas em relação a este projecto, não meti o meu nome no poster”, indicou o artista, afastando o protagonismo naturalmente decorrente da identificação. “Em situações anteriores, o público poderia associar os trabalhos à minha pessoa, quis evitar isso. Quem sabe quem eu sou, pronto, que saiba. Mas pode ser que quem não saiba se interrogue sobre como foram ali parar estas pinturas. O artista desapareceu. Quero deixar essa parte identitária à imaginação do público”, contou.

Resta a interacção entre os transeuntes e as obras, sem inauguração, sem presenças oficiais, sem hora para começar ou acabar.

O artista revelou ao HM que em trabalhos anteriores é recorrente o encontro entre a arte e a vida, a sua vida. “Frequentemente, a criação artística parte de uma ideia grande. Desta vez limitei-me a reproduzir representações de momentos, como um diário em imagens. Não quis desenhar coisas relacionadas comigo. Sou um homem e criei uma mulher que conta histórias através de imagens.”

Nas antípodas das grandiloquentes elaborações sobre objectos artísticos, “See her around Coloane” é uma brisa, um convide a um passeio relaxado pela vila, um hino à casualidade.

30 Set 2022

“Strata Cabinet”, de Rui Rasquinho, inaugurada na galeria Passevite em Lisboa 

[dropcap]F[/dropcap]oi inaugurada este sábado, na galeria Passevite, em Lisboa, a exposição “Strata Cabinet”, do artista plástico Rui Rasquinho, radicado em Macau. Os desenhos expostos, todos feitos em blocos de notas que se dispõem sobre a galeria, são o resultado de uma prática “diária e insistente” a que o próprio artista se obriga.

“Ando sempre com um bloco de notas atrás, mas em geral isto é feito em casa, e é uma prática diária, de estar sempre a desenhar. Os desenhos hesitam entre a abstração e a figuração, há sempre ali uma tentativa de encontrar um meio termo mas sem um objectivo, o que interessa é a experiência dessa tentativa.”

Para Rui Rasquinho, o que está desenhado nos blocos não tem propriamente uma finalidade enquanto objecto artístico, mas revela um exercício de fuga ao quotidiano. “Já se transformou num hábito (desenhar diariamente) e faz parte. Também é uma espécie de fuga em relação a outros trabalhos mais contextualizados que tenho. Aqui há uma liberdade total e é um processo. São esboços que não têm função nenhuma.”

“A ideia é não intelectualizar muito, no sentido em que não estou a fazer estudos para um desenho final. Mas é esse processo de experimentação que interessa. Não pensar muito sobre a coisa e deixar, através do tempo, da insistência e de uma certa obsessão, deixar que o desenho tome o seu próprio caminho. Claro que há algum controlo”, acrescentou o artista plástico.

Fora do tradicional

A forte presença do bloco de notas na exposição é também representativa dessa liberdade de criar sem regras. “O bloco de notas é um veículo. Tem a ver com o formato, em vez de teres uma obra cristalizada tens um bloco de estudos em que todos os desenhos são equiparáveis e tens uma coisa serial.”

Depois de ter participado em algumas mostras em Macau, Rui Rasquinho expõe em Lisboa, algo que não acontecia há algum tempo. Em relação à galeria Passevite, o também ilustrador destaca o facto de ser um projecto também ele livre no que diz respeito às mostras que organiza.

“Não é uma galeria tradicional, é outro tipo de projecto, menos académico. Expõem tudo, de ilustração à fotografia. É um projecto mais aberto. São um grupo de amigos que fazem isto por puro gosto, porque não ganham muito dinheiro com isto.”

Rui Rasquinho vive e trabalha entre Lisboa e Macau. Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e Cinema de Animação na Fundação Calouste Gulbenkian. Publica regularmente ilustração em livros, revistas e jornais, desenvolve e expõe também trabalhos em desenho, pintura e vídeo.

9 Set 2019

O desenho dos dias

Horta Seca, Lisboa, 30 Maio

 

[dropcap]A[/dropcap] parceria que se ergueu pavilhão nefelibata na Feira do Livro desenterrou-me nostalgias, como se preciso fosse por estes dias negros e amargos. O Carlos [Morais José] achou por bem fazermos edição especial toda dedicada ao tema fugidio e fascinante, «nuvens», que vogam sempre no plural, já que cada uma por si só muda a cada instante. A saudade que me rasgou não foi tanto a do jornalismo assim vagamente, mas a dos fechos de edição. Acontece magia naquelas horas, pois o caos instalado grita-nos a cada momento «impossível», mas a golpes de vontade as peças vão-se encaixando de modo a fazer luz, isto é, tinta sobre papel. Por vezes, até sentido e beleza se alcança. E fechei revistas e jornais ainda antes do computador simplificar, onde tudo era mais lento. Mas dobrávamos o tempo. Assentámos o essencial nos colaboradores da casa e chamámos Carlos [Fiolhais], o cientista, e o João [Queiroz], o pintor, para conversar. Percebemos por aqui que a água dança nos céus para que a nuvem aconteça, que é colecção de pequenas coisas, ou melhor, que nelas se espelham um sem número de outras coisas.

Ouvimos garantir que a luz pesa, que na pintura o essencial é perceber as fronteiras dos objectos, que as nuvens podem absorver o real. A conversa tombou, às tantas, para um suave combate entre ciência e arte, mas não houve feridos. O Carlos [Fiolhais] teve depois de nos deixar, mas continuámos a três, sendo que essa continuação merecia também gravação. Quem sabe se a memória nos assistirá? Não estávamos sós, percebemos pouco depois. A mymosa tem destas surpresas.

Casa do Juiz, Bencanta, 31 Maio

Saltada a Coimbra, em contexto profissional específico, para ouvir [Álvaro] Laborinho Lúcio discorrer brilhantemente sobre a mais recente e possante recolha de micro-contos do Carlos [Querido], estes todos dedicados a morder os calcanhares da ceifeira. Como de costume, o Sal [Nunkachov] trouxe para a capa um corpo, que não anuncia fins. Além disso, contribuiu com um apêndice de múltiplas interpretações destes ambientes, nem por isso soturnos. A morte está bastante viva, afinal. Pode ser que a palavra nos defenda um pouco, talvez possamos escolher o modo de partir, por exemplo, virando árvore, como em «Tília». «Um dia sonhou-se árvore. Tronco ereto, copa frondosa, folhas perfumadas e caducas. Tília. Enverdeceu. Dum pequeno corte no rosto quase escanhoado brota um líquido pastoso, espesso, escuro. Seiva. É do fígado, desdramatizam os amigos. Diagnóstico precipitado. Eles sabem lá, os amigos. A icterícia é amarela. Não faz os cabelos crescerem verdes, em tufo, espigados, horizontais, a oferecerem aos pés doridos uma sombra circular e refrescante. (…) Por detrás da casa, no fim de um caminho de terra batida, espera-o um bosque com outras tílias. É para lá que se dirige. Escava com os pés até os sentir raízes. Abre os braços em cruz, virado para o nascente onde há-de irromper o sol.

Depois, sobe-os suavemente até que se unam as pontas dos dedos, no desenho quase perfeito de um pentágono que projeta para poente, para o mar, a sombra de uma copa à procura da eternidade a que aspiram todas as árvores.»

Casa da Cultura, Setúbal, 30 Junho

Pouco depois das 00h00, manda a «tradição» de cinco anos, demos por aberta a edição da Festa da Ilustração, em plena rotina. Desta, abriu-se muito espaço para o desenho de humor, não apenas por via do trabalho da convidada contemporânea, a Cristina [Sampaio], mas também pela homenagem a Tignous, um dos mártires do massacre do Charlie Hebdo. O título desta crónica foi também o título de uma exposição da Cristina na Bedeteca de Lisboa, em 2001. Fui reler o que então escrevi e comecei por me surpreender com um rasgado elogio ao jornal, enquanto objecto e lugar de encontro dos tempos todos. Faltou apenas chamar-lhe nuvem… Não me revejo hoje em nenhuma das publicações nacionais, mas para o caso pouco importa. Os desenhos da Cristina perderam fundo, foram-se simplificando, mas o essencial da sua força mantém-se, com forte ligação às narrativas da actualidade, assentando o agudo comentário na dança entre a linha e a transparência, mastigando os corpos. No final, estamos nós. Pessoas e laçadas na corda do tempo.

(Algures na página está a ilustração feita para a Festa). E cito, lá do início do século. «Nós. Ou os bonecos nas mãos de um destino que joga aos dados no bar do cruzamento. Espreitamos com prazer nas transparências que nos espelham. A Cristina Sampaio é uma produtora de ambiguidades. Tem um olhar quase infantil e por isso cheio de perversão. Os seus desenhos, traços leves, mas pesados, surgem-nos claros e imbuídos de texto, sem serem nem caricatura nem cartoon e bastante mais do que meras ilustrações. Dizem, sem querer, que somos acrobatas de borracha, a pedalar sobre um elástico esticado, meros bonecos pintados à mão, a apanhar vento e chuva, às vezes sol, na montra do tempo.»

Lapso, Setúbal, 1 Junho

Não tinha voltado ao passado, quando procurei falar do presente, os mais de oitenta participantes que compõem um rosto à Ilustração Portuguesa, desta feita acolhida em novo e arriscado espaço, a Lapso, galeria-livraria na baixa da cidade. (Que seja augúrio de sorte!) Para o melhor ou pior, continua pujante, entre nós, esta disciplina, tanto mais que nem todos aqui estão representados, por uma razão ou outra. Vejo estrelas. «Soubera eu desenhar e desnecessário se tornava este esforço de procurar a metáfora que cosa estes pedaços soltos de nós, de nós aqui nestes dias adversos e confusos, mas também palpitantes de alegrias e possibilidades. Não chegámos ainda à centena de participantes, mas aproximámo-nos como nunca. As imagens, essas, desmultiplicaram-se e são mais que muitas, umas soltas, outras resultando da mesma encomenda, propondo olhar distendido sobre aquele assunto, próximo da actualidade ou inserido em narrativa, resultado de projecto mais pessoal, com fulgor poético ou comentando isto e aquilo. Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.”

12 Jun 2019

Exposição de Ung Vai Meng inaugura na próxima quarta-feira no Albergue

[dropcap]U[/dropcap]ng Vai Meng está de regresso às exposições individuais. “Vestígios de Linhas”, que abre na próxima quarta-feira, pelas 18h30, no Albergue SCM, surge integrada nas celebrações do 19.º aniversário da RAEM.

No total, são 29 obras organizadas em cinco séries temáticas – “Instantes”, “Santos”, “Anjos”, “Ópera Chinesa” e “Esboços” –, explorando “uma linguagem, onde a pintura tradicional chinesa se cruza com o desenho a carvão”, diz um comunicado divulgado ontem pelo Albergue SCM. A mostra, comissariada pelo arquitecto Carlos Marreiros, vai estar patente ao público até 13 de Fevereiro. Com entrada livre, pode ser visitada de terça a domingo entre as 12h e as 20h.

Nascido em Macau, onde estudou desenho e aguarela, Ung Vai Meng realizou uma vasta gama de exposições individuais em Macau, Hong Kong, na China e na Europa, tendo vencido inúmeros prémios em competições de arte e design em Macau e no exterior. Ung Vai Meng, que foi presidente do Instituto Cultural, é actualmente professor convidado e mentor de doutoramento da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau.

7 Dez 2018

Dias ampliados (com os dedos)

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Janeiro

Desacerto. Estes são os dias do desacerto. Se nunca me senti muito da vida («o meu filho é um atado»), agora tudo me sabe a deserto, solidão e danação. A paisagem tornou-se bruta e clara, nítida como lâmina, reflexo do sol nos olhos ao sair da noite. Atravesso-a dolorosamente inclinado para diante, quase tocando o chão que piso, só as pernas se mexem avançando contra o vento, a tempestade de areia, cego ao horizonte, a cheiros e gestos. O nevoeiro de chumbo encheu os ares da cidade. A cada esquina, uma pergunta rasga a rua. Que texto nos prepara para isto? Onde mora o sentido? Com que matéria podemos refazer a alegria? Há pedidos que jamais deviam ser atirados, granada de mão.

 

Lisboa, 11 Janeiro

9h45: com ligeiro atraso para o costume, leio o Expresso Diário no metro enquanto levo pancada das mochilas. Às vezes riposto. O tema era o entediante jogo de empurrões entre Santana Lopes e Rui Rio.

9h55: hoje é só um lance de degraus que deixaram de rolar. Faz sentido complicar a vida de quem sobe ao umbigo do mundo.

9h56: ao telefone com a Elisabete acertamos formato, ilustradores possíveis, papel e espírito de um livro à volta de amores possíveis e impossíveis.

10h01: aceito o pequeno rectângulo, que agradeço e conservo: «Se quiser prender uma vida nova e pôr fim a tudo que lhe preocupa. Contacte o Prof. Karamba que ele tratará o seu problema com rapidez, honestidade e eficácia.»

10h06: reparei que a nossa janela ainda dizia o ano passado, pelo que arranquei o autocolante que anunciava a exposição anterior.

10h15: acedo à conta para ver de recebimentos e tratar de pagar miudezas e nem tanto.

10h25: espreito os emails, despacho os urgentes a que consigo dar resposta, passo outros tantos para a pasta a responder. Assusto-me com o que ali se agita, insectos encurralados.

10h26: chega finalmente o contrato da RTP por causa do Spam Cartoon. Por momentos, chamo-me Joaquim. O erro costuma ser variante do Cotrim, mas desta vez apõem-me o nome do meu avô, o que me faz sorrir.

10h40: irrito-me com a agreste ironia de que, se quiser os livros que ainda estão na insolvente distribuidora, terei, não apenas de pagar o handling, assim lhe chamam em estrangeiro, como o transporte das 17 paletes. Ainda recolhem dinheiro de vendas que jamais verei, mas os pobres precisam da minha esmola para fazerem o trabalho deles.

11h52: entregue que estava mais um Spam Cartoon, reunimos telefonicamente para discutir o que se segue. Com muito esforço, evitamos atirar ao palhaço, i.e., a Trump. E lá continuamos, mesmo depois de desligar, uma conversa de há meses sobre a questão do assédio. Com tanta subtileza em jogo, só lá vai com jantar.

12h45: liga-me a advogada por causa de aditamento a um contrato, coisa de família, que me obrigada a parar tudo, imprimir o dito em quadriplicado, rubricá-lo, assiná-lo e enviar para a minha irmã, por estafeta.

13h15: devíamos comemorar certo encontro, mas as urgências obrigam a almoço rápido, sem mais história que a dos afazeres rotineiros. As datas dos amores possíveis devem celebrar-se contra a agenda, solverem-se na carne dos dias.

15h00: reunião com o Alex Cortez e o Daniel Moreira para acertar detalhes do livro (e dois CD’s) «Poetas Portugueses de Agora». Entusiasmo-me com as múltiplas qualidades, as que ouvi e estas que vejo agora.

15h45: ajudo o Bruno [Mantraste] a montar a exposição relâmpago que inaugura daqui a umas horas. Não há razão para alarme. Estendo o fio que acerta o horizonte. Ajudo a complicar umas contas. Prego uns pregos. Maravilho-me com o que vejo. Os esboços possuem uma tal intensidade que parecem brilhar (exemplo aqui na página). O Teófilo bate à janela: vem inesperadamente dar uma mão.

16h30: por desacerto da atenção, consegui que acontecessem três eventos ao mesmo tempo. Peço à Mariana que acompanhe o Luís Maio, na sua sessão na biblioteca de Oeiras à volta do «Ninguém Sabe Onde Está». Ninguém quis saber.

17h30: vejo a mensagem do Mário Gomes a convidar-me a colaborar na belíssima revista Diaphanes. Uma tentação.

18h00: embate com a realidade do que se entende por grande público. Vejo-me cercado de velhas convenções e mal-entendidos. Entristece-me, apesar de o ter previsto.

18h25: ao desligar o telefone, ainda leio mensagem com ultimato em torno de projecto que me parece estratégico. Tento desajeitadamente remediar o estrago provocado pelo meu desarranjo com os tempos.

18h30: abrimos o segundo ano do Obra Aberta com os recém publicados [José] Anjos e Inês [Fonseca Santos] a falar de poesia, infância e o mais que se solta dos livros. Doravante e para complicar, acederei ao microfone.

20h05: regresso à exposição que já vai alta em animação e gente. Na janela, mora desenhado o título «Sebenta do Diabo». Nas mãos de cada um vejo palpitar coração abraçado por espinhos.

20h35: avanços pelos cumprimentos e saudações em direcção aos braços do Jorge Colombo, que não vejo há anos. Continua grande instigador da curiosidade, dispensário dos mais díspares saberes e atenções. Sacudimos conversa, estendemo-la e nela nos sentámos prazerosamente.

22h05: não se fez fácil fechar, com os de última hora a pôr pé na porta. E olhos no diabo da sebenta.

 

Santa Bárbara, Lisboa, 12 Janeiro

Os esboços, mais do que o acabado, aproximam-me do gesto criador, da fragilidade e da potência. A imperfeição suscita-me reconhecimento, dá-me o conforto de um qualquer entendimento dos rasgos que nos abrem o mundo para o ver por dentro. O conjunto de esquissos desta «Sebenta do Diabo» do Mantraste (editada em risografia e quase toda no vermelho (proibido) pela Stolen Books) não cessa de me comover, de me divertir, de me surpreender. O fim último dos desenhos foi tornado impossível pelo amor e a exposição original, por força das coisas, teve de se chamar: «Desculpem, Apaixonei-me e Não Fiz Nada». Os desenhos, aqui agrupados, por junto com alguns já apurados e coloridos, possuem cuidados diferentes, mas sem perderem em momento algum a intensidade do olhar original do Bruno. Relendo o fantástico S. Cipriano, invoca infância em ambiente rural («foi o meu avô que podou as vinhas do mal») com a ilustração de ditos e lendas e episódios e animais e plantas e fascínios: poços que têm no castelo o seu reverso, mergulho no desconhecido e construção da segurança. Rico de detalhes e composições, ingénuo e metafórico, denso e poético, sugere a cada passo que estamos rodeados de fogos e corações. E diabos.

 

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Andávamos há meses a escavar em busca do título para o romance do Valério [Romão] que fecha a trilogia. Ele descobriu-o para satisfação do editor: «Cair Para Dentro.»

17 Jan 2018