Entrevista | António Falcão, o homem da maratona

António Falcão inicia hoje, pelas 15h, na Livraria Portuguesa, uma maratona de 24 horas de escrita. O autor tem uma ideia base, e a partir daí vai deixar a escrita falar desafiando a resistência física. Ao mesmo tempo, de hora a hora, publicará online um capítulo de cada uma das histórias que vão sendo escritas

[dropcap]E[/dropcap]m que consiste este evento?
Vai ser uma maratona com ponto de partida às 15h em que vou estar a escrever durante 24 horas na montra da Livraria Portuguesa. Será um processo sem plano concreto, apenas com alguns tópicos como guia. Vou ter um tema base, que irei explorar durante esse período, deixando a escrita fluir. Ao mesmo tempo vou publicar online, a cada hora, um capítulo de uma história, ou será mais correcto dizer uma trama, que será dividida, assim, em 24 capítulos. A ideia é escrever um bloco de texto completo, com um princípio e um fim, como quem entra para uma corrida de resistência e tenta chegar ao final incólume, sem acidentes, com o veículo inteiro. Muitas vezes, não é possível. Neste caso, a escrita ditará e arrancará sozinha por ali fora, sem um circuito por onde se delimitar. Tentarei estar presente o menos possível, deixando as mãos falarem por si, entre as teclas e o papel digital: as 24 Horas de Les Mains. Uma singularidade espacial. This is Major Tom to Ground Control.

Porque decidiu fazer este tipo de maratona escrita?
Não usaria o termo decisão. É certo que não foi um convite. Foi uma proposta da minha parte. Dada a coincidência de datas, em que consigo pela primeira vez estar em Macau durante o período do festival literário Rota das Letras, achei que fazia sentido ter uma participação no evento. Mas não me estava a ver incluído em algum painel, nem a falar, que é coisa para a qual não tenho vocação. Não sei bem de onde surgiu a ideia. Se calhar partiu da minha paixão por corridas de automóveis e de querer, todos os anos, estar presente nas 24 Horas de Le Mans. É um dia sagrado. Queria fazer algo parecido. O desafio em si, de estar enfiado numa cápsula com o tempo a contar lá fora, onde tudo é possível. Uma espécie de travessia, ir de uma ponta à outra, a caminhar numa corda bamba, com pouco equilíbrio. A ideia de estar um dia inteiro a escrever sem interrupções pareceu-me um bom acto de funambulismo. Digamos que neste caso será mais sonambulismo, parto um pouco sem a consciência da façanha em si. Mas o Houdini também teve de começar por algum lado. Meto a primeira e sigo prego a fundo.

Que dificuldades pensa encontrar durante o processo?
Creio que a principal dificuldade é de escrever algo que faça sentido do princípio ao fim, que conseguia erguer um bloco. Que exista um enredo linear, ou sequer um fio de escrita literário. Qualquer pessoa que tenha a escrita como profissão, consegue estar a escrever um dia inteiro sem parar, mas a grande dificuldade será fazê-lo com consistência e com alguma habilidade, para que não seja apenas um grande disparate. Confio na fluidez da escrita, e que a certo ponto entre num estado de hipnose tal que deixo de ali estar, e só retorne no final, numa viagem de ida e volta a outra galáxia. Na verdade, não sei bem o que vai acontecer, tentarei ser apenas espontâneo. Sinto um misto de receio e de confiança, de que vou sair ileso, e de que me safo melhor assim, com uma corda ao pescoço. A corda do ajuste imediato. De outra forma, poderia aborrecer-me e desistir, destruindo o empreendimento. Ou então é a paranoia com o perfeccionismo que deita tudo a perder. Do modo como vai acontecer hoje, com o fio da guilhotina a cair, safo-me melhor. Este ano tenho escrito todos os dias. Uma história por dia, na página de um caderno. Já vou em mais de setenta. Tem sido um bom exercício e essa experiência talvez seja um bom auxílio para me afundar neste pântano. Uma tábua de salvação.

Tem ideia sobre o que vai escrever?
Sim e não quero dizer o que é em concreto, mas vou escrever sobre um fim. Não direi que seja polémico, mas sim pertinente. Vivemos imiscuídos neste bolo comunicacional em que se perdeu a noção das certezas. As pessoas já não se questionam, embrulham-se. Deixam-se alienar pelos pacotes que lhes oferecem. Olhe-se para o panorama civilizacional de vários países, em que grandes traumas da nossa história voltam a ebulir. Qual a origem disto tudo? Baixámos os braços? Deixámos de ser exigentes? Ninguém lê? Olha-se para as televisões e só se vê lixo. A maioria dos jornais etiquetaram-se a um post-it, porque acham que os leitores perderam a paciência e já não conseguem prestar atenção e ler três frases, limitando-se ao superficial. É um mundo cão e só querem subsistir. Depois há a filosofia do isco, não interessa o conteúdo, só importa o fio a passar e o clique. Os cérebros deixam de ter neurónios e passam a ter isso: cliques de ansiedade. Estou a generalizar, é certo, mas o que graça por aí não é para meninos. Daí que pensem em colonizar outros planetas. Porque o nosso também está nas ruas da amargura. Mas o pior de tudo isto é que se somos inteligentes e temos as ferramentas para dar a volta, porque preferimos não o fazer? Será só o poder e o dinheiro? Vou escrever sobre sobrevivência. Outros dos aspectos deste desafio tem que ver com o facto da sobrevivência necessitar de sacrifício e esforço físico. Por isso, às últimas horas, a escrita que brotar virá muito dessa dificuldade acrescida, que se poderá equiparar ao que estiver a ser vivido por mim. Com a veia truncada. Em delírio puro.

Vai estar exposto. Acha que a presença de público vai interferir com a escrita?
A exposição, para além da manifestação lúdica, depreende uma certa interactividade. A vontade é de que o público, de certo modo, tanto porque a “classificação geral” da prova vai estar exposta de hora a hora, tenha alguma influência no processo. Terá, com certeza, dado que irei estar a captar e a assimilar sentidos de várias fontes. Não vou estar empalado, e tudo isso será inspiração. Pretendo inclusive que as pessoas apareçam na livraria e possam deixar bilhetinhos e comentários sobre todo este desastre à beira de acontecer. Vou respirar fundo.

19 Mar 2019

Literatura | “Morri”, de Antønio Falcão, reapresentado na Livraria Portuguesa

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]orreu e ressuscitou. A mais recente obra de Antønio Falcão, MORRI, será reapresentada ao público de Macau na próxima quinta-feira, dia 21 de Setembro, pelas 18h30 na Livraria Portuguesa. O evento irá contar com a leitura das histórias que compõem o livro pelas vozes de alguns residentes de Macau. Entre o leque de leitores figuram Ana Dias, Carlos Morais José, Carlos Picassinos, Fülöp Oszkár, Miguel de Senna Fernandes, Selma Branco, Victoria Man, entre outros.

O livro de Antønio Falcão foi escrito entre 2004 e 2017 e reúne mais de 60 textos de material diverso, grande parte publicado no formato de crónica no jornal Hoje Macau durante esse período.

MORRI é uma colectânea de contos, ensaios, pequenas peças dramáticas e correspondências várias. O livro aborda também a história de Macau, antiga e contemporânea, tentando delinear novas perspectivas para a sua complexa compreensão, totalmente fora da habitual zona de conforto. Nele podem-se reconhecer factos do conhecimento público, personagens reais de outros regimes que se debatem com seres puramente ficcionados, como se tudo decorresse numa trama cinematográfica.

MORRI foi publicado pela editora COD de Macau, no âmbito das celebrações do 150.º aniversário de Camilo Pessanha. Nesta mesma ocasião o autor apresentou também a exposição de fotografia “Kleptokronos”.

19 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | Antønio Falcão apresenta “Kleptokronos” e “Morri”, um livro de crónicas

“Se existir um deus, é o tempo”

Antønio Falcão é Ring Joid, mas podia ser outro qualquer. De regresso a Macau é também Pessanha e os muitos que vão habitando dentro de si. Está no território com a exposição “Kleptokronos”, que é inaugurada hoje e para apresentar o livro “Morri”, amanhã. É um dos artistas que integra as comemorações dos 150 anos de Camilo Pessanha do Edifício do Antigo Tribunal e vem mostrar a sua concepção de tempo

[dropcap]O[/dropcap] que é que vamos ter em “Kleptokronos”?
Quando recebi o convite comecei a pensar no que fazer. Não queria ir buscar imagens que já tinha nem recorrer a paisagens de Macau. Acabei por ter esta ideia, de jogar com o tempo da própria fotografia e tentar, trazer com a técnica, o tempo do Camilo Pessanha. “Kleptokronos” que dizer ladrão do tempo. Uso a técnica da fotografia em que a luz constrói a imagem durante o tempo necessário até ter uma imagem possível. A maioria das fotografias aqui presentes são feitas com várias exposições, e muitas delas, longas.

O próprio processo incorporou o conceito de tempo?
Sim. A exposição longa traz o tempo para trás e, tecnicamente, é um método em que o tempo se demora pela fotografia adentro.

Como é que isto se materializa na exposição?
A minha ideia era pegar neste tempo que se comemora do Camilo Pessanha e juntá-lo ao que também se passa agora, à contemporaneidade. Por exemplo, com a questão dos refugiados. Também se lançam ao mar e muitos acabam por naufragar.

Faz um paralelo com as situações da actualidade?
Sim, tenho uma imagem referente aos fogos que têm passado por Portugal e que se pode relacionar com o poema “Vida” do Pessanha. Fala disso, do lumaréu, de tudo a arder e das flores que deixam de existir. O arder, mais uma vez, também é referente à luz fotográfica que queima. Não foi pegar no poema e fazer uma imagem que se parecesse. Foi outra coisa.

Tem alguns auto-retratos.
Os auto-retratos têm que ver com outro processo. É um reencarnar-me como uma espécie de Camilo Pessanha de agora no sentido do delírio, da fuga, da própria erosão da pessoa que está fora, num sítio que não é dela mas que acaba por lhe pertencer. Isto passa também pela minha experiência por Macau. O que vivi e não vivi aqui. A ideia é tentar ser uma personagem, mais do que alguém que escreve ou que fotografa. É criar este embrulho para que tudo o que estou aqui a apresentar faça um certo sentido para que saia da realidade e traga outros elementos.

Vamos ter uma mistura de Camilo com Ring Joid, uma outra personagem sua?
Um pouco por aí. Mas sem rigor nenhum. O Ring Joid – e não interessa o nome porque foi quase aleatório – é o ideal de mim que não consigo representar na vida real. E por isso mantenho-o vivo artificialmente como complemento de uma vida com limites. Ele sou eu à solta.

Vai também lançar o livro “Morri”. Porquê o título?
Tem tudo que ver com a questão do tempo. Se existir um deus, é o tempo. É a única omnipresença que existe no mundo e da qual todos fazemos parte. “Morri” foi o título que me apareceu. Comecei a escrever, para o Hoje Macau, em 2004, numa altura da minha vida em que quase tinha uma necessidade da escrita para que pudesse continuar a viver ou a ficar perto do chão. Escrevia com outro nome, o de Ring Joid. Acabei por inventar essa personagem. Há sempre duas coisas a viver dentro de mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis. Depois há as histórias ao longo do livro que têm esse carácter da morte. Aliás, o livro acaba com um pequeno texto em que sou eu dentro de um avião a cair, e relato os últimos momentos antes da sua queda. A morte. O livro têm alguns textos actuais também em que, mais uma vez, está presente o tempo. A introdução, em que relato uma situação de quando tinha três anos, representa tudo o que se passa agora. É uma situação biográfica em que tudo o que nós vivemos já vimos acontecer. É como se vivêssemos numa dimensão em que tudo está mais ou menos programado e que já vimos isso mas que não conseguimos perceber e agora, como o tempo se estendeu, tudo se descodificou. “Morri” fala também da história contemporânea de Macau. Os portugueses, as despedidas, as passagens, mas muitas vezes uma história idealizada. Por exemplo, os governadores que eram seres de uma dinastia superior, que passavam por um processo de estudo do oriente, da língua, da filosofia e quando chegavam integravam-se na vida do “outro” e eram admirados por toda a população. Eram textos escritos para um jornal na pressão semanal do fecho. Experiências de temas e de métodos de escrita. Coisas que via, cinema, música, noites. Sempre com o meu outro ser a testar as minhas capacidades, se conseguia realmente escrever alguma coisa. Uma escrita que parte de um trauma que se vai cosendo ao longo dos tempos. Vivemos num mundo isolado dentro deste território e era preciso soltar-me. E na escrita tudo é possível. Tudo existe. Não há freio.

E a fotografia? Qual a sua relação com ela agora?
A fotografia só funciona se de algum modo participar nela. Não pode ser apenas uma composição visual de elementos exteriores. Isso é uma espécie de malabarismo, tem de estar tudo no lugar para que as bolas não te caiam na cabeça. Eu fico à espera que elas caiam. E depois logo se vê.

O que acha das comemorações dos 150 anos do Pessanha e da sua representatividade para Macau?
O Camilo Pessanha é um dos poetas mais válidos da literatura portuguesa e também dos mais esquecidos. Já Fernando Pessoa o admirava mas depois houve este tempo todo em que parece que esteve adormecido. Em Macau, penso que nunca foi devidamente reconhecido e por isso é importante tanto a obra como a sua figura e a sua passagem pelo território. É preciso que resista para que as pessoas possam, algumas continuar a relembrar o homem e outras o puderem conhecer.

Viveu aqui 17 anos e está de regresso. Como está a viver a visita?
Não tenho bem a noção do tempo, quando olho para trás, passaram 17 anos em Macau, passaram seis desde que fui para Portugal. Está tudo compresso na cortina do engenho que capta imagens para dentro do nosso cérebro. Fui embora em 2011 e sempre que volto sinto como se me tivesse ido embora na semana passada. É sempre um sentir-me em casa. É bom e mau mas como estou sempre de partida, e não venho de armas e bagagens para ficar, também não desespero. É a sensação de estar num sítio inóspito.

Macau é inóspito?
Sim. O mundo é inóspito.

1 Set 2017