Tânia dos Santos Sexanálise VozesO Museu dos Corações Partidos Em Zagreb, na Croácia, tive a oportunidade de visitar o “Museum of Broken Relationships”. A ideia é extraordinariamente simples: trata-se de uma exposição de vários objetos que estiveram de algum modo relacionados com o fim de relacionamentos. O nome sugere relacionamentos românticos, e de facto, a maioria das peças refere-se a eles. Mas não são os únicos retratados. A ideia para este museu surgiu durante o processo de separação do seu criador. No momento da habitual divisão de bens, ele rapidamente percebeu como os objetos carregam memórias e apegos, e foi essa constatação que o inspirou. Foi assim que convidou várias pessoas a submeterem os seus objetos e histórias de separação, reunindo-os todos numa exposição. Quem entra no museu sem muito contexto sobre o que se passa ali, depara-se com uma sala cheia de objetos mundanos — alguns mais interessantes, outros mais bizarros. Só com as narrativas dos seus doadores é que estes objetos ganham uma forma emocional. É esse contexto que transforma o espaço num repositório de dores. Chorei e ri-me. Também senti angústia. Quanto mais simples e curtas eram as histórias, mais profundamente se cravavam no coração. Aquele espaço tornou-se uma porta de entrada para as dores dos outros, reverberando nos seus visitantes. O simbolismo construído em torno de cada objeto concretizava-se na experiência do visitante, porque existia, real e simbolicamente, em todas as dimensões. Em alguns casos, percebi que doar o objeto do seu relacionamento poderia ser um ato catártico, um desfecho. Como se dissessem ao mundo: “Já não preciso de me agarrar à memória desta pessoa, aqui vos ofereço o nosso fim.” Algo que que muitos visitantes provavelmente quiseram fazer no passado. Alguns destes objetos eram do corpo, como as rastas que ele deixou para trás, ou o enxerto de pele que ele teve de fazer após um grave acidente. Ou as botas de mota da Maria, que, apesar de terem tido várias donas ao longo dos anos, à medida que as relações mudavam, nunca deixaram de ser as botas dela. Outros objetos também eram mais criativos. Um marido, antes de se separar da sua mulher, pediu-lhe que lhe fizesse uma camisola em tricot. A indecisão era tanta que, a cada semana, mudava de ideias quanto à cor, ao modelo ou ao tipo de ponto. Quando se separaram, a camisola ainda não estava feita. Mas, como forma de resolução, a mulher terminou a camisola incorporando todos os pontos de indecisão. Com as amigas, criaram uma camisola irregular, monstruosa, feia, indecisa. Agora está em exposição em Zagreb, como um ato de despedida. Também estava em exibição uma cassete, uma gravação caseira com a voz de um homem a falar japonês. O pai, que morreu pouco depois do filho nascer, deixou-lhe algumas gravações para que ele pudesse ouvir a sua voz. No entanto, a mãe agarrou-se de tal forma a esse vínculo que nunca as pôs a tocar, com medo de perder aquele momento outra vez. O filho quis fazer as pazes com essa história. Doou a cassete para que os visitantes pudessem ouvir a voz do homem que outrora existiu e que, de certa forma, ainda existe nos corações de quem sente a sua falta. Dei por mim a recordar as minhas próprias histórias de despedida e os seus objetos. Alguns foram fáceis de abandonar, outros andaram comigo durante anos. É normal que os nossos afetos encontrem refúgio na materialidade do mundo. A sensação de abandono, a dor, o sofrimento ou a solidão encontram conforto nos objetos mais insignificantes, porque eles fizeram parte da história, vibraram com a energia do passado. Todas as emoções que tendemos a sentir sozinhos, que estão no cerne da sensação de perda e abandono, o museu mostra-nos que são, na verdade, emoções partilhadas. Ninguém está sozinho com o seu coração partido.
Andreia Sofia Silva SociedadeSaúde | Taxa de mortalidade de doenças cardíacas com redução de 2009 a 2021 Dados dos Serviços de Saúde (SS) apontam que a taxa de mortalidade de doentes cardíacos diminuiu entre 2009 e 2021. Segundo o Relatório de Actividades de 2022 da Comissão de Prevenção e Controlo de Doenças Crónicas, a taxa de mortalidade passou de 82,4 por cada 100 mil pessoas, em 2009, para 81,2 por cada 100 mil em 2021. Os SS apontam ainda que o número de medições da tensão arterial tem aumentado nos postos comunitários de saúde, atingindo 740 mil medições em 2022, um aumento de cerca de 80 por cento em comparação com 420 mil medições em 2017. É ainda apontado no mesmo comunicado que o Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar Conde de São Januário, dispõe actualmente de terapia de reperfusão vascular, vulgarmente conhecida por angioplastia, com “o tempo médio de abertura do fluxo sanguíneo de cerca de 60 minutos”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasRespiração [dropcap]P[/dropcap]ara o pensamento arcaico a sede das emoções e da consciência era o diafragma (R. B. Onians 1951). Não era o coração. Muito menos o cérebro. Para os velhos estoicos, o “eu” estava localizado no externo, porque um grego gesticula como qualquer mediterrânico e toca com o dedo no externo quando diz eu ou bate com a mão violentamente no peito para se revelar corajoso. Para nós, contemporâneos, o coração está arraigado nos nossos idiomas. Aprendemos coisas “de cor”, usando a palavra latina no original para coração. Alguém tem bom coração. Há quem não tenha coração. Acedemos ao passado pela memória, mas quando queremos entrar por ele adentro é pela re-cor-dação, um modo de reverberar o coração. O coração bate rápido e depressa com medo e na excitação do amor. Cai-nos o coração ao chão, quando ficamos para morrer, pelo susto que apanhamos. O valente tem coração de leão. Os santos aproximavam-se do santo dos santos com o coração nas mãos, como oferta, símbolo vivo da vida. A simbologia do coração foi destruída (Sloterdjik 1988) com o advento da anatomia contemporânea. Passamos a falar de “máquina”. A metonímia faz perceber que o coração perdeu a riqueza semântica capaz de significar o aprender, o ficar em pânico, sentir-se apaixonado, lembrar-se do passado, ser corajoso, expor-se vulneravelmente à fé em Deus. Agora, o batimento cardíaco, a pulsação, o ritmo, são interpretados de acordo com a metáfora da máquina como se o coração fosse um motor, com peças substituíveis. O próprio coração pode ser substituído. Não é pessoal nem intransmissível. Já não é pessoal. Lá não estou eu. Nem a quem pertenceu. Um dia poderá ser produzido por material ainda mais consistente do que a carne humana, talvez. Vemos o “coração” como objecto, tal como o coração é, sem aura pessoal, sem metáforas nem símbolos. O ganho claro e maravilhoso da ciência é a perda da metáfora. Onde estou eu senão no coração. A que chamo eu coração então? Para o pensamento arcaico, era no diafragma que se situavam as emoções e a consciência. Não é metafórico também este pensamento? O que é que eles queriam dizer com isto? No oriente ainda há uma atenção dada à respiração completamente diferente da que lhe damos no ocidente. Os guerreiros árabes antes do combate estavam um dia inteiro a fazer colectivamente hiperventilação. Para se perceber o estado em que ficavam, experimentemos inspirar pela boca e expirar violentamente pelo nariz durante umas 20 vezes. Ficamos embriagados. A oxigenação transtorna. O sangue transforma-se. O batimento cardíaco altera-se. Se googlarmos “The Iceman”, verificamos que Wim Hof tem o mesmo método de respiração com preparação para mergulhar nas águas frígidas que congelariam qualquer um. A respiração Luta/Fuga (ofegante) dá lugar à respiração Sossego/Digestão. O controle da respiração tem de ser feito consoante a situação. Se um perigo nos aparecer não vamos querer respirar como o fazemos depois de um almoço tradicional de domingo ou a dormitar em frente à TV. Se quisermos adormecer, não vamos querer ter uma discussão acesa. Como inverter as respirações? O ponto é este. No controlo respiratório, na sua plasticidade, é possível alterar o estado de espírito. A palavra para espírito em grego diz-se pneuma, sopro. A vida para os gregos era um sopro. Todas as formas de respiração não são interiores apenas. São o nosso contacto com o mundo exterior, com a atmosfera, com o ar que respiramos. O ar está em nós e fora de nós. Circula através de nós. Inspiramos oxigénio e libertamos óxido de carbono. A respiração tem uma inspiração que não pode ser infinita e uma expiração que não pode ser infinita. Se inspirarmos e não expirarmos ou se expirarmos e não inspirarmos, morremos. É simples. Qualquer situação tem o seu modo passivo correspondente de respiração. Foi isso que o pensamento arcaico percebeu. No diafragma manifesta-se exteriormente o modo como alguém lida com a situação. Não há interior nem exterior. O ser humano é atmosférico. Há bafos de sorte e podemos ser bafejados. Há algo que “cheira” bem ou mal, que não nos cheira. Sopramos para arrefecer ou bafejamos para aquecer. A palavra para alma em grego, psychê, quer dizer refrescar, sopro vital, dentro de cada um de nós e a envolver-nos a todos nós. Respiramos de alívio, depois de termos ficado sem respirar. Caímos em situações de cortar a respiração. Expiram prazos. Nós próprios entre a primeira inspiração e a última expiração, datamos a entrada do espírito e a saída do espírito. Deus, dizem, não se manifesta no trovão, nem na tempestade, nem no tremor de terra, nem no fogo, mas no “murmúrio de uma leve brisa”. (1 Reis 19:12).
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasCanivete suíço para corações [dropcap]C[/dropcap]onheci Marlene num bar da Vila Madalena, em São Paulo, entre amigos de amigos de amigos. Tinha o cabelo preto – curto como um haiku –, que contrastava claramente com o exagero da sua pele branca. A sua juventude via-se no modo despreocupado com que se entregava ao sorriso, dela e dos outros. Num tom provocador, diz, quase rente à boca de Julie, “o amor não serve para nada”. E riam-se, quase se beijando. Marly (Marlene) estava interessada em Julie, mas ainda mais interessada em Patty, que estava sentada ao meu lado e mais empenhada em convencer as pessoas acerca do que pensava do que nos corpos disponíveis, que poderia ter se quisesse. Quase todas aquelas jovens mulheres poderiam ser no corpo de outrem, por isso a displicência com que não atentavam nos sinais do desejo. Marly tocava-nos enquanto falava, sorria, olhava-nos nos olhos. Julie estava claramente interessada apenas em Marly e era um erro. Erro que se paga com a vida e tarde de mais se percebe. Patty falava que só há dois tipos de pessoas no mundo: as que fazem a guerra e as que fazem a paz; o resto eram sub-divisões que tentavam ocultar a diferença máxima e que realmente importava para o mundo. Entregar-se à discussão, à maledicência era fazer a guerra, furtar-se ou evitá-las era procurar a paz. Continuava neste tom até alcançar os cumes gelados da religião, onde cristianismo, islamismo e judaísmo faziam parte do mesmo partido da guerra, contrariamente ao budismo, que era claramente uma procura da paz. Marly, que estava nesse momento levantada, dirige-se a Patty por trás, toca-lhe nos longos cabelos loiros, apanha-os com uma das mãos e sussurra-lhe ao ouvido algo que fez a rapariga da paz estremecer, enrubescer e soltar um som rouco, embaraçado. Marly deu-lhe um beijo no lado esquerdo do rosto, junto aos lábios, sentou-se no seu lugar e beijou demoradamente Julie, tendo desta vez toda a atenção do mundo – a paz e a guerra – por parte de Patty. Esperei um pouco, virei-me para a Patty e disse: “Estava dizendo…” Ela olhou-me como se acabasse de acordar. Ficou tão claro que não basta uma pessoa existir, fazer-se ver a outra, para lhe entrar dentro da pele, é preciso construir um cavalo de Tróia, é preciso um gesto, uma palavra, algo que faça com que a realidade desapareça e que o que é passe a parecer. Marly era um autêntico canivete suíço nos nossos corações. Agora, não havia naquela mesa, naquele bar, naquela cidade, um só coração que não batesse em uníssono com o coração de Marly. Tudo o que fazia era perfeito e transformava-nos a todos numa criança no primeiro dia em que estremece pela imagem de um outro corpo. Nem ela mesma sabia o que fazia. Tocar-nos os corações não era um conhecimento, era um destino. Ria-se com a alegria de quem vive no paraíso e não numa rua da cidade de São Paulo, no mundo, e repetia de quando em quando como um refrão “o amor não serve para nada”. A noite foi crescendo, tal como um filho, mais depressa que o esperado. Já à saída do bar, e com o dia a espreguiçar-se, perguntei-lhe: “Marly, que disse ao ouvido da Patty?” Ela riu alto, abraçou-me e rente ao ouvido, disse: “Portuga, se lhe contar, vou ficar com a sua alma para sempre. Quer mesmo que isso aconteça?” Por estranho que pareça, a sua resposta não me surpreendeu. Sorri e disse-lhe: “Não, querida, deixe p’ra lá, assim está de bom tamanho”. Seria estultícia querer desafiar a natureza e o desconhecido. No céu, começava-se a ver as nuvens rarefeitas, deslizando no céu como se Deus fumasse.