Três prosas avulsas

O ORIENTALISTA ACIDENTAL

Em ouvidos europeus o termo Ásia desperta uma série infindável de ressonâncias que, geralmente, remetem para o âmbito de um imaginário impregnado de fantasmas cujas características vão do terrível ao sedutor. Afinal, a Ásia, o Oriente, são, antes de mais, invenções de uma Europa que necessita da diferença para afirmar a sua identidade.

É algo fruste limitar a sua compreensão à questão geográfica: Ásia como continente, massa de terra imensa, na medida em que as distinções culturais são radicais. O que tem em comum o asiático do Líbano com o asiático japonês? Poderemos falar numa unidade cultural asiática? É claro que não. A adoptarmos a mera definição geográfica, a Europa seria então uma mera península asiática.

O termo Ásia é muito antigo e a sua origem tem sido explicada de variadas formas. Os Gregos utilizavam-no para designar as terras que ficavam a Leste da sua própria terra, num momento do saber Europeu em que a maior parte daquilo a que hoje chamamos Ásia era completamente desconhecida. É também possível que o termo tenha chegado ao grego a partir do Assírio «asu» que também quer dizer Leste. Seja qual for, na realidade a sua origem, a verdade é que se trata de um termo Ocidental para designar algo de não-Ocidental e nenhum povo dos que hoje consideramos asiáticos o criou e reconheceu nele a sua identidade. Não existe nenhum termo equivalente em nenhuma língua asiática, nem sequer no domínio do discurso geográfico.

É que, ao contrário da Europa onde é clara a existência de uma identidade claramente homogénea, baseada em idênticas características raciais, religião, hábitos e ex- pressões artísticas, a Ásia não é de todo homogénea em nenhum destes pontos de vista e no seu seio existe uma enorme diversidade racial, étnica, religiosa e comporta- mental, que a Europa esqueceu, na medida em que em jogo estava a afirmação da sua própria identidade pelo confronto com a diferença. Se esta diferença englobava em si diferenças talvez ainda mais radicais, isto não foi tomado em conta, nem determinante para que se verificasse uma exclusão do conceito. Para os Europeus não importava se os asiáticos se reconheciam enquanto tal porque eles eram essencialmente não-Europeus. Basta recuarmos até ao século XVII, quando a Ásia era pouco mais que a Turquia, na qual se pensava quando foi forjado o conceito de “luxo asiático”, estando muito distante, então, da imaginação europeia a existência de um “luxo extremo-oriental”.

Assim, como diz Edward Said, o Oriente é praticamente uma invenção europeia e foi, desde a Antiguidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de experiências estranhas e bizarras. Este facto aparece registado em milhares de páginas de literatura ocidental , especialmente em certos períodos como por exemplo o romântico século XIX. O Oriente terá sido produzido pela Europa, através de discursos que se alargam às mais variadas áreas: política, sociologia, etnologia, ideologia, literatura, etc.. A ideia do Oriente reveste-se assim de uma história e de uma tradição própria, com um vocabulário próprio, e que constitui parte do corpus teórico ocidental. De certo modo, com a propagação das colónias europeias pela a Ásia do século XIX, o Oriente foi orientalizado pela própria Europa que aí aplicou as suas categorias do que era suposto esse Oriente ser.

Mas há mais. Ainda segundo Said, a questão acaba também por ancorar, por se basear, numa relação de poder e de domínio, com variadas formas de hegemonia. O Oriente terá sido orientalizado não porque se descobriu ser «oriental», tal qual era concebido e imaginado por um europeu do século XIX, mas porque podia de facto ser tornado «Oriental» através agora de uma aplicação concreta das categorias ocidentais do orientalismo às colónias do Oriente.

O caso mais flagrante é a imagem da mulher oriental na sua relação com o homem do Ocidente. A oriental não fala do homem, não comenta a sua virilidade, não exprime as suas emoções, não tem história pessoal, é submissa. O homem ocidental descreve essa mulher, cria-lhe atributos, de certo modo fala por ela. Este imaginário revela muito mais uma projecção do desejo europeu de domínio óbvio dos povos asiáticos, do que propriamente uma realidade factual.

No entanto, por muito que isso custe a Said, o discurso sobre o Oriente não deve ser encarado como uma amálgama de mitos e mentiras. A verdade é que ele se instituiu como um corpo teórico e prático, tornado consistente ao longo de várias gerações do pensamento ocidental e cuja importância é crucial, sobretudo para compreender esse próprio pensamento e práticas, mais do que o que elegeu como objecto.

Mas foi também este discurso que, durante o século XX, na sua auto-crítica, introduziu a Razão como categoria para a análise da História e do Poder, algo que muito surpreendeu e atemorizou os regimes orientais, por um lado, e por outro lhes permitiu enfrentar decisivamente o século XXI.

OS OSSOS

O livro da dinastia Ming “A Criação dos Deuses” narra episódios interessantes. Um deles – na verdade em dois parágrafos – conta o seguinte:

Dera o príncipe Wen ordens para que fosse construí- da uma piscina num dos terraços do seu palácio. Passava o monarca pelas obras quando reparou num estranho volume transportado por dois servos.

– O que é isso, que levais aí?, perguntou o príncipe.

Eram os ossos, já meio desirmanados, de um esqueleto antigo, anónimo, encontrado durante as escavações. Iam ser deitados fora.

– Tragam aqui os ossos – disse o soberano – , coloquem-nos numa pequena urna e enterrem-na na encosta. Seria um crime deixá-los assim expostos só porque resolvi construir uma piscina.

Estas foram as ordens do príncipe que muito maravilharam as suas gentes:

– Que divina virtude – comentaram – A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos. A sua benevolência em toda a parte é sentida e cada uma das suas acções está de acordo com a vontade do Céu.

“A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos.” Na verdade, foi esta frase que me chamou a atenção. É que o governante não deve estar em demasia alheado do que não é de hoje se quiser tomar boas decisões para o amanhã. Deve ter em consideração “os ossos dos mortos”, respeitá-los, pois quem respeita será respeitado.

Isto é verdade na China, como é verdade nesta sua pequena parte chamada Macau. Wen e Wu foram dois grandes soberanos (c. 1000 a.C.); neles se incarnaram algumas das principais virtudes que devem assistir quem detém o poder.

DEZ MIL GERAÇÕES

“Enriquecer é glorioso”, terá dito Deng Xiaoping e muitos atribuem a esta frase o despontar do capitalismo na China contemporânea. Mas, ao que parece, enriquecer aqui significa enriquecer em conjunto, colectivamente, e não o enriquecimento individual, de acordo com o modelo das sociedades ocidentais.

Se for esse o significado pretendido por Deng, mais não fez que repetir Confúcio pois o Mestre afirmou que para se crescer é preciso que ao lado os outros também cresçam.

Para caçar o rato, ou seja enriquecer, não importa a cor do gato, disse também o Grande Arquitecto. Por isso, a China enveredou pela existência de empresas privadas capazes satisfazer o mercado interno e mesmo de rivalizar com as suas congéneres mundiais.

E este gato preto foi ganhando cada vez mais poder, mais espaço, mais influência, enquanto o gato branco definhava sem, no entanto, perder o controlo da nação. Entretanto, gatos cinzentos surgiram um pouco por toda a parte e a China enriqueceu.

Segundo Xi Jinping, não o fez de forma harmoniosa pois abriu-se um fosso entre os pobres e os muito ricos, alimentando a corrupção, que urgia eliminar. Assim se fez. E é uma China mais harmoniosa que prepara a sua entrada numa Nova Era em que o sonho chinês se irá realizar.

Algures, neste reino maravilhoso, Deng Xiaoping joga go com Confúcio e, ao terceiro copo de vinho de arroz, confessa-lhe a sua admiração: “Mestre, estou preocupado com a persistência da sua sabedoria. Devíamos limitar a sua influência a dez mil gerações.”

18 Mai 2023

Cem anos de mudanças

[dropcap]O[/dropcap] filósofo da antiga China, Lao Tzu, disse, “A felicidade e a desgraça andam de mãos dadas. A felicidade traz muitas vezes consigo o infortúnio e o infortúnio está sempre escondido na felicidade”. Todas as coisas deste mundo têm aspectos positivos e aspectos negativos, à semelhança dos polos positivo e negativo das forças electromagnéticas. Os acontecimentos encaminham-se na direcção positiva quando chegam ao extremo da negatividade. A positividade e a negatividade são duas faces da mesma moeda, não forças opostas como Hegel nos demonstrou através da sua dialéctica.

Toda a gente sabe discorrer sobre a razão, mas apenas muito poucos agem de forma razoável. O egoísmo daqueles que detêm o poder mergulha o mundo na confusão e na inquietação. As obras de Orwell, “O Triunfo dos Porcos” e “1984” ultrapassaram largamente a ficção, foram antevisões do mundo em que vivemos. Só aqueles que fizeram uma leitura aprofundada destas obras podem entender a verdade subentendida nas entrelinhas e por isso evitarão cometer os erros descritos nestes textos “ficcionais”.

A pandemia de COVID-19 tem vindo a assolar o mundo nos últimos seis meses. Enquanto escrevo este artigo, há registo de mais de 13 milhões de infectados a nível global e o número de mortos anda perto dos 600.000, e isto para não falar do enorme abalo económico que já se faz sentir por toda a parte. Este vírus não apareceu do nada. Se surgiu na natureza ou se foi criado em laboratório, é um enigma que só pode ser desvendado pelos cientistas através de estudos aprofundados sobre o seu processo de mutação. Mas esta pandemia trouxe consigo grandes mudanças a nível planetário, para além de todo o sofrimento que já causou.

O Partido Comunista da China foi fundado em 1921, apenas dois anos depois do Movimento do 4 de Maio (1919), o mesmo ano em que Sun Yat-sen estabeleceu o Governo Nacional em Guangzhou (Cantão). No plano internacional, 1918 foi o ano do fim da I Guerra Mundial e da fundação da Liga das Nações, impulsionada pelo então Presidente americano Woodrow Wilson. Quer estivéssemos na China ou na Europa há cem anos atrás, a vida seria certamente mais difícil do que é agora. No entanto, a vitalidade e as crises florescem em tempos difíceis, o que comprova a filosofia de Lao Tzu.

Volvidos 75 anos do final da II Guerra Mundial, e 40 e tal anos após a China ter implementado a política de reformas e de abertura, parece que a Humanidade deixou de celebrar os tempos de paz. O barril de pólvora, constituído pela situação geopolítica de Médio Oriente persiste e o Museu Hagia em Istambul vai voltar a ser uma mesquita. O ping-pong diplomático entre a China e os Estados Unidos vai tornar-se uma guerra comercial. Hong Kong, desde há muito distinguida com o título de “Pérola do Oriente”, está actualmente desfeita em pedaços tão afiados que facilmente cortará as mãos dos que lhe estão próximos. E, mais, sob o domínio dos nacionalismos e dos populismos o mundo está a tornar-se um local muito perigoso. Deng Xiaoping disse que o progresso das reformas não podia ser revertido, porque voltar atrás nos conduziria a um beco sem saída.

A COVID-19, as frequentes cheias, os diversos tremores de terra, as pragas de gafanhotos, a lei de segurança nacional em Hong Kong, o conflito Sino-Indiano, a contenda Sino-Americana….são testes constantes à sabedoria e perseverança da nação chinesa. O resultado positivo ou negativo que daqui pode advir dependerá apenas da responsabilidade colectiva do povo chinês.

A 15 de Julho, os visitantes que cruzarem as fronteiras entre Macau e a Província de Guangdong deixam de ser submetidos a quarentena obrigatória. Com esta decisão espera-se trazer alguma dinâmica à economia das duas regiões, num cenário em que ainda existe receio de propagação da COVID-19. Nos 20 anos que decorreram após o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem vivido quase exclusivamente da indústria do jogo, e nunca reflectiu sobre as consequências de depender economicamente de um único sector. Nestes últimos seis meses em que se tem feito sentir o impacto da pandemia, o Governo da RAE e a população devem ter compreendido a realidade actual de Macau. Posto isto, 2020 é o ano decisivo para que Macau procure pelas suas mãos próprias a mudança, ou então para que fique à espera de ser mudado.

17 Jul 2020

Sistema secundário

[dropcap]E[/dropcap]ntristece-me ter de voltar a escrever sobre este tema. Mas, não posso evitar. Macau está sob ataque, uma ofensiva vinda de dentro e que mina completamente a identidade da região, o seu estatuto jurídico e que visa a rápida homogeneização com o Interior. Esta sexta-feira, em plena Assembleia Legislativa, um deputado nomeado pelo Executivo deu mais uma machadada no brilhante princípio fundador das regiões administrativas especiais e no espírito reformista, não só económico, mas também de valores, implementado por Deng Xiaoping.

Um lacaio do fanatismo, que a todos os momentos se quer mostrar prestável ao partido, como um bom cão de guarda, referiu que as exposições que assinalam o Massacre de Tiananmen, violam a Lei Básica, a Constituição da República Popular da China (RPC) e a primeira parte do princípio “Um País, Dois Sistemas”.

Não sei se já repararam, mas a parte “Um País” está constantemente a ser violada pela liberdade expressão e pelo pensamento livre, enquanto os “Dois Sistemas” são reduzidos a um plano secundário, ou invisível, pelos adeptos puros do “Um País”. Se certa forma, este princípio é fascinante na mesma medida em que é autofágico, come-se a si próprio, é veneno e antídoto. Algo muito aliciante em termos de filosofia política e filosofia do direito.

Pois bem, voltemos às enormidades de Joey Lao. O grande grau de autonomia de Macau e os direitos e deveres fundamentais foram estabelecidos pela declaração conjunta, e também foram plasmados na própria Constituição da RPC. Ficou acordado que em Macau a liberdade dos residentes é inviolável, com pleno gozo da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves.

Se Joey Lao não concorda com esta premissa fundamental, que está na génese do que é a RAEM, nunca deveria pertencer a um órgão soberano desta região. Além disso, o Governo que o elegeu deveria demarcar-se publicamente das declarações do deputado por atentarem claramente à Lei Básica, à Constituição da RPC e ao legado de Deng Xiaoping. Importa referir que o mesmo episódio histórico retratado nas exposições foi uma das maiores manchas na carreira política de Deng.

Depois há algo de tremendamente irónico nas palavras de Joey Lao, quando referiu que uma exposição de fotografia “não pode ser uma oportunidade para aqueles que têm uma intenção política”. Isto dito por um deputado que quer proibir o exercício de um direito fundamental por razões políticas é o cúmulo da ironia.

Além disso, estamos a falar de uma exposição que se realiza há 30 anos, sem registo de perturbações à paz pública ou de ter causado instabilidade em Macau. Já a proibição, feita pela porta do cavalo e ao arrepio da lei, lança óleo numa brasa que mal se sustinha acesa.

O antagonismo e a instabilidade, causada pelo medo a vozes críticas, tem sido monopólio do Governo e o único foco de destabilização, dando primazia ao politicamente correcto, em detrimento dos direitos fundamentais. Curiosamente, os mesmos direitos que reclamados por quem tomou a Praça da Paz Celestial.

Epá, não me venham com teorias conspirativas nunca consubstanciadas e que contrariam completamente entrevistas, discursos e todos os registos históricos dos protestos em Pequim. Gritar CIA não é um argumento, é um espasmo grunho apologista de um massacre e um certificado de cão de colo.

O princípio “Um País, Dois Sistemas” nunca se reduziu ao facto de no sul da China existirem regiões com três moedas diferentes, delimitadas por fronteiras, mas que pertencem à mesma nação. A questão nunca foi meramente cambial e fronteiriça, nem de sistema económico.

Depois há outro problema triste no discurso de Joey Lao que acha que as lições dadas pelas exposições “é o tipo de educação que não é precisa”. A forma aberta e despudorada como se censura a história inconveniente é típica de um regime fraco, incapaz de lidar com as próprias falhas, egocêntrico que se olha ao espelho a berrar “eu sou o melhor”. Ironicamente, é um discurso que se aproxima da psique de Donald Trump. Se alguém o critica, se é confrontado com uma citação sua que é embaraçosa, recusa o que está perante os olhos de todos e foge, numa birra infantil, para o abraço maternal da propaganda da Fox News, onde todos lhe dizem que é o maior.

Quantas monstruosidades o mundo viveu devido a déspotas narcísicos que não conseguem admitir as próprias falhas?

Diria que esta é a educação que mais interessa, que nos faz crescer, que obriga a melhorias, que respeita o passado e que não os cidadãos como ovelhas acéfalas. A China é muito maior que isto, tem muito mais história que isto, muito mais alma, muito mais coração.

Já agora, este é o calibre de académico que iria trazer elevação às discussões no plenário, de acordo com as opiniões da maioria dos analistas ouvidos na altura em que se formou a sexta Assembleia Legislativa da RAEM.

Só mais uma coisa. Quantas machadadas acham que o segundo sistema aguenta, até Macau se tornar no distrito de Zhuhai onde se joga? Não denunciar estes atropelos é pactuar com eles. Ou já não podemos mesmo falar?

18 Mai 2020

Morreu antigo diplomata de líderes chineses Mao Zedong e Deng Xiaoping

[dropcap]O[/dropcap] diplomata chinês Ji Chaozhu, que serviu como tradutor dos líderes Mao Zedong e Deng Xiaoping e foi vice-secretário-geral das Nações Unidas, morreu hoje aos 90 anos, informou o ministério chinês dos Negócios Estrangeiros.

Ji também serviu como embaixador em Inglaterra, ao longo de uma longa carreira que começou depois de se ter formado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e retornado à China, durante a Guerra da Coreia (1950-1953), quando tropas norte-americanas e chinesas se envolveram em combates violentos.

Depois de estudar na Universidade de Tsinghua, no norte de Pequim, Ji foi designado, devido à sua fluência na língua inglesa, para apoiar as negociações de paz entre os países envolvidos no conflito.

Ji trabalhou depois como intérprete do então primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, Zhou Enlai, para além de Mao, o fundador da República Popular.

Após a morte de Mao, Ji assumiu um papel semelhante com o sucessor, Deng Xiaoping, que mais tarde o enviou para estabelecer um escritório de ligação informal nos Estados Unidos, em 1973.

Em 1979, Ji acompanhou Deng numa visita aos EUA, após o estabelecimento de relações diplomáticas formais entre os dois países, antagonistas de longa data, e trabalhou mais tarde na embaixada chinesa em Washington.

O diplomata serviu mais tarde como embaixador nas Ilhas Fiji e no Reino Unido e cinco anos como vice-secretário-geral das Nações Unidas para serviços de apoio e gestão ao desenvolvimento, tendo-se retirado em 1996.

O seu último cargo foi como vice-presidente da Federação da China para os Chineses Ultramarinos Retornados, o qual deixou em 2005. Ji nasceu numa família rica na província de Shanxi, no norte da China. Em 1929, quando tinha 9 anos, mudou-se com a família para os EUA.

Ele e o irmão frequentaram escolas particulares exclusivas em Nova Iorque, onde aprendeu inglês fluente e adquiriu profundo conhecimento da cultura norte-americana.

Como muitos outros altos quadros do Governo chinês, Ji foi perseguido durante a Revolução Cultural, que mergulhou o país numa década de caos e isolamento, sobretudo devido à sua educação estrangeira e ao facto de o seu irmão ter permanecido nos EUA. Ji revelou as suas experiências na autobiografia “O homem à direita de Mao”.

7 Mai 2020

Dez mil gerações

[dropcap]E[/dropcap]nriquecer é glorioso”, terá dito Deng Xiao Ping e muitos atribuem a esta frase o despontar do capitalismo na China contemporânea. Mas, ao que parece, enriquecer aqui significa enriquecer em conjunto, colectivamente e não o enriquecimento individual de acordo com o modelo das sociedades ocidentais.

Se for esse o significado pretendido por Deng, mais não faz que repetir Confúcio que afirmou que para se crescer é preciso que ao lado os outros também cresçam. Para caçar o rato, ou seja enriquecer, não importa a cor do gato, disse também o Grande Arquitecto. Por isso a China enveredou pela existência de empresas privadas capazes satisfazer o mercado interno e mesmo de rivalizar com as suas congéneres mundiais.

E este gato preto foi ganhando cada vez mais poder, mais espaço, mais influência, enquanto o gato branco definhava sem, no entanto, perder o controlo da nação. Entretanto, gatos cinzentos surgiram um pouco por toda a parte e a China enriqueceu. Segundo Xi Jinping, não o fez de forma harmoniosa pois abriu-se um fosso entre os pobres e os muito ricos, alimentando a corrupção, que urgia eliminar.

Assim se fez. E é uma China mais harmoniosa que prepara a sua entrada numa Nova Era em que o sonho chinês se irá realizar. Algures, neste reino maravilhoso, Deng Xiao Ping joga go com Confúcio e, ao terceiro copo de vinho de arroz, confessa-lhe a sua admiração: “Mestre, estou preocupado com a persistência da sua sabedoria. Devíamos limitar a sua influência a Dez Mil Gerações.”

10 Dez 2019

Patriotismo fatal

[dropcap]N[/dropcap]a China, existe uma celebração, enraizada no folclore local, designada por “Festival da Comida Fria”. Neste dia, as pessoas devem manter-se afastadas de qualquer tipo de fogo, inclusivamente da chama do fogão. A festa celebra-se no dia anterior ao Dia de Cheng Ming (Dia de Finados). Reza a lenda que a tradição teve origem num incidente histórico trágico. Durante os Anais das Primaveras e dos Outonos (620 AC), o Estado de Jin debatia-se com lutas internas e o filho do duque, herdeiro do trono de Jin, foi forçado a um longo exílio, antes de regressar a casa para reclamar o trono que lhe pertencia por direito próprio. No momento de recompensar os súbditos que o ajudaram durante o exílio, esqueceu-se de um dos que lhe tinham sido mais fiéis.

Este leal e injustiçado servidor abandonou o Estado de Jin e foi viver para as montanhas. Quando o duque se apercebeu do seu erro, foi pessoalmente até às montanhas à sua procura, na esperança de poder reparar o mal que tinha feito. Mas a zona era muito vasta e o vassalo queria manter-se escondido. Após vários dias de buscas, o duque continuava sem o encontrar e foi aí que alguém propôs que se devia pegar fogo à floresta para o obrigar a sair do esconderijo. Mas, no final o que encontraram foi o seu corpo carbonizado, abraçado ao tronco de uma árvore. O duque amava o seu servo, mas usou o método errado para lhe demostrar o seu apreço e tentar recompensá-lo. As boas intenções transformaram-se em actos malignos e acabaram numa tragédia. Devastado pelo remorso, o duque proíbiu o povo de acender o lume no dia em que se assinalava o aniversário do trágico acontecimento, para homenagear o seu leal servidor e para se impedir a si próprio de voltar a cometer actos cruéis de futuro. Mas, ignorando esta lição, há quem ande a incendiar Hong Kong.

A implementação da revisão da “Lei de Extradição” iria impedir que Hong Kong fosse um paraíso para criminosos domésticos e estrangeiros. Mas a forma como Carrie Lam lidou com toda esta situação deixou muito a desejar. Esta forma de actuar, adicionada à influência das ideologias de extrema-esquerda, internas e externas, fez com que o movimento contra a “Lei de Extradição” acabasse por se transformar gradualmente num conflito entre os manifestantes e a polícia, um campo de batalha entre o campo pró-governamental e o campo pró-democrático e uma moeda de troca nas negociações comerciais sino-americanas. Todos estes factores se conjungaram para mergulhar a cidade na agitação e no caos. Após a promulgação da “Lei Anti-Máscaras”, o conflito acalmou, mas criou-se uma enorme insatisfação popular. Como o Governo não quis criar a Comissão de Inquérito Independente para averiguar a actuação da Polícia, não há forma de investigar as supostas atrocidades cometidas durante os motins. Teorias da conspiração e inverdades de ambos os lados continuam a grassar, sem que ninguém as consiga travar. Não se conseguem resolver as tensões criadas entre o Governo e a população e ambos os lados revelam incapacidade de autocrítica. É possível que a situação se venha a resolver com a imposição de medidas drásticas. Se vier a ser o caso, Hong Kong ficará “ferida de morte”. Seria esta acção radical, patritótica e motivada pelo “amor a Hong Kong”?

Durante o século XX, não se cultivou na China uma tradição de políticas negociais nem de reflexão, tendo-se recorrido por sistema à força para resolver os problemas. Deng Xiaoping concebeu a ideia de “um país, dois sistemas”, com a intenção de usar Hong Kong e Macau como modelos para abrir caminho à resolução pacífica do problema de Taiwan. Em Macau, o cenário político ficou definido depois dos acontecimentos do “Motim 1-2-3”, ocorrido em 1966, e o princípio “um país, dois sistemas” foi aplicado com sucesso na cidade. Mas em Hong Kong, após os “motins esquerdistas de 1967”, estabeleceu-se um forte pluralismo político. Por isso, a actual situação de Hong Kong não pode ser resolvida “com pulso de ferro” ou apenas com o uso da força policial. Enquanto as ideologias de extrema-esquerda dominarem a cena polítca de Hong Kong, o modelo “um país, dois sistemas” corre o risco de se vir a tornar no modelo “um país, um sistema” a qualquer momento. A situação política e a preparação para as eleições presidenciais de 2020 em Taiwan também têm sido largamente afectadas, ao longo dos últimos meses pelo movimento contra a “Lei de Extradição” de Hong Kong.

Os instigadores de acções levadas a cabo em nome do patriotismo, mas que prejudicam o país que dizem defender, serão inevitavelmente condenados pela História.

11 Out 2019

Macau People Power quer colégio eleitoral eleito democraticamente

[dropcap]A[/dropcap] Associação Macau People Power entregou ontem uma carta ao Governo a pedir que os eleitores qualificados de Macau possam ter direito a eleger os 400 membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo na Sede do Governo.

Como argumento para a reivindicação, o presidente da associação, Si Tou Fai, recordou o princípio “Um País, Dois Sistemas” proposto pelo ex-presidente chinês Deng Xiaoping, que confere a Macau e a Hong Kong, as duas regiões administrativas especiais da China, “um alto grau de autonomia”. Como tal, seria prevista a implementação de uma eleição democrática “mais moderna”.

“No entanto, para a eleição do quinto Chefe do Executivo, o Governo voltou a adoptar o método do “voto de membros do grupo”, para eleger os membros do colégio eleitoral, lamentou.

Embora a Lei Básica de Macau não determine que o Chefe do Executivo possa ser eleito pelos residentes, para Si Tou Fai, o colégio eleitoral deve ser “amplamente representativo” das intenções de voto da população, pelo que deve ser eleito por ela.

Pouco exemplar

Por outro lado, este ano marca o vigésimo aniversário do “Retorno de Macau à Pátria”, e é o momento em que se realiza a quinta eleição do Chefe do Executivo do território, sendo que em Janeiro, numa palestra por ocasião dos 40 anos da divulgação da “Mensagem aos Compatriotas de Taiwan”, o actual Chefe do Executivo, Chui Sai On, e o ex-presidente da Assembleia Legislativa, Ho Iat Seng e único candidato ao mais alto cargo do Governo, afirmaram que Macau implementou com sucesso o princípio “Um País, Dois Sistemas”, salientando que Macau é um “exemplo de sucesso”, apontou Si Tou Fai aos jornalistas na altura em que entregava a missiva ao Governo.

O representante da Macau People Power sublinhou ainda que devido à recente situação de conflitos em Hong Kong, o Governo de Taiwan e os seus residentes consideram que o princípio de “Um País, Dois Sistemas”, e um alto grau de autonomia não passa de uma mentira. O mesmo se aplica à actual situação eleitoral de Macau, “em ter apenas um único candidato ao cargo de Chefe do Executivo”. Desta forma é impossível convencer Taiwan a acreditar no princípio proposto por Deng Xiaoping e na autonomia que o ex-presidente chinês ambicionava para as regiões especiais da China.

6 Ago 2019

António Tânger Correia, diplomata, recorda desconhecimento da China no início dos anos 80

António Tânger Correia foi o terceiro diplomata português em Pequim após o reatamento das relações diplomáticas entre China e Portugal e recorda o grande desconhecimento que tinha sobre o país que começava a abrir-se ao mundo. Macau ajudou, mas “não era a mesma coisa”

 

[dropcap]N[/dropcap]o início dos anos 80, António Tânger Correia, o terceiro diplomata português em Pequim depois do reatar diplomático, chegou à China para descobrir rapidamente que conhecer Macau não ajudava a compreender melhor aquele país gigante onde coexistiam vários países.

“O nosso principal problema era desconhecer o que era a China. Tínhamos um grande conhecimento sobre Macau, mas não é a mesma coisa”, recordou o primeiro secretário da embaixada portuguesa em Pequim entre 1981 e 1984 em entrevista à Lusa.

Tânger Correia sublinhou que “não se pode falar da China no abstrato, porque existem várias Chinas dentro da China” com “diferenças muito marcadas e muito marcantes”. Num país com 43 alfabetos escritos, “achar que toda a gente fala mandarim é um mito”, notou, acrescentando que “a China é um continente” em que tudo muda do norte para o sul, desde a “maneira de estar” à língua e à gastronomia.

Cumprindo uma promessa que tinha feito a Adelino Amaro da Costa, que lhe tinha exprimido a vontade de o enviar para aquele posto antes de se despenhar, juntamente com o primeiro-ministro Sá Carneiro, em 4 de Dezembro de 1980, em Camarate, Tânger Correia revela que “ia sem ideias preconcebidas”, preparado “para aprender e para ver”. De alguma forma, assume, a escassez de informações disponíveis na altura sobre o gigante oriental ajudava também a manter uma “mente aberta”.

A viagem via Moscovo

Apanhou um avião para Moscovo e daí seguiu numa emocionante viagem do comboio, cruzando a antiga União Soviética no mítico Transiberiano que tornava “as coisas ainda mais interessantes”.

Chegou a Pequim seis dias depois, numa altura ainda inicial do restabelecimento das relações diplomáticas com a China. A República Popular da China tinha nascido em 1949, mas o Estado Novo nunca reconheceu o regime criado por Mao Tse Tung, o que só veio a acontecer depois do 25 de Abril de 1974.

Coube ao diplomata João de Deus Ramos abrir a embaixada portuguesa em Pequim, em Fevereiro de 1979, preparando o terreno para o embaixador António Ressano Garcia. Dois anos mais tarde chega Tânger Correia, “novo e cheio de convicções”. Vai aprendendo algumas lições com sinófilos mais experientes. Um deles contextualizou-o: “Isto na China é assim: uma pessoa está cá uma ou duas semanas e escreve um livro sobre a China; se está três ou quatro meses escreve uns artigos e se está três ou quatro anos deixa de escrever porque já percebeu que não percebe nada do que se passa”, relembra Tânger Correia com um sorriso, declarando-se “inteiramente de acordo”.

“Não há nenhum ocidental, nem mesmo muitos chineses, que tenham uma compreensão do que é de facto a China, nos seus vários matizes” reforçou.

Na capital chinesa, o antigo diplomata ficou impressionado com os milhares de bicicletas e a quase ausência de automóveis: “havia alguns carros diplomáticos e táxis, por isso víamos muitos poucos carros e muitas bicicletas. Dizia-se que os carros do partido circulavam por baixo [da cidade]”.

Surpreendeu-se também com “o sistema” que o rodeava, que impedia o contacto com a população local, e a sensação permanente de espionagem.

“Punhamo-nos debaixo dos lustres horrorosos que havia nas nossas casas e, muito devagarinho em inglês, transmitíamos o que queiramos dizer não se podia tocar”. Mas, continua, “não se podiam tocar, senão vinham logo dez chineses”. Os últimos andares dos prédios, cujo acesso era interdito, eram ocupados por “funcionários que gravavam tudo”.

Era necessário obter autorização para qualquer deslocação, até para ir à praia, conta Tânger Correia. O pessoal da embaixada pertencia também a organizações do Estado chinês: “Vinham do ‘bureau de services’, mas nos chamávamos-lhe o ‘bureau de sevícias’, todo o pessoal era contratado através deles”.

Sempre boas relações

As missões diplomáticas, que os chineses dividiam em “simpáticas e antipáticas”, recebiam pessoal de acordo com o estatuto: “para as antipáticas mandavam pessoal que era do piorio, que fazia a vida negra à estrangeirada”.

O que não era o caso de Portugal, sempre considerado um país “simpático” e com relações com a China que Tânger Correia descreve como “excelentes”, apesar do hiato diplomático formal.

“Os chineses lembram-se do bom e do mau, tem uma memória muito grande e sabem coisas sobre nós que nós não sabemos. Portugal nunca foi uma peça negativa neste xadrez. No Japão, por exemplo, tivemos mais problemas”, adianta o ex-diplomata.

“Nunca conheci um mau momento da relação bilateral (…) Desde que iniciámos relações diplomáticas, e incluindo o processo de transição face a Macau, nunca assisti a um momento de maior crispação ou de menor conforto nas relações entre os dois países”, garante.

Nem a relação económica é nova. Apesar de existir agora “maior interdependência” o investimento chinês em Portugal “há muito que existe” e as “folclóricas” lojas chinesas são prova disso mesmo.

Tânger Correia aconselha a “diversificar as opções económicas”, mas reconhece que é mais fácil de dizer do que fazer. “Temos de ser realistas, olhar para o tamanho de Portugal e da China. Não há milagres, a China tem a força que tem, mas nós temos outras qualidades. Temos uma posição geoestratégica importante, temos capacidade de gerir interesses diferentes”, destacou, realçando que estas características foram muito importantes no relacionamento com outras potências, mesmo em períodos de guerra.

A China é de Deng

Para Tânger Correia, a China de hoje continua a ser a de Deng Xiaoping, apesar da mudança de dirigentes. Xi Jinping pode ser o homem que neste momento tem o poder, mas esse “poder está repartido por várias fações”, sendo o presidente chinês o homem que assegura o equilíbrio.

“A China não é um país que se governe com uma pessoa só. É típico da sua cultura que seja colegial. Os países asiáticos, em geral, dão muito mais importância ao colegial do que nós, ocidentais, que somos mais egocêntricos. No oriente, esse individualismo não e tão claro”, resume.

Quanto a Macau, “mantém-se como uma porta de entrada” que não causa embaraços políticos aos chineses. “É um local pacífico, usado pelas potências ocidentais e orientais e pela China como placa giratória de determinadas situações”, comentou, concluindo: “talvez até tenha mais importância agora do que tinha”.

7 Jul 2019

40 anos de abertura económica | A postura tímida de Macau ao “milagre chinês”

Foi há 40 anos que a China se abriu ao mundo graças às políticas de Deng Xiaoping, que introduziu a economia de mercado ao sistema socialista. Em Macau, as autoridades portuguesas sempre olharam com timidez para as possibilidades de cooperação empresarial, apontam economistas. A nível político, Leonel Alves recorda a criação de uma lista única com portugueses e chineses para as eleições

 

[dropcap]S[/dropcap]aída de um período conturbado da história, marcada pela Revolução Cultural e o Grande Salto em Frente, políticas de Mao Tse-Tung, a China abriu-se para o mundo nos anos 80, para não mais voltar ao passado. De país subdesenvolvido passou a uma nação com classe média, cada vez mais milionários e um crescente leque de países estrangeiros ligados pelo comércio externo.

Oficialmente, o plano de reformas económicas foi aprovado em 1978 no XI Comité Central do Partido Comunista Chinês. Com essa medida, Deng Xiaoping introduzia uma economia de mercado, mantendo o socialismo como regime político. Foi também nessa altura que o sul da China sofreu um brutal crescimento económico, com o estabelecimento das Zonas Económicas Especiais (ZEE), em cidades como Shenzhen e Zhuhai. A abertura a capitais e empresas privadas permitiu o aumento de salários e consequentemente de maior consumo interno.

Segundo a sua Constituição, a China é “um Estado socialista, liderado pela classe trabalhadora e assente na aliança operário-camponesa”. Na prática, o país adopta um modelo que designa de “Socialismo com características chinesas”: a iniciativa privada e o investimento estrangeiro são permitidos, mas os sectores chave da economia permanecem sobre “controlo estatal”.

Albano Martins, economista, chegou a Macau em 1981 e visitou a China pela primeira vez em 1982. Desse tempo recorda um país “de uma só cor”, pois quase todas as pessoas envergavam ainda as tradicionais vestes comunistas, à boa maneira de Mao Tse-Tung.

“A pobreza era genérica, havia uma grande sensação de que era tudo mais ou menos igual, o atraso era notório, mas as pessoas não aparentavam ser infelizes. Havia, de certo modo, uma igualdade nas pessoas, porque a riqueza não era muita”, contou ao HM.

Numa altura em que o primeiro Mcdonald’s acabava de abrir em Shenzhen, e quando a bicicleta era o principal meio de transporte para muitas famílias, os estrangeiros eram ainda estranhos aos chineses.

“A China era um país subdesenvolvido. Quando entrei percebi que aquela era a primeira vez que viam uma pessoa branca. Os meus filhos eram apalpados pelas pessoas porque achavam-nos esquisitos. A zona de Cantão era um mar de bicicletas e quase não se podia andar nas ruas”, recordou o economista, que visitou o país inserido numa delegação económica de Macau com “pessoas ligadas ao mundo da política chinesa de Macau”.

“Tivemos o primeiro olhar de como era a China nessa altura”, contou, mas já então se notavam sinais de que todo o crescimento económico acarretava efeitos negativos para alguns.

“Cheguei a ir várias vezes às cidades inseridas nas ZEE e notei uma diferença, pois havia pessoas a pedir esmola na rua, o que não era tolerável naquela altura. Comecei a sentir que o crescimento se fazia de forma brutal, mas a distribuição estava muito longe de poder agradar. Ainda hoje é profundamente desigual.”

Contributos locais

António Félix Pontes chegou a Macau em 1980 para trabalhar no Instituto Emissor de Macau, que mais tarde seria transformado na Autoridade Monetária e Cambial de Macau.

Na época, “a China era um país muito pobre, subdesenvolvido, e na parte da banca e dos seguros era tudo muito incipiente”, lembrou ao HM. “As pessoas ainda andavam vestidas à Mao Tse-Tung. Já fui à China mais de 23 vezes, essencialmente a Pequim, e naquela época só havia na capital dois ou três hotéis. A política era muito fechada.”

Anos depois, o advogado e ex-deputado Leonel Alves não tem dúvidas de que não só este cenário se dissipou, como a China hoje tem provas dadas do poder económico que conseguiu no quadro internacional.
“A China hoje é uma das potências mais importantes do mundo, tem a maior fábrica do mundo, é um player internacional com crescente importância”, defendeu. Hoje, com a implementação de políticas como “Uma Faixa, Uma Rota”, a China “entrou numa nova era”. Leonel Alves entende que, hoje em dia, o país é encarado pela comunidade internacional como “pacífico e um país que tenta ajudar todos os países em desenvolvimento a proporcionar às suas populações melhores condições de vida”.

Esta segunda-feira, por ocasião das cerimónias de celebração dos 40 anos da Abertura e Reforma económica, o presidente chinês, Xi Jinping, garantiu que Macau e Hong Kong vão ser parte integrante da política de expansão da abertura ao mundo. Para Leonel Alves, os dois territórios também, à época, “contribuíram enormemente para este virar de página da história da China”.

“O impacto directo [da abertura e reforma] sempre foi em proporção directa com o tamanho de Macau, e houve um maior impacto do lado de Hong Kong, que sempre foi um centro internacional de comércio.”

Sem estratégia

Se hoje Portugal e China têm estreitas relações comerciais e diplomáticas, o mesmo não acontecia na era de Deng Xiaoping, pois apenas em 1979 houve um restabelecimento dessas ligações. Em Macau, os sucessivos governadores portugueses nunca apostaram em parcerias empresariais com as cidades chinesas que se desenvolviam do outro lado da fronteira.

“A impressão que tive é que a administração portuguesa não queria saber absolutamente nada do que se estava a passar do outro lado”, apontou Albano Martins. Ainda assim, “havia curiosidade em ver, porque a China era outro país, não o longínquo Portugal ou a minúscula Macau. Mas não havia políticas nem ideias tendo em conta a abertura da China e o desenvolvimento”.

Para Albano Martins, a própria história do território “mostra que a Administração portuguesa do território nunca fez nada de concreto para aprofundar as relações económicas com a China”.

Nesta fase registou-se, contudo, algum desenvolvimento de um grupo de empresários “de boas famílias”, sendo que “alguns deles tinham interesses políticos, eram representantes da própria China, e fizeram o seu percurso através deste desenvolvimento”.

António Félix Pontes referiu que apenas os governadores Carlos Melancia e Vasco Rocha Vieira tiveram alguma visão estratégica neste sentido. “O primeiro governador que apanhei foi Melo Egídio. Nunca vi da parte dos governadores qualquer manifestação de desagrado, bem pelo contrário. Havia uma visão muito optimista dos acontecimentos que estavam a ocorrer na China.”

“Creio que em termos de parcerias estratégicas passou a haver mais com o governador Carlos Melancia e Rocha Vieira. Os outros não tinham ainda essa visão”, acrescentou. No período do governador Almeida e Costa, que esteve em Macau de 1981 a 1986, “houve algumas convulsões internas e não teve tempo para olhar para a China”.

Leonel Alves prefere destacar o facto de, com a abertura económica da China, se ter dado início ao processo de transferência de soberania de Macau. “As autoridades portuguesas agiram sempre no sentido de uma colaboração, e não nos podemos esquecer que as relações diplomáticas entre os dois países se restabeleceram tardiamente.”

A fase de abertura do país acabaria por coincidir com o arranque das negociações para a entrega de Macau, uma vez que a Declaração Conjunta foi assinada em 1987. “A cooperação a nível institucional dos dois governos [Portugal e China] foi muito importante para o sucesso da transição e interesses portugueses em Macau”, concluiu Leonel Alves.

 

Cronologia da reforma

– Aprovação do programa de reformas económicas em 1978, no XI Comité Central do Partido Comunista Chinês, onde se propôs a implementação do “socialismo com características chinesas”
– Em Agosto de 1980, foram aprovados os regulamentos da província de Guangdong para o estabelecimento de zonas económicas especiais
– Em 1981, apenas uma em cada 170 lares urbanos tinham uma televisão a cores. Ter uma televisão em casa era motivo de ostentação, sobretudo quando um homem pedia alguém em casamento
– Com a abertura a indústrias estrangeiras, ter uma televisão, um frigorífico e uma máquina de lavar era quase obrigatório na casa de uma família de classe média
– Em Setembro de 1987, foi concedida maior autonomia à província de Hainão, que é hoje a maior zona económica especial da China
– Em 1990 abriu o primeiro Mcdonalds em Shenzhen, onde os novos ricos costumavam ficar nas filas durante horas a falar com amigos, a discutir negócios ou até em encontros. Ter um Volkswagen Santana era sinónimo de estatuto social
– Em 2001 que a China aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC). Entre 2001 e 2017, a importação de bens e serviços por parte da China foi duas vezes superior à média mundial
– Adopção do 10º Plano Quinquenal para o Desenvolvimento Económico e Social
– Em 2013, a China estabeleceu, de forma experimental, a primeira Zona de Comércio Livre em Xangai, que registou uma expansão em termos de dimensão nos anos seguintes e que atraiu várias multinacionais estrangeiras
– Em 2010 Xangai recebeu a Expo Mundial

14 Nov 2018

A sabedoria de Deng Xiaoping

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] 13.º Congresso Nacional do Povo e o Comité Nacional da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês vão reunir-se em Pequim. Um dos objectivos das sessões plenárias é a criação de uma emenda ao Artigo 79 da Constituição da República Popular da China, que anule o limite de dois mandatos consecutivos do Presidente e do Vice-Presidente.

 

Os conteúdos que vão ser agora revistos foram inseridos na Constituição em1982, sob a liderança de Deng Xiaoping, o pioneiro da Reforma e da política de abertura da China. O Presidente da República Popular da China é nominalmente o líder supremo do País. Mas, na realidade, o Presidente da Comissão Central Militar do Partido Comunista da China é quem detém o maior poder. Mao Tsé Tung deteve este cargo até à sua morte. Deng Xiaoping nunca foi Presidente da China, mas sim Presidente da Comissão Central Militar, o que explica a força da sua liderança. Pensando nesta distribuição de poder, porque é que foi introduzido em 1982 o limite de dois mandatos consecutivos para o Presidente e para o Vice-Presidente? Porque Deng Xiaoping era um homem sábio.

 

Como sabemos, depois do Partido Comunista ter fundado a República Popular da China em 1949, Mao Tsé Tung e Liu Shaoqi assumiram a presidência em sucessão, entre 49 e 68. Depois de Liu Shaoqi ter sido afastado em 1968, durante a Revolução Cultural, o lugar de Presidente foi cancelado por algum tempo. Mas o lugar de Primeiro-Ministro, pelo contrário, foi ocupado por Zhou Enlai desde 1949, até à sua morte em 1975. Deng Xiaoping e os antigos quadros do Partido que atravessaram a Revolução Cultural, sabiam que o poder corrompe e que “o poder absoluto corrompe absolutamente”. Foi por isso que Deng “reformou” a Constituição em 1982, libertando-a das ambiguidades que conduzem à corrupção.

 

Nas “Obras Escolhidas de Deng Xiaoping”, podemos ler, “Para salvaguardarmos a democracia popular, o estado de direito tem de ser fortalecido. É preciso assegurarmo-nos que a democracia se institucionaliza e se legitima, e garantir que este sistema e as leis não mudam se houver alternância de líderes, ou se os líderes mudarem os seus pontos de vista ou os seus objectivos”. Em obediência a este princípio, na emenda de 1982 à Constituição, ficou definido que o Presidente e o Vice-Presidente da China não podiam servir para lá dos dois mandatos consecutivos. Para além disso, no Artigo 87, declara-se que o Primeiro Ministro, o Vice-Primeiro Ministro e os Conselheiros de Estado têm igual limitação de mandatos. Mas, para salvaguardar a liderança do Partido Comunista, não se estabeleceu limite de mandatos para os líderes do Partido nem para o Presidente da Comissão Central Militar. Seguindo os princípios orientadores estabelecidos por Deng Xiaoping, até à presente data, todos os líderes da China respeitaram o limite de mandatos. Jiang Zemin e Hu Jintao foram ambos Presidentes por dois mandatos. E tanto Zhu Rongji como Wen Jiabao ocuparam o cargo de Primeiro-Ministro por dois mandatos consecutivos. Se estes líderes não tivessem respeitado a Constituição, Jiang Zemin ou Hu Jintao ainda poderiam ser hoje em dia Presidentes da China.

 

Para impedir a concentração de um poder permanente nas mãos de um só líder, que pudesse vir a desencadear outra catastrófica Revolução Cultural, Deng Xiaoping dedicou muito tempo a introduzir alterações cuidadosamente pensadas. Mas, apesar disso, o modelo da liderança conjunta caiu em 1989.  Hu Yaobang e Zhao Ziyang, foram os melhores concretizadores do pensamento de Deng Xiaoping. Após a morte de Hu e a demissão de Zhao, os sucessores conseguiram manter o limite de mandatos, no entanto a luta pelo poder na China nunca deixou de existir. A centralização excessiva do poder e o surgimento de sectores de pressão, os poderosos grupos plutocráticos, aumentaram em muito a corrupção. O vigoroso ataque a este flagelo desencadeado nos últimos anos por Xi Jinping e por Wang Qishan conquistou o coração do povo. Mas a edificação de um sistema eficaz é ainda mais importante, porque impede as pessoas de prevaricar a priori. O estado de direito é sempre melhor que o situacionismo.

 

Deng Xiaoping já morreu há mais de duas décadas, mas, por mais clarividente que fosse, nunca poderia ter previsto as emendas à Constituição que estão a ser preparadas. Quando o sistema não se desenvolve da melhor maneira, será inevitavelmente substituído pelo autoritarismo político.

9 Mar 2018

Angola | João Lourenço quer reformas ao estilo Deng Xiaoping

Os resultados ainda não são oficiais mas os números apontam para a uma maioria do MPLA. João Lourenço já se prepara para suceder a José Eduardo dos Santos e adianta que vai seguir uma política de reformas semelhantes às de Deng Xiaoping

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] general João Lourenço, que segundo os resultados provisórios da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) será o próximo Presidente de Angola, sucedendo a 38 anos de liderança de José Eduardo dos Santos, promete ser reformador, ao estilo Deng Xiaoping.

Numa entrevista concedida em Madrid, para onde viajou logo após as eleições gerais angolanas de 23 de agosto, João Lourenço rejeitou a classificação que lhe tem sido colocada, de “Gorbachev angolano”, por suceder à prolongada liderança de José Eduardo dos Santos.

“Reformador? Vamos trabalhar para isso, mas certamente não Gorbachev, Deng Xiaoping, sim”, afirmou João Lourenço, militar formado na União Soviética e que agora se prepara para ascender ao poder em Angola, questionado na capital espanhola pela agência EFE.

Deng Xiaoping foi secretário-geral do Partido Comunista Chinês e líder político da República Popular da China entre 1978 e 1992, tendo criado o designado socialismo de mercado, regime vigente na China moderna e que posteriormente foi adaptado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) para aquele país.

Mudança de cara

No partido, João Lourenço mantém-se como vice-presidente, cabendo a liderança a José Eduardo dos Santos, que pode continuar a ditar a política no país.

“Está claro que o MPLA vai influenciar as políticas do Governo porque é o partido mais votado, tem 61% dos votos, não é justo pensar que o MPLA não vai conduzir as políticas do novo Governo. Então quem seria? O partido menos votado? Sem dúvida que o novo Governo vai seguir o ideal do MPLA porque é o partido em que o povo confiou”, afirmou Lourenço.

Tal como na campanha eleitoral, João Lourenço relativiza a convivência com José Eduardo dos Santos como presidente do MPLA: “O Presidente Dos Santos é uma personalidade muito respeitada, tanto dentro do partido como por um conjunto da sociedade e não é anormal que o presidente do partido no poder não seja ele próprio o Presidente da República. Apenas para citar um caso, Donald Trump é o Presidente dos Estados Unidos mas não do Partido Republicano”, afirmou.

Diversificações

“Diversificar a economia é fundamental e indispensável para sobreviver, é imprescindível abrir a nossa economia e esquecermos um pouco o petróleo. O nosso país, Angola, pode sobreviver, tem mais recursos além do petróleo”, afirmou João Lourenço.

Desde logo, garante que serão criados incentivos à agro-indústria em Angola, para potenciar as vastas terras aráveis e água disponíveis, afirmando que o país pode vir a ser “uma grande potência agrícola, do tipo do Brasil”.

A privatização de empresas públicas que não sejam lucrativas e representem um “peso morto para o Estado” mantém-se como prioridade de João Lourenço: “Quais? Não posso dizer, isso é o que vamos estudar, caso a caso, e será feito pelo novo executivo”.

Na mesma entrevista, João Lourenço assume o objectivo de “preservar e usar” as “conquistas” dos antecessores, Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos, ambos do MPLA.

“Vou usar as nossas conquistas, a independência, a soberania, a paz, a reconciliação, e concentrar-me no desenvolvimento da economia. Angola tem recursos enormes e as condições necessárias para criar um ambiente de negócios que incentiva os investidores a virem para o nosso país”, concluiu.

Resultados satisfatórios

O candidato do MPLA às eleições gerais angolanas, que segundo os resultados provisórios da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) será o novo Presidente de Angola, considera que os resultados eleitorais “foram bons”, apesar da quebra da votação.

Os dados provisórios divulgados pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE) angolana apontam o MPLA como vencedor das eleições gerais, com 61% dos votos, e a eleição de João Lourenço como novo Presidente da República, sucedendo a 38 anos de liderança de José Eduardo dos Santos.

O MPLA perdeu 25 deputados na Assembleia Nacional angolana nas eleições gerais de quarta-feira, de acordo com os dados provisórios anunciados pela CNE – que são contestados pela oposição, com ameaça de impugnação -, quando estão escrutinados 9.221.963 votos (98,98% do total).

O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) lidera a contagem nacional, com 4.115.302 votos (61,05%), o que corresponde a 150 deputados (maioria qualificada) e à eleição de João Lourenço para Presidente da República.

Nas eleições gerais de 2012, a última às quais concorreu como cabeça-de-lista do MPLA José Eduardo dos Santos, Presidente da República desde 1979, que decorreram nos mesmos moldes, o MPLA arrecadou 4.135.503 votos, equivalente a 71,80% da votação e 175 deputados, o que na altura já representou menos 16 mandatos.

No plano oposto, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), liderada por Isaías Samakuva, sobe para 1.800.860 votos e 26,72% do total, com 51 deputados, quando nas eleições gerais de 2012 conquistou 1.074.565 votos (18,7% do total) e 32 deputados à Assembleia Nacional.

Os resultados oficiais só serão divulgados depois de 6 de Setembro.

 

Partidos da oposição não aceitam resultados

Com a vitória anunciada de João Lourenço nas eleições gerais de Angola, os dois principais partidos da oposião não se conformam.

A UNITA afirmou que apenas três comissões provinciais eleitorais (CPE) respeitaram até ao momento a lei, sobre o apuramento dos resultados das eleições gerais angolanas de 23 de Agosto, garantindo que vai recorrer para o Tribunal Constitucional.

Segundo um comunicado do secretariado executivo da comissão política da UNITA enviado à Lusa, aquele partido refere que apenas as CPE de Cabinda, Uíge e Zaire “respeitaram a lei”, no que toca ao recurso à “totalidade das actas das operações emitidas em todas as mesas de voto”, de cada província, para o respectivo apuramento provincial, que antecede o escrutínio nacional, conforme prevê a lei eleitoral.

Além destas três províncias, o partido do “galo negro” refere que o mesmo procedimento está agora em curso também nas províncias do Bié, Huíla e Cuanza Sul, enquanto as CPE do Cunene, Namibe, Cuando Cubango, Huambo, Lunda Sul, Lunda Norte, Moxico e Luanda “continuam a trilhar os caminhos da violação da lei, em obediência a ordens obscuras”.

A UNITA afirma ainda que “findo o prazo legal e a persistir a vontade de violar a lei”, vai avançar junto do Tribunal Constitucional com “a competente acção judicial”, de forma a “obrigar as CPE incumpridoras a pautarem a sua acção ao que a lei prescreve”.

O partido já avançou anteriormente com uma reclamação junto da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) por terem sido “produzidos e anunciados resultados provisórios fora do previsto na Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais”, os quais colocam o MPLA como vencedor da votação, com 61% dos votos, e elegendo João Lourenço como novo Presidente da República.

Coligação insatisfeita

A coligação angolana CASA-CE condenou também a ameaça da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) de abrir processos disciplinares aos comissários representantes de partidos da oposição que se demarcaram dos resultados provisórios das eleições divulgados por aquele órgão eleitoral.

Em comunicado, o Conselho Presidencial da Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), a terceira força política do país, refere que tem estado a acompanhar “com minúcia” todo o processo de escrutínio e apuramento provincial dos resultados eleitorais.

Nos últimos dias, vários comissários da CNE e dos seus órgãos provinciais têm assumido uma posição de distanciamento dos resultados provisórios divulgados pelos órgãos centrais, por alegarem violar a lei, com supostas ilegalidades ao processo de escrutínio.

A porta-voz da CNE, Júlia Ferreira, disse no final do plenário de quarta-feira que o órgão eleitoral angolano vai instaurar um inquérito para analisar o comportamento de alguns comissários nacionais e provinciais, que têm assumido “uma conduta desviante” dos princípios reitores do órgão eleitoral.

No seu comunicado, enviado à Lusa, a CASA-CE manifesta solidariedade com todos os mandatários e comissários afectos ao processo eleitoral, condenando e repudiando “com veemência” a ameaça da CNE, de promover processos disciplinares contra os membros do órgão eleitoral.

A CASA-CE classifica a conduta daqueles comissários como sendo “patriótica e exemplar” na salvaguarda dos preceitos democráticos, denunciando “irregularidades verificadas na divulgação dos falsos resultados eleitorais provisórios”.

Esta coligação de seis partidos diz ter sido feito o escrutínio e concluído o apuramento provincial nas províncias de Cabinda e Uíge, cujos resultados foram aceites pela CASA-CE.

O Conselho Presidencial da CASA-CE apelou à CNE a conduzir com rigor e imparcialidade o processo eleitoral e para instarem os seus órgãos provinciais a realizarem o escrutínio e apuramento provincial de acordo com a lei.

O apelo vai igualmente para os angolanos no sentido de se “manterem firmes, vigilantes e serenos e que não se deixem intimidar pelos comunicados intimidatórios e atentatórios à estabilidade e harmonia sociais, divulgados pelos órgãos de comunicação social públicos e alguns privados”.

31 Ago 2017

China | Deng Xiaoping morreu há vinte anos

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos depois da morte de Deng Xiaoping, o líder que abriu a China à economia de mercado, resta em Pequim pouco de herança operária, arrasada para dar lugar a torres envidraçadas e complexos luxuosos. No centro da capital chinesa, porém, um prédio semi-devoluto de oito andares remete para a ortodoxia comunista que perdurou na China durante o reinado de Mao Zedong (1949 – 1976).

O edifício ‘Fusuijing’ foi construído em 1958, inspirado no “Grande Salto em Frente”, uma campanha lançada por Mao para “acelerar a transição para o comunismo”, através da colectivização dos meios de produção.

“Não importava qual a posição ou autoridade de quem vinha para aqui morar, as casas eram gradualmente ocupadas, sem olhar a classes”, conta Zhang Qiwei, 60 anos, que viveu quase toda a vida no prédio.
Nenhum dos apartamentos tem cozinha: os habitantes comiam juntos numa cantina comum, segundo o espírito revolucionário da época. Espaços para ler, jogar xadrez ou para as crianças brincarem eram também partilhados.
“Alguns populares viviam até em casas melhores do que membros da marinha, exército ou força aérea”, diz Zhang Qiwei.
“Agora, os funcionários do partido moram em vivendas, enquanto o trabalhador não tem onde viver”.
Hoje, emaranhados de fios eléctricos, paredes descascadas e tralha amontoada nas escadas ilustram a degradação do edifício, situado a poucos quilómetros do bairro de Fuxingmen, sede de algumas das maiores empresas da China.
Automóveis Porsche, Ferrari ou Maserati são ali às dezenas, enquanto espaços outrora associados a um estilo de vida burguês – centros comerciais ou lojas de luxo – se multiplicaram nos últimos anos a um ritmo ímpar.
Mas para os chineses da geração de Zhang Qiwei, formados num ambiente de extrema politização, a realidade gerada pelas reformas económicas promovidas por Deng Xiaoping é difícil de aceitar.
“O povo está dividido; existe um materialismo excessivo”, refere. “No período de Mao Zedong, trabalhava-se arduamente sem pensar em dinheiro: lutava-se por um ideal comum”. “Hoje, as pessoas ganham dinheiro, mas não dão o litro”, diz Zhang.

Prós e contras

Para os maoístas, Deng Xiaoping, que morreu a 19 de Fevereiro de 1997, é culpado por problemas como a corrupção e desigualdade social, as duas principais fontes de descontentamento popular na China actual.
Afastado duas vezes por Mao, Deng, um antigo “seguidor do capitalismo”, assumiu o poder poucos anos após a morte do fundador da República Popular.
O desenvolvimento económico – e não o “aprofundamento da luta de classes”, como no tempo de Mao – tornou-se “a tarefa central”.
A pobre e isolada China, que vivia até então num universo à parte, mergulhada em constantes “campanhas políticas”, converteu-se em 40 anos numa potência capaz de disputar a liderança global com os Estados Unidos.
“Após a China adoptar a política de reforma e abertura, o nível de vida do povo melhorou”, conta Zhang Yan, de 66 anos, e também residente de longa data no edifício.
“Quem foi perseguido [durante o maoísmo] tem de agradecer muito a Deng Xiaoping”, acrescenta.
Zhang e os pais foram vítimas da Revolução Cultural, uma radical campanha política de massas lançada por Mao para “aprofundar a luta de classes sob a ditadura proletária”.
Entre 1966 e 1976, dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas sob a acusação de serem “revisionistas”, “reaccionárias” ou “inimigos de classe”.
Só no interior da China, estima-se que a violência tenha deixado 750.000 mortos.
Após a morte de Mao, contudo, os seus mais fiéis seguidores, incluindo a mulher, Jiang Qing, acabaram na prisão, e o próprio Partido Comunista Chinês classificou aquele período como “o maior erro e o mais grave retrocesso da história do socialismo na China”.
“Foi muito doloroso”, recorda Zhang Xiaoyan sobre a Revolução Cultural. “Sem a política de Deng Xiaoping, o meu pai ficaria para sempre marcado como um elemento negro”, conclui.

20 Fev 2017